Em foco

Álvaro Salazar


Foto: Álvaro Salazar . © Bruno Nacarato

Questionário/Entrevista

Quando e onde começou para si a música? A sua família apoiava a sua iniciação na carreira musical?

Álvaro Salazar: Podia ter nascido numa família musical, como os filhos de Bach, mas não foi o caso, embora se ouvisse – quer em casa dos meus pais, quer em casa dos meus avós maternos – bastante música e se tocasse piano. As mulheres daquela época, todas tinham estudado piano. Por exemplo, a minha mãe tocava bem. Quando eu era miúdo, uma criança (bebé quase), sentava-me a ouvir ela tocar e a partir de uma certa altura pedia-lhe: “toque isto” ou “toque aquilo”. Isso acaba por desenvolver um instinto – se a pessoa o tem – ou acaba por acordá-lo.
Na família houve vários músicos amadores. Tenho uma prima direita que vive em Lisboa, mais velha do que eu uns anos. Fez curso de piano no Conservatório. Mais tarde fez um curso de música gregoriana e leccionou sobre essas matérias.
Aqui ao lado tinha uns vizinhos e nós – rapazes novos, adolescentes – encontrávamos lá e tocávamos coisas ligeiras: canções, fados e isso tudo. Nessa altura eu estava a estudar também guitarra espanhola e acompanhava-os. Essa circunstância também desenvolveu em mim um tal instinto e numa certa fase desenvolvi uma posição um pouco superior em relação a esses meus amigos. Costumava dizer: "Vocês gostam de uma «musiqueca» e eu gosto de uma outra música", porque estava habituado ao que ouvia em casa.
Comecei a ir então a concertos, a tudo o que me aparecia cá no Porto, seguia a actividade da própria Orquestra do Porto que era uma Orquestra Sinfónica da Radiodifusão Portuguesa, infelizmente com limitações grandes. Só recentemente, digamos assim, é que houve uma melhoria substancial, porque se criou a orquestra actual — a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música —, e este é um grupo de um nível europeu. Pode apresentar qualquer obra, quer na sua sede, quer no estrangeiro onde vai várias vezes. É uma orquestra com uma actividade grande e com realizações musicais importantes.

E quando se deu aquele momento em que sentiu que a música era mesmo o caminho que queria seguir? Foi um momento ou mais um processo?

Álvaro Salazar: É curioso, a minha mãe, apesar da sua capacidade musical, não queria que eu estudasse só música. E o meu pai ficava zangadíssimo. E porquê? Ele queria que eu me formasse num curso superior que desse dinheiro. A ideia era que eu tivesse uma profissão rentável e não uma profissão que na época não o era.

Não obstante, muitos músicos dizem que hoje em dia seguir esta carreira também não é fácil e é pouco rentável…

Álvaro Salazar: Sim, mas melhorou substancialmente. O meu pai pretendia outra coisa para mim – isto demorou a minha adolescência toda: eu queria uma coisa, ele a opor-se, sempre. Contudo, depois de muita discussão finalmente chegámos a uma “entente cordiale”: eu ia para o Conservatório, mas simultaneamente tinha de frequentar um outro curso superior.
Ora bom, e assim foi que fiz Direito na Universidade de Lisboa. E no Conservatório Nacional estudei instrumentos, não para ser instrumentista, mas em função da minha ideia da composição. O que queria, era ser compositor. Estudei oboé, corne inglês, um pouco de contrabaixo, piano, etc. – não com o objectivo de ser o melhor do mundo a tocar violino ou piano...

Não queria ser virtuoso…

Álvaro Salazar: Eram instrumentos que faziam parte do currículo de composição. Esses e outros, naturalmente. E eu queria compor. Devo dizer que a disciplina de composição no Conservatório, naquele tempo, era um pouco retrógrada. Os professores estavam virados para um passado mais ou menos afastado – tinham estudado na escola francesa e depois vieram-se embora por causa da guerra. Mas eram uns neoclássicos, compositores que achavam que Hindemith era quase assombroso, o Stravinsky da fase neoclássica é que interessava… quer dizer… tinham estas visões que eu queria ultrapassar. E só tive uma maneira de fazê-lo… era informar-me por mim mesmo.

