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João Quinteiro


Foto: João Quinteiro · © Sinem Tas

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Questionário/ Entrevista

· No decorrer do seu percurso quando percebeu que dedicaria a sua atividade criativa e artística à composição? ·

João Quinteiro: Comecei a estudar música, formalmente, bastante tarde. Apesar de ter começado a tocar guitarra ainda na infância e a criação, sob formas distintas, ter sido sempre uma inevitabilidade (desde que me recordo sempre precisei de improvisar, ou organizar sons em música e durante a adolescência, escrevia muito) só aos dezasseis anos é que se tornou evidente que o percurso passaria por estudar música. Ainda assim, o plano inicial não era compor, era seguir instrumento.
Penso já ter falado um pouco sobre isto na primeira entrevista. Ainda antes de entrar para o ensino superior, enquanto estudava no Conservatório de Viseu, tive a sorte de o José Carlos Sousa decidir abrir uma disciplina de Composição Livre, onde participei durante os meus dois últimos anos no Conservatório de Viseu. O encontro entre a minha necessidade de criar, muitas vezes desorientada e, na altura, a descoberta da música e do pensamento formal dos compositores da primeira geração de Darmstadt abriu de forma radical um universo de possibilidade e de realização criativa que rapidamente se tornou a resposta a muitas das questões que na altura me desinquietavam.
Não sei, contudo, se terá sido este o momento em que decidi «dedicar a actividade criativa e artística à composição». Em boa verdade, não sei se esse momento (singular), alguma vez aconteceu. O meu percurso, apesar de focado na composição musical, foi-se fazendo de diversos momentos, alguns de confirmação, outros de negação. O balanço vivido do percurso, as experiências que cada «opção» seguinte me permitiram, fizeram com que, a cada passo o caminho seguisse por aqui.
O contacto com pessoas que me marcaram, seja por reflexo, por contraponto ou oposição, que me obrigaram a reflectir, questionar e alargar as perspectivas, o entusiasmo e a necessidade de criar. O rigor e a exigência do Emmanuel Nunes, a descoberta da música do Lachenmann e do Nono, o contacto com a generosidade e a procura de beleza incansável do Beat Furrer, as muitas conversas sobre pensamento e posicionamento musical com o Pedro Figueiredo, com a Isabel Soveral, com o Miguel Azguime, a amizade e a admiração pela dedicação e nível de intérpretes como o Henrique Portovedo, o Marco Fernandes, a Clara Saleiro o Francisco Cipriano e a Mrika Sefa, o Paulo Amendoeira, o Rui Antunes (estou a deixar muitos músicos que admiro de fora, mas depois a resposta não tinha fim) foram e são elementos de confirmação e ao mesmo tempo de questionamento pessoal não apenas sobre se estava a fazer o que quero, mas se sou ou não competente para que o que quero fazer esteja no patamar em que eu acho que deve estar. Esta confirmação deve ser um processo dialético, contínuo e decorre, para mim, em muitos momentos distintos, mas particularmente na relação com pessoas que me vão obrigando a descobrir sempre um pouco mais sobre mim próprio, muitas vezes nem sequer por «influência», mas por me desacatarem a curiosidade ao ponto de ter de me levar a sítios onde ainda não estive. Concluindo, não tenho qualquer aspiração a chegar ao momento definitivo em que decido dedicar a minha actividade criativa à composição, prefiro ir avançando, de experiência em experiência, de obra em obra, de desacato em desacato e, nesse processo, ir descobrindo, não se serei compositor, mas se ainda sou!

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objetivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

JQ: A resposta a esta pergunta, no meu caso em particular, pode ser ambas … e talvez por isso, nenhuma das duas hipóteses se encaixe devidamente. Não gosto especialmente de planos. O meu pai citou-me demasiadas vezes o Agostinho da Silva, «não faças planos para a vida, que podes estragar os planos que a vida tem para ti.» 1 Não me querendo repetir relativamente à minha resposta anterior, mas os “planos”, vão-se fazendo de confirmações, de experiências, algumas que pelos desafios e estímulos que trazem me vão empurrando para um lado, outras que pelo inesperado me vão empurrando para outro. Não quero parecer estar a apontar para alguma forma de niilismo, é na verdade o oposto. Em relação a planos, direi apenas que se/quando os tenho, fazem sempre parte de um processo que é vivido, questionado e sempre mutável.
Por outro lado, no que toca a muitas das minhas obras, não diria «plano», mas escrevo frequentemente por ciclos ou conjuntos de obras, que de forma autónoma se relacionam. Contudo, estas relações e o próprio processo de escrita destas obras, vai-se fazendo a par e passo com a revelação das oportunidades ou das dificuldades que surgem. A título de ilustração, este ano, 2024, é por coincidência um ano de conclusão para três destes ciclos. Concluí, recentemente, a minha “Canção III – Pairs: á propos de l’intériorit’e”, que é a última de um conjunto de quatro canções que decidi escrever em 2019. Encontro-me neste momento a terminar o meu primeiro projecto de ópera, que envolveu a criação de dez obras satélite, que comecei a esboçar em 2015. Mais tarde no calendário irei compor a peça “Dynamis”, que será a última de um conjunto de quatro obras que comecei em 2010. Em momento algum na tomada de decisão do que era importante para mim, particularmente, quanto aos elementos composicionais que interligam estas obras, tratei o processo de as criar como o “cumprir de um plano”. Estas obras existem em ciclo porque partilham elementos genéticos que as tornam próximas, familiares, umas das outras. Contudo, o processo de as fazer chegar a ser o que têm de ser, acontece passo a passo e nos momentos em que as circunstâncias tornam inevitável que elas aconteçam.
Para concluir, a título de exemplo, o conjunto de oito obras que comecei em 2009 sobre os sabbaths pagãos ainda só tem três obras escritas, não faço a menor ideia (nem tenho planos!) relativamente ao momento em que estarão todas concluídas. Sei, contudo, que elementos genéticos estarão presentes em cada uma delas.

· Quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais no tempo presente? ·

JQ: Esta pergunta poderia levar-me para dois lugares distintos. O primeiro, pessoal, para o qual admito ter uma resposta curta. Evito formular de forma demasiado definitiva preocupações artísticas que se imponham demasiado ao que as obras podem vir a ser. Isto é, preocupa-me que as obras me desafiem e me expandam enquanto processo de reflexão e criação, que desafiem os músicos enquanto corpos que lhes dão vida táctil, que desafiem e desacatem a escuta, a reflexão e a experiência de quem as recebe, mas para tal, prefiro que cada obra revele, na multiplicidade vivida de processos e relações que estabelece com cada interveniente desta equação, para que desacato particular aponta.
Já de uma perspectiva não particular, mas de campo (não sei se isto configura uma preocupação), tenho pensado recorrentemente em duas coisas, relacionalmente distintas, que partem de experiências mais ou menos recentes, vividas nos últimos anos. Por um lado, dou por mim muitas vezes a pensar sobre Machaut, a escutar a sua música à procura do lugar onde o sacro e o profano se encontram. Eu sei que pode não parecer uma preocupação presente, mas em boa verdade, penso cada vez mais que, para mim, o lugar da experimentação, do desafio e da criação musical artística aponta, sem compromisso ou condescendência, para o lugar da redescoberta da expressão, que foi ao longo do século XX (um pouco como os cristãos romanos fizeram à música durante a idade média) essencialmente um objecto de colonização selvagem do espírito, nas mãos da indústria comercial. Parece-me fundamental trazer a beleza, a expressão e o deslumbramento para o lugar da criação, sem que isso signifique, de forma ou feitio algum, uma cedência relativamente ao posicionamento dos objectos enquanto mecanismos de desinquietação. Combater, ativamente, a ruminação da expressão evidente e reencontrar o lugar onde a expressão se cumpre enquanto desafio aliciante da escuta.
Uma segunda preocupação presente, que, contudo, está directamente relacionada com a primeira, é um certo abandono do processo de reflexão associado à composição, que tenho de vez em quando encontrado em alguns compositores e compositoras e que me parece, por vezes, excessivamente desinteressado da reflexão em detrimento do «som pelo som». Compreendo, claro, que a matéria-prima musical de experimentação se encontra, felizmente, num ponto de amadurecimento e auto-confiança suficiente, para que sem pudores ou intelectualizações vazias, possamos todos explorar, explorando. Contudo, encontro com alguma recorrência um certo empobrecimento da relação pensamento-obra, num espírito quase clássico de «fazer por fazer». Parece-me que, não por coincidência, tal como no clássico, isto se materializa muitas vezes em objectos pobremente orquestrados, que apontam para pouco mais que o artifício do «contemporâneo esquisito». Esta questão preocupa-me, essencialmente pelo empobrecimento dos objectos produzidos, recorrentemente dependentes da excelência e da criatividade dos intérpretes, mais do que das obras propriamente ditas.