Começou então a seguir o seu próprio caminho…

Álvaro Salazar: Foi este caminho autodidáctico que eu percorri. Depois, mais tarde, tive bolsa da Fundação Gulbenkian, fui estudar para fora, etc. Quando acabei a Faculdade de Direito, estava numa situação de não ter ainda nada nesta área, ainda não tinha profissão jurídica, e na música ainda não tinha meios de ser conhecido como compositor e trabalhar nesse sentido.
Isto demorou mais anos... anos em que eu fiz várias coisas… Posso citar algumas: estive na magistratura (uns meses só). Depois segui para Viena de Áustria estudar música e larguei a magistratura. Prossegui na Carreira Diplomática. Nessa qualidade cheguei a exercer funções na Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro… mas isso seria uma história enorme que já contei várias vezes e penso que não valerá a pena voltar ao assunto. O mais importante é que depois, em 1972, vim para Portugal, desvinculei-me da Carreira Diplomática e disse a mim mesmo: "Agora só música e acabou-se! Não faço mais nada de maneira nenhuma".

Na altura da Carreira Diplomática já estava a compor?

Álvaro Salazar: Sim, já estava a compor. Embora de uma forma um pouco incipiente. Em 1972 fixei-me em Lisboa, mais concretamente na Parede, e fui contratado para o Conservatório. Logo a seguir comecei a dar aulas – não de composição, mas de educação musical, estas coisas mais primárias, mas necessárias.
Depois pedi uma bolsa para ir estudar em França. Essa bolsa foi-me concedida em 1973 e parti para Paris, onde vivi uns anos. Lá (em Paris) fiz contacto com o GRM – Groupe de Recherches Musicales, onde trabalhei com Pierre Shaeffer e o os seus discípulos: François Bayle, Guy Reibel e outros. Era a escola da música concreta e lembro-me de que um colega meu, o compositor romeno Horațiu Rădulescu foi afastado do nosso curso e mandado embora por ter apresentado uma obra electrónica. Ora isso punha o templo da musique concrète fora de si!
Curiosamente – já agora digo isto entre parênteses – vários anos depois estava eu em Lisboa como professor de Conservatório e houve um concerto e uma entrevista na Gulbenkian com Pierre Shaeffer. Qual não foi o meu espanto quando o Pierre Shaeffer, que trazia algumas obras dele, sei lá… a Symphonie pour un homme seul (1949-50), etc… essas coisas. E trazia também uma bobine que deu a ouvir… Era música electrónica! Eu tive uma surpresa espantosa – então ele tinha sido adversário irredutível da música electrónica. Depois ele foi-se embora para Paris e, curiosamente, essa obra está na posse de quem? Na minha posse! Fiquei com a bobine. Quando Shaeffer partiu não a pude devolver. Era uma bobine grande. Concluindo a anedota: pode dizer-se que o GRM já não é o que era.
Voltando à minha educação. Simultaneamente estudei análise musical, sobretudo baseada em obras – é curiosa essa escolha – obras da Segunda Escola de Viena, que analisei minuciosamente; e também Varèse, por quem tinha um interesse muito especial, que aliás mantenho.

Todavia, nunca compôs nenhuma peça no estilo da Segunda Escola de Viena.

Álvaro Salazar: Não. O meu professor era, e é um compositor, só dois anos mais velho do que eu: Gilbert Amy. Ele também exercia funções do chefe de orquestra (de vez em quando) na Maison de la Radio, e eu ia assistir aos ensaios, aprendendo muito com ele.
Ao mesmo tempo aprofundei os meus conhecimentos de maestro, que eram algo empíricos, na direcção de orquestra na Escola Normal de Paris com Pierre Dervaux. Também tinha estudado antes em Viena com Hans Swarowsky, mas tive de interromper os estudos por motivos militares...
Desde essa estadia em Paris nunca mais quis se não a música. Quando regressei, voltei para o Conservatório como professor, dei aulas de análise – fui um dos primeiros a ensinar esta matéria – e de composição.
Depois passei por vários estabelecimentos de ensino em simultâneo com o Conservatório, na Escola Superior de Música de Lisboa, na ESMAE – Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto, e ainda na Academia de Espinho. O que dei nessas escolas? Dei análise, dei tudo o que sabia. E alguns dos meus alunos fizeram carreira, ou estão a fazer carreira. Tenho a convicção de que contribui para que essas escolas se desenvolvessem um bocado.

Falando sobre a questão das suas primeiras obras – decidiu destruir uma parte das obras que escreveu no início…

Álvaro Salazar: Sim, destrui as obras anteriores àquela que considero a primeira obra no meu catálogo, que foi editada pelo Atelier de Composição – Palimpsestos II para flauta solo – é uma obra de 1965 e depois fiz-lhe uma revisão em 1974. É uma peça também gravada em disco pelo Pedro Couto Soares da Oficina Musical [Fugit Irreparabile Tempus, Atelier de Composição, 2008].
Em relação às obras que destruí, é importante dizer por que o fiz. Há uma razão muito simples: eram tentativas incipientes de composição, técnica e esteticamente falando, ou seja, com um atraso de décadas em relação ao que se fazia então na Europa, nos Estados Unidos e noutras partes do mundo. E falo de peças que foram tocadas em público – portanto não são uma imaginação minha – mais tarde foram retiradas do catálogo e destruídas, algumas delas mesmo fisicamente, outras no sentido de que ninguém as poderá tocar, nem eu as mostro a ninguém. Não quero dizer que não tenha utilizado algumas coisas dessas obras – a série Palimpsestos, por exemplo, é baseada, ou informada, digamos assim, aqui e acolá por resquícios ou "citações" de páginas anteriores.

A partir da obra que considera a primeira no seu catálogo – "Palimpsestos" de 1965 – depois de destruir as outras, o que começou a distinguir a sua linguagem? Como a podia caracterizar?

Álvaro Salazar: Ora bom, todos sofremos influências. Não nascemos de geração espontânea – há quem ache que vai a reboque e quem ache que ir a reboque seria a pior coisa do mundo. Agora serei tão original que não me lembro da influência de ninguém? Acho, no entanto, que se não estabelecer a minha genealogia será difícil aos analistas chegarem lá.
Quais são os compositores que me marcaram? Marcou-me muito Varèse. Em que? Principalmente na importância que deu aos registos instrumentais, registos muitas vezes quase de execução impossível – pensemos, por exemplo, em certas passagens no sopro que são difíceis de alcançar. Depois… a Segunda Escola de Viena, sobretudo Anton Webern.
Eu disse algumas vezes em entrevistas a gracinha "que o silêncio permite articular os sons". Ou seja, por um lado os sons são moldados pelas pausas de duração diferente e por uma escrita onde as pausas existem. Por outro lado, também se pode dizer – fi-lo muitas vezes – o contrário: em vez de ser o silêncio que serviu para esculpir o som (é a expressão que uso), direi que o som serve para esculpir o silêncio. Neste sentido o silêncio já é uma obra.
Claro que sabemos que o silêncio propriamente dito não existe, há sempre qualquer ruído ambiental, etc.. Agora o que me tentou sempre… trabalhei vários aspectos da utilização do silêncio, sempre com a esperança de conseguir fazer um dia uma obra interessante a partir só do silêncio, ou quase só silêncio e de sons indeterminados, aquilo a que o leigo chama normalmente "ruído".
Digamos que os sons a esculpir o silêncio, os sons indeterminados e alguns aspectos da escola norte-americana, sobretudo Morton Feldman – marcaram-me. Claro que cozinhei esses ingredientes à minha maneira e suponho que o Webern, se ouvisse uma coisa minha, não diria: "isto aqui é minha influência". Nem o Varèse, nem o Feldman… porque essa influência palpável não existe. Disse que cozinhei tudo à minha maneira e suponho que se há qualquer coisa a que se possa chamar estilo, em mim esse estilo é real, cada obra tem algo que de facto já viveu em outras obras anteriores, há qualquer parentesco.
No contexto da "geração de 60", à qual pertenço, na minha perspectiva, e fazendo um juízo de valores sobre os compositores que integram essa geração – a minha música não tem nada a ver com a música do Jorge Peixinho, a minha música não tem nada a ver com a do Emmanuel Nunes, a minha música não tem nada a ver com a da Constança Capdeville, ou do Cândido Lima… Não me sinto um epígono, não me sinto nenhum génio, mas o que eu faço, sou eu que o faço.