· Em que medida a circulação entre os universos, acústico e eletroacústico, tem vindo a enriquecer a criação musical das últimas décadas? Existe na sua música uma influência mútua entre estas duas práticas? ·

JQ: Quanto à primeira parte da pergunta, admito que não serei a pessoa nem ideal, nem suficientemente amadurecido no universo eletroacústico, para que possa dar qualquer reposta que valha a pena. Quanto à segunda parte da pergunta, por coincidência, a última obra que escrevi, “Canção III – Pairs: à propos de l’interiorité” (2024), foi a primeira onde utilizei elementos sonoros electroacústicos, devido a um desafio lançado pelo Duo Nada Contra. Admito que se não fosse pelo entusiasmo de escrever para estes músicos em particular, não teria de forma alguma aceite o desafio de explorar um elemento que, conscientemente, sempre optei por não integrar nas minhas obras. Talvez tenha sido uma forma de catarse, de resolver questões que estavam penduradas em mim há muito tempo. Se existiu influência destes meios na minha música até aqui? À parte questões de espacialização que exploro de alguns anos a esta parte, e da escuta de alguns compositores que muito aprecio (Luigi Nono, Emmanuel Nunes, Mark Andre, a guitarra eléctrica em Billone e no Bedrossian), penso que esta última obra abriu a possibilidade de obras futuras que venham a integrar uma componente electro-acústica e, nesta medida, será uma resposta a guardar para o futuro!

· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·

JQ: O timbre, seja na minha ou na música de qualquer pessoa que componha parece-me, antes de mais, uma inevitabilidade. Admito já que vou passar ao lado dos interesses de juventude na relação específica com o timbre, simplesmente porque não compreendo, no meu caso particular, qualquer relação directa entre uma coisa e outra, isto para não dizer que me sinto ainda jovem o suficiente para que os meus interesses de juventude sejam ainda os que tenho hoje! Penso que a questão se prenda assim à importância que o timbre, enquanto manipulação de «cor» tem ou não enquanto agente estruturante na minha música. A resposta mais simples e direta é: na minha música o timbre é um parâmetro conscientemente nuclear e determinante do resultado dos objetos, muitas vezes ultrapassando a grande distância a importância de parâmetros como a altura definida ou o a determinação absoluta de durações.
O timbre é, para mim e em muitas das minhas obras, a manifestação primeira de uma determinada activação energética que revela ou coloca em evidência o corpo que soa. Essa evidência do corpo, do som enquanto libertação energética e a riqueza diversa do timbre enquanto campo ilimitado de descoberta e possibilidade são elementos de primeira ordem no meu processo de exploração de materiais.