O seu estilo enquanto compositor é de facto muito forte – é mesmo a sua própria voz. Eu acho que isto é muito importante e um objectivo de muitos compositores. Neste contexto, é curioso relembrar uma entrevista anterior consigo conduzida por António Pinho Vargas e publicada na Arte Musical [IV Série, n.º 2, Lisboa 1996], em que citou estas palavras de Virginia Woolf: "Estará a chegar a altura em que poderei suportar a leitura das minhas palavras impressas sem corar, nem tremer, nem querer esconder-me?" Acha que para si também chegou essa altura?

Álvaro Salazar: Hoje em dia eu gosto da minha própria música, mas suponho que nisso não sou original de maneira nenhuma. Gosto de ouvir uma obra minha, reouvir uma obra quando já me esqueci dela, como se fosse de outro autor. O que quero dizer – é importante criar um mínimo de objectividade crítica, que na altura em que se compôs não existia. E às vezes tenho surpresas positivas. Ainda no outro dia no Palácio de Cristal na exposição Musonautas, Visões & Avarias [7 de Setembro – 18 de Novembro de 2018, Galeria Municipal do Porto] pus os auscultadores que estavam lá pendurados. Não sabia o que estavam a transmitir. Era uma coisa que me pareceu conhecida… afinal uma obra minha para dois pianos. E gostei dela! Achei que estava bem feita, uma obra sedutora e original.

E em que medida a composição e a interpretação da música – direcção da música de compositores de diferentes épocas com vários ensembles, inclusive com o grupo por si criado, a Oficina Musical – constituem para si actividades complementares?

Álvaro Salazar: Na verdade a direcção, seja de orquestras sinfónicas, seja de grupos de câmara onde eu podia incluir obras contemporâneas, deu-me o grande prazer de sair dos caminhos demasiado percorridos, e em segundo lugar ter o acesso a obras que me interessavam como compositor estudar, analisar e ver como é que os outros faziam. Eu acho que a minha grande escola de composição foi essa. Foi aliás a disciplina de análise a minha grande disciplina de composição e aprendi muito com esse trabalho.
Lembro-me que uma vez um crítico musical – chamemos-lhe assim, já morreu portanto não digo o nome – disse que se notava na minha direcção que tinha analisado as obras. E isso podia ser mau…

…qual foi a justificação que ele deu?

Álvaro Salazar: São aqueles “críticozinhos”, partidários do espontâneo. O espontâneo é não estudar e avançar de olhos fechados. Eu nunca me arrependi de ter analisado minuciosamente as obras que dirigi. E tanto o fiz em relação aos autores contemporâneos – Jorge Peixinho, Emmanuel Nunes, que para mim são dois compositores maiores em qualquer parte do globo – como aos autores de outras épocas, por exemplo. Dirigi bastante Fernando Lopes-Graça e alguma coisa do Luís de Freitas Branco. Nunca dirigi – e em algumas situações não dirigi certos autores por ter um olhar crítico sobre a sua música… Nunca dirigi Joly Braga Santos, por exemplo. Porquê? Na minha perspectiva Joly Braga Santos já está dito por Luís de Freitas Branco.

Foram as suas escolhas enquanto intérprete…

Álvaro Salazar: Sim, não obstante, elas mudaram com o tempo. Hoje já tenho uma posição diferente sobre o Lopes-Graça, diferente da que tinha naquela altura em que todas as pessoas com as quais privava tinham uma grande admiração por ele. Lembro-me, quando ouvi Graça pela primeira vez, achei avançadíssimo, e hoje acho quase o contrário. Tenho muita pena porque era muito amigo dele, que me pagava na mesma moeda.
Há um dito muito curioso do Graça, que disse ao Mário Vieira de Carvalho… Mário Vieira de Carvalho foi entre os musicógrafos aquele que mais enalteceu o Graça – ele "inventou" um Graça que talvez não existisse. Inventou um Graça de uma modernidade que não tinha. A admiração que eu tinha pelo Graça era uma admiração feita sobretudo de afinidades políticas. Porque Graça era um exemplo do cidadão contra o regime fascista e foi toda a vida um homem extremamente coerente. E pronto. E nós achávamos que ele era o máximo também musicalmente.
Então o Lopes-Graça um dia encontrou o Mário, com quem se dava como se ele fosse um filho, e o Graça saiu-se com esta frase: "Que desgraça, o nosso querido Álvaro". O Álvaro era eu e a desgraça era comigo. O Mário apanhado de surpresa pensou no pior… pensou que eu tinha morrido atropelado ou que me tinha suicidado, qualquer coisa, perguntou: "Mas o que é que aconteceu?!?" E o Graça explicou: "Caiu nas garras do Peixinho!" A expressão é espantosa, primeiro porque os peixinhos não têm garras, têm barbatanas! Mas eu achei piada. O Graça nunca me perdoou isso, nunca me perdoou ter caído nas garras de uma modernidade, que ele não conseguiu acompanhar.
O pensamento do Graça é fundamentalmente duma grande influência auditiva, e não analítica, de Béla Bartók. E digo auditiva porque entre a técnica bartókiana e a do Graça há um abismo. Porque o Bartók tinha uma coerência harmónica que conhecemos. Rejeitou a Escola de Viena – é certo. Não obstante, dentro das premissas do folclorismo, digamos assim, era um indivíduo avançado. Não é por acaso que Pierre Boulez o distinguiu, e nos seus próprios concertos dirigiu também Bartók e tinha uma impressão muito positiva dele, embora com aquelas reticências de ter passado ao lado da Escola de Viena.

Continuando o tema da música portuguesa, é interessante uma expressão que usou também numa das suas entrevistas anteriores, em que fala do "eterno recomeço da música portuguesa" [Arte Musical, IV Série, n.º 2, Lisboa 1996] – fazendo referência a uma arte que não consegue avançar para a frente, que fica ou volta sempre para o mesmo sítio. Acha que o mesmo está a acontecer hoje em dia, ou houve alguma alteração? Qual é a sua perspectiva da música portuguesa hoje em dia?

Álvaro Salazar: A música portuguesa sofreu uma alteração. O avanço, o momento decisivo deu-se de facto com a minha geração a que costumo chamar: "geração de 60", porque foi mais ou menos na década de 60 do século XX. O Jorge Peixinho apresenta as primeiras coisas por volta de 1959; ele era mais novo do que eu dois anos. Faleceu cedo porque sofria do coração e não se defendia também. Dessa "geração 60" quem são os compositores – Peixinho (1940-95), eu (1938), Cândido Lima (1939), Constança Capdeville (1937-92). Depois há uns casos muito curiosos que eu não sei classificar, a não ser não classificando. Um é Clotilde Rosa (1930-2017), que também faleceu recentemente. Clotilde Rosa era mais velha do que eu, oito anos. Não é da "geração 60", porque a primeira obra dela é de 1976…