· Na entrevista que deu ao MIC.PT em dezembro de 2019 disse: «Componho pela inevitabilidade de o fazer, pela presença súbita de objetos que são som e que exercem uma pressão tremenda e ocupam um espaço enorme da minha disponibilidade mental.» 2 Quais são estes objetos sonoros e como descreveria as pressões que eles exercem? ·

JQ: Bem, a resposta a esta questão poderá implicar níveis de abstração elevados e que, não tenho até certo ponto, interesse em que sejam outra coisa que isso mesmo, abstração.
Há dias, numa palestra que fui convidado a fazer sobre a vida enquanto compositor, perguntaram-me se já tinha alguma vez passado por uma fase de ausência de ideias para criar. Admito que me saiu, talvez demasiado simplesmente, um imediato: não. Talvez também por força de duas circunstâncias: a primeira o facto de ser muito lento a escrever e a segunda o facto de ter uma vida excessivamente ocupada, por regra ocorre-me o oposto, não tenho o tempo que queria/preciso, para concretizar em tempo útil as ideias sonoras que exercem essa pressão que referi na entrevista anterior. E depois, não se trata apenas da materialização sináptica de ideias sonoras, que me parece ser condição inevitável da opção de criar música (a tal pressão de objectos que surgem não se sabe bem porquê nem como) mas, para mim, uma certa relação do tempo que uma ideia sonora precisa entre o momento em que surge inesperadamente e o seu amadurecimento necessário através do processo de procura dos «comos», «porquês» e «quandos» que lhe vêm associados enquanto coisa que quer transitar da ideia para o ser autónomo que é a obra.
Quanto à descrição das pressões que eles exercem, não me caberá a mim descrevê-las, para lá do assumir que me sinto afortunado por viver maioritariamente rodeado por pessoas que não me levam demasiado a mal os frequentes estados de distração e alheamento.

· Quais são as fontes extramusicais que no seu caso podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·

JQ: Depende muito de obra para obra, quando existem (muitas vezes não acontece a presença de fontes extramusicais). Por força do presente penso que a melhor forma de me dirigir a esta questão será a ópera que me encontro neste momento a concluir. Ocorre-me, por exemplo, a criação de cada personagem, que passou, em quase todas, por um processo demorado e complexo (para não dizer por vezes caótico) de descoberta e revelação continuada dos traços que compõem a psique individual de cada uma. Em cada personagem existem elementos dos poemas do José Mário Silva, ponto do qual parti para a elaboração do libreto, mas para além disto existem elementos que se foram revelando ao longo do tempo pertencer a cada uma, por vezes assumindo que pouco ou nada decidi em relação a isso. Foram traços de perfil, alguns que encontrei em outras obras, outros que encontrei em pessoas com quem partilho a vida, outros que encontrei em mim mesmo e que se foram revelando como ressonância evidente em cada personagem, mais do que a minha decisão de construção absolutamente racional de um objeto. Concretizando, para fugir um pouco a abstração excessiva, por exemplo a personagem Eurídice, parte de uma imagem inicial sugerida pelo poema do José Mário, mas inclui também muitos elementos estéticos que recolhi da série de quadros “Eurydice” da Bracha L. Ettinger, tal como inclui elementos paisagísticos que encontrei ao longo do rio Pineios, na Grécia (onde a Eurídice original terá sido picada pela cobra que a levou ao submundo). Para além disto, muitos elementos da personagem, da sua corporeidade, das circunstâncias que a envelopam e, por consequência, da sua vocalidade e da forma como esta é musicalmente construída foram descobertos em pessoas que me fizeram sentir que alguma coisa da «minha» Eurídice habitava dentro delas, pessoas que não sonham sequer que delas usei «lamelas» de expressão como revelação da identidade desta (e das outras) personagens. Para além disso, muitos elementos foram descobertos por ressonância em mim próprio de traços tangenciais, contrapontísticos ou antagónicos e que pertenciam à identidade de cada personagem.
Indo de encontro à pergunta e, agora já não apenas no que toca à ópera, as fontes extramusicais, quando existem, na minha música podem ser de qualquer ordem logo que ressoem algo da essência do que a obra precisa de ser.
Admito que me confunde muito a frequência com que me deparo com obras que fazem referência directa a certas fontes, sem que depois exista qualquer relação efetiva de escavação ou revelação com elas. Parece-me que esta forma de colonização ou apropriação propagandística de fontes externas pode ser perigosa, para não dizer pobremente enganadora.