Ela começou a compor só aos 45 anos…

Álvaro Salazar: Portanto começou na geração seguinte. O Filipe Pires (1934-2015) também é outro caso. Se fosse vivo teria 84. Começou como aconteceu a todos que estudaram no Conservatório em Lisboa, por uma fase neoclássica – as suas primeiras obras não tem nada a ver com a "geração de 60". Depois, tal como foi no meu caso, destruiu estas primeiras obras... "obrecas"... enfim... Subsequentemente tentou acertar o passo por uma maior modernidade, o que veio a fazer já depois dos outros colegas da "geração 60". Filipe Pires é da geração a seguir à de 60? Não. Antes de 60? Também não. É uma figura que está no meio das coisas. Em várias entrevistas ele usou uma frase à qual eu respondi sempre: "Ó Luís Filipe, tu não sei se te dás conta do que estás a dizer, mas o que estás a dizer… só te desvaloriza!" E a frase dele era: "Eu nunca andei à frente, andei sempre a reboque dos outros". Ora dizer "a reboque dos outros" significa: "Eu sou imitador dos outros”.

Voltando à questão da importância da geração por si denominada como "geração de 60"…

Álvaro Salazar: No início o avanço deu-se sobretudo com o Peixinho – ele que conviveu, não direi intimamente, mas conviveu com Pierre Boulez, conviveu com Karlheinz Stockhausen, e conhecia bem os compositores mais avançados do século: Luigi Nono, Luciano Berio… entre muitos outros. O Peixinho estava muito dentro das coisas. O Lopes-Graça não nadava nessas águas, já o sabemos.
Posso dizer que é com o Peixinho, depois com o Emmanuel Nunes (1941-2012) logo a seguir, que se dá um salto de que nasce uma nova geração, chamemos-lhe uma "geração da década de 70-75" com o João Pedro Oliveira – já dirigi a sua música, o Requiem (1993-94) e também várias obras dele foram tocadas pelo meu grupo, a Oficina Musical. A partir daí, há agora nomes que eu ainda nem conheço em obra. E fico espantado. Noutro dia falaram-me de um compositor jovem com muito talento… eu nunca ouvira falar nele. E nunca ouvira uma nota dele. Portanto, chegou a altura de poder estar também ultrapassado… mas não no sentido estético.

Qual então é a sua ideia de dividir a música portuguesa do século XX em gerações?

Álvaro Salazar: As gerações aparecem mais ou menos de 15 em 15 anos, mas não fui eu que inventei isso. Foi um grande filósofo espanhol José Ortega y Gasset, que escreveu muito sobre o conceito de geração e criou uma divisão de gerações de 15 em 15 anos, com possibilidades de ir mais uns anos para a frente ou para trás, sendo que cada período caracteriza-se por ter uma figura central, um grande génio por exemplo. E depois há os autores que andam à volta disso para a frente e para trás. Este método parece-me bastante sólido e filosoficamente assente. Vários musicólogos espanhóis – estou a lembrar-me de Enrique Franco (não o Francisco Franco, esse é de má memória) – adaptaram o método. O Franco dividiu a música espanhola em períodos, pelo menos o século XX todo. Ora eu também nunca recuei do século XX pela simples razão de que não tenho elementos. No passado mais afastado Portugal tem uma geração que é possível determinar, que são os polifonistas do século XVII. Não obstante depois há intervalos e quedas, que não se conseguem colmatar como deve ser.
Agora, por hipótese, tentemos dividir a música portuguesa do século XX em gerações – apesar de eu não gostar de dar nomes que às vezes levam a certas situações paradoxais. Adicionalmente, eu prefiro considerar não o ano do nascimento, mas sim as datas do início da produção musical. Isso é um critério musical válido. Porque a pessoa pode resolver – teoricamente, na prática seria impossível – durar até aos 105 anos e aos 100 anos começar a compor. Nada impede a aventura.
Teremos então a "geração da Primeira República em Portugal". Estamos em 1910 e assim andando para trás e para frente apanhamos Luís de Freitas Branco (1890-1955) e o António Fragoso (1897-1918). A geração seguinte – só posso intitulá-la de uma maneira, a "geração do Estado Novo". Contudo é injusto pôr na "geração do Estado Novo" o Graça, porque ele foi sempre contra o tal regime. Mas como hei de chamá-la? "Da Segunda República"? Não. Aquilo não foi uma república, foi uma ditadura. A Segunda República só acontece depois de 25 de Abril. Esta é que é a Segunda República…
Bom, mas digamos… a "geração da Primeira República" por volta de 1910. Depois a geração seguinte, que claramente posso chamar "do Estado Novo", ou pudicamente "da Segunda República" (que era uma ditadura) – Armando José Fernandes (1906-83), Joly Braga Santos (1924-88), Filipe de Sousa (1927-2006), Maria de Lourdes Martins (1926-2009)… e Fernando Lopes-Graça (1906-94), cujas primeiras obras quase coincidem com a fundação do Estado Novo. Portanto ele é um compositor "anti-estado-novo", mas que se situa no Estado Novo…
E depois… a "geração de 60" que também nos apresenta vários problemas. Tal como referi antes, como classificar Filipe Pires (1934-2015)? É uma confusão. Agora torna-se evidente que devemos considerar os conceitos de geração bastante fluídos. Se quisermos cortar à faca como quem corta um queijo, temos de interpretar esteticamente e não só factualmente.

E se dividirmos a música portuguesa no século XX desta maneira, em duas partes, qual seria o resultado? Quais são as correntes que a definem?

Álvaro Salazar: Vamos imaginar… vamos partir em duas partes só. Coloco a faca no queijo na "geração de 60". Até lá, o que é que se revela característico na música portuguesa? Por um lado: "folclorismo romântico", ou seja, enxertado no romantismo do final do século anterior. Exemplos: o próprio Luís de Freitas Branco quando escreve as Suites Alentejanas (1919 e 1927), Joly Braga Santos… Romantismo, ainda, com António Fragoso. Há quem diga que António Fragoso, se não tivesse morrido tão cedo, daria um compositor espantoso. Duvido! Na altura em que viveu, já o que escreve são páginas um pouco retrógradas, com laivos impressionistas. Neoclassicismo e impressionismo são as outras correntes que se prologam até à "geração de 60". Caracterizam a música portuguesa esses tais ingredientes, coincidindo no mesmo compositor ou em vários. Depois da "geração de 60" até ao final do século XX, há uma modernidade que tem alguns casos de “voltar para trás”, alguns "Escaravelhos" no meio disso tudo. Mas há também compositores alertados para o tempo em que vivem e querem abrir fronteiras novas.

E o futuro?

Álvaro Salazar: O futuro, o século XXI, como é que vai evoluir? O século XXI, para já nesses casos mais avançados, é o prolongamento natural do século XX. Não podemos prever o futuro… haverá de repente uma vitória dos – desculpem-me usar outra vez a expressão – dos "Escaravelhos" a começarem a fazer música ligeira apadrinhada pela Santa Madre Igreja? Para já não podemos ir muito além disto, a não ser observar os compositores que estão na onda… no alto da prancha de surf, ou os que estão já afogados lá atrás.

E quais são os seus projectos que tem agora nas mãos?

Álvaro Salazar: A idade foi passando e eu fiz em Março 80 anos. Queria durar ainda algum tempo, não muito, não peço muito, mas alguma coisa, para completar certos trabalhos. Por exemplo, obras que estão incompletas ou que precisam de uma revisão, mas não vejo para fazer essa revisão. Vejo… tenho em cima do piano quatro lupas para ler. Porque sou um leitor não só da bibliografia musical.

Também escreve poesia...