· Em que medida os novos instrumentos eletrónicos e digitais abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·

JQ: Admito que estava prestes a saltar por cima desta pergunta, mas seduz-me especialmente a parte do «constrangedores»!
Como disse há algumas perguntas atrás, aceitei recentemente o desafio de escrever a minha primeira obra com recurso a elementos electrónicos. Na apresentação da peça, imediatamente antes da sua estreia, partilhei aquela que, para mim, foi uma das dificuldades no desenvolvimento inicial de materiais para esta obra: na resposta à pergunta «que som resulta do corpo de um teclado MIDI?» … a resposta mais evidentemente simples é – «nenhum». Para mim isto foi um constrangimento, uma vez que, como também já referi, o som que resulta de um corpo que se excita é um ponto de partida nuclear do meu trabalho e da minha própria ordem de ideias, imaginação e “pressões” criativas. Um teclado MIDI ou um oscilador virtual precisam, para mim, de uma resposta distinta a esta pergunta inicial. No processo de exploração e procura do que me interessa ou interessou na criação da “Canção III”, percebi que o teclado MIDI em particular cumpria três funções distintas: a primeira, um canalizador de ruído estático, a segunda, um canalizador de elementos «parafraseados» ou ativadores da memória e da tradição e a terceira função, um mecanismo de transformação táctil, que permite a transformação performada de elementos resultantes, neste caso, da percussão. Particularmente este lado da interpretação corpórea, mais uma vez, táctil, foi o gatilho que me permitiu ultrapassar alguns dos constrangimentos que o meio electrónico implica, ainda, para mim.

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

JQ: Não vejo sequer como serão dissociáveis a invenção e a pesquisa da criação. Parece-me que aqui o problema, como em tantos outros nós complexos da percepção no universo musical, é essencialmente semântica. Não se trata aqui, para mim, sequer de vanguarda ou de exploração radical. Contudo, penso que são posicionamentos particularmente distintos no que toca à criação de Arte (não apenas de música) a desresponsabilização implicada no criar objectos que de alguma forma apenas regurgitem ideias datadas e, por contraste, o posicionamento de abrir as obras à descoberta e à identidade perspética individual. Nesta fase, já não sequer coloco isto como crítica negativa a qualquer posicionamento composicional, cada vez mais acho que cada um deve compor não mais nem menos do que aquilo que quiser.
Contudo, sublinho, a semântica pode ser perigosa, porque chamamos os mesmos nomes a práticas e a posicionamentos distintos. Particularmente quando ouço retóricas que posicionam estéticas localizadas no século XIX e no início do século passado como «nova música», é importante perceber que isso tem um impacto não apenas nas obras, mas no espírito de quem consome música e das próprias entidades, que muitas vezes se valem desses facilitismos para alimentar lucros fáceis e imediatos. A missão da criação artística não é, nem nunca foi esta. É um pouco como as separações pobres e datadas implicadas no conceito de «erudito», ou «clássico», que são termos absolutamente presentes no nosso quotidiano, mas que referem a uma realidade que já não existe há bastante tempo. Separações como esta, hoje, colocam o ônus em critérios falaciosos para a separação estética das águas, quando não se trata de objectos absolutos, mas de um posicionamento face à criação.
Não há problema algum em realizar qualquer tipo de música, existe ou deveria existir espaço para tudo o que contribui positivamente para a vida. O problema muitas vezes trata de chamar vanguarda ou exploratória ou criação pela sedução que estes termos implicam, a objectos que não têm como preocupação, nenhuma destas práticas. Hoje, as barreiras da criação artística já não cabem dentro do que acontece «neste sítio», ou «com estes instrumentos» ou «nesta academia». O posicionamento sedentário e repetitivo de produzir exercícios estilísticos está presente, hoje, na música de tradição comercial, tanto como na música tonal clássico-romântica e na própria música pós-tonal, já passou tempo suficiente para que isto devesse ser óbvio. Não seria um problema, logo que fosse evidente que criar é um posicionamento distinto e que aponta para o desafio, mais do que para a agradabilidade e satisfação hedonista de rentabilidade imediata.

· Existe na sua atividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·

JQ: Depende da leitura que se faz da pergunta! Se se aplicar profissão e vocação, exclusivamente à prática composicional, a minha resposta é «não», mas admito que a minha prática profissional de composição decorre de uma relação directa com a construção da vocação e do posicionamento criativo, de forma sinceramente desligada da rentabilidade ou sustentabilidade que a criação me possa trazer. Isto é um problema complexo. Nos sete anos que trago na direcção da Associação Portuguesa de Compositores, tem sido objecto dos nossos esforços junto das entidades reguladoras e promotoras da criação em Portugal, tal como parceiros fora de Portugal, alertar para a situação de precariedade profunda da composição enquanto atividade profissional em Portugal. Nesta medida, e porque desde que comecei a compor de forma profissional compreendi que não queria ter uma co-dependência directa entre a minha sustentabilidade e a minha criação, desde há já muitos anos sou professor. Aqui, por vezes, há oposição. É um exercício muitas vezes difícil e exigente não ceder ao cansaço de gerir duas actividades profissionais, distintas, em simultâneo, sendo que me é imperativo sentir-me competente e respeitar as funções que desempenho em qualquer das actividades. Frequentemente isso significa habitar um certo limite da endurance, mas até agora, não é opcional.

· Selecione e destaque três obras do seu catálogo e justifique a sua escolha. ·

JQ: Em boa verdade irei então falar sobre três obras, sendo que cada uma por motivos bastante distintos.
A primeira peça, intitulada “Khatib’s Heart”, para saxofone barítono, três percussionistas e duas guitarras, teve um primeiro esboço escrito em 2009 e depois foi totalmente recomposta em 2015, não tendo, até à data, sido estreada. Escolho esta peça, em primeiro lugar, como forma de ilustrar o ponto a que me referia na questão anterior. A minha necessidade de criar esta obra não partiu de uma encomenda, de um pedido, ou de uma expectativa de interpretação concreta, mas simplesmente da minha necessidade de a criar. É uma obra que implica logística considerável, entre um amplo setup de percussões e as duas guitarras que soam exclusivamente espacializadas na sala e não a partir do palco. Ficarei, evidentemente, muito feliz quando for possível escutá-la a primeira vez, mas não a escrevi, tal como nenhuma outra obra (sejam encomendadas ou apoiadas), colocando os recursos à frente da necessidade de as criar. Em segundo lugar, esta obra acrescenta igualmente algo à pergunta anterior sobre os materiais extramusicais. O ponto de partida para esta peça foi uma notícia de jornal que guardei em 2008 e que descrevia o assassinato de um menino palestiniano de sete anos num raid israelita. Os pais de Khatib doaram o seu coração para transplante a uma menina israelita. Agora que penso nisso, penso que falei um pouco sobre isto na entrevista de 2019. Nesta obra estão presentes citações de duas canções de embalar e de uma passagem dos “Tenebrae Responsories” do Carlo Gesualdo.
A segunda obra é a “dois rios” (2019), escrita em relação a um poema do Luís Miguel Nava. Esta obra integra um conjunto de três peças para piano preparado e intérprete solista, sendo que a primeira de 2014, “A Sombra”, nunca foi estreada e a terceira “O sol e a cinza”, se encontra ainda por escrever. A “dois rios” foi encomendada pelo Festival Internacional de Música