Álvaro Salazar: Escrevi um livro fracote, muito fracote, de que me arrependo. Mas tenho impressão que qualquer poeta começa por criar coisas abomináveis, quando se inicia na escrita. Mas, entretanto, não rejeito a poesia feita depois desse livro, chamado Labirinto, editado em 1961, que rejeito completamente. Mas ele existe, quanto mais não seja na Biblioteca Nacional e não posso ir lá e pegar-lhe fogo. O que eu hei de fazer…

Às vezes é difícil olhar para a própria obra com alguma distância, mas por outro lado é bom ter este registo para aprender e manter a continuidade do seu próprio processo criativo…

Álvaro Salazar: Eu mantive. Há também uma obra minha que está editada em disco: os Estudos Incomunicantes (2007) [Atelier de Composição, Porto, 2014]. No livrinho que acompanha o disco há um poema em português, com tradução em inglês. Em português, é uma obra poética minha recente e que aceito. Inclusivamente a peça teve – e não digo isto por vaidade – mas teve até uma referência crítica de uma professora universitária a dizer muito bem desse poema, desse texto e vou encontrar-me com ela para lhe mostrar outros textos, porque há vários.
Bom, voltando à questão dos projectos… Acho que a partir de agora só me restam duas coisas: na idade, tentar envelhecer ainda qualquer coisa, o que significa durar mais uns anitos. Na composição – com o auxilio do Pedro Junqueira Maia no computador – ir revendo as coisas que quero rever e outras que quero escrever ainda. Além disso tenho em perspectiva, também para serem editados pelo Pedro, um livro de entrevistas feitas a mim e outro de entrevistas feitas por mim a outros compositores. E pronto.

Para terminar a entrevista, podia revelar ainda quais obras do seu catálogo considera as mais marcantes no seu percurso?

Álvaro Salazar: Com certeza! Para mim um dos trabalhos mais marcantes e conseguidos é a Glosa e Fanfarra sobre uma Fantasia de António Carreira (1975).

Foi uma obra que demorou muito tempo a escrever…

Álvaro Salazar: Demorou bastante tempo e depois a revisão foi feita muitos anos depois. Foi uma obra de longa gestação, de constantes emendas.
Na primeira execução, no festival em Bacău, na Roménia, foi apresentado apenas um excerto. Depois apresentou-se em Espanha duas vezes na íntegra por José Ramón Encinar. E a seguir, Lisboa finalmente ouviu falar de mim na Gulbenkian – interpretaram-na duas vezes, agora pelo Lawrence Foster (Março de 2003).
Foster – agora um pequeno divertissement no meio da conversa – dirigiu muito bem os dois concertos com a Glosa e Fanfarra…. Fiquei satisfeito com a execução. Depois do concerto fui cumprimentar o Foster, que é um excelente maestro, mas não propriamente apaixonado pela música contemporânea. No fim, ele estava bem disposto e perguntou-me: "Gostou?" E eu disse: "Foi muito bem, sim senhor, muito bem". E ele disse: "Não é o meu estilo, mas esforcei-me para fazer bem". Respondi: "Fez muito bem, sim senhor". E depois achei que lhe podia dar uma piada: "Mas também, ó maestro Foster, não é todos os dias que se tem a chance de dirigir uma obra prima!" Ficou perplexo… até hoje ainda não sabe, nem eu, se lhe disse isto a brincar, ou a sério…

E porque esta obra é tão importante para si?

Álvaro Salazar: É importante porque foi uma espécie de laboratório, onde fiz muitas experiências. Fiz tantas experiências… que há uma parte da obra que vem no título – Glosa e Fanfarra… – a Fanfarra não está na partitura! A cópia foi feita na Musicoteca em Lisboa. O editor saltou uns compassos, não muitos, mas esses poucos compassos – são uns cinco ou seis, algo repetitivos – é que constituem a Fanfarra! E não está na edição. A obra nunca foi tocada com a Fanfarra! Tanto que eu já disse ao Pedro Junqueira Maia: "Vamos lá meter uma página". O que chega para a Fanfarra...

Álvaro Salazar, Outubro de 2018
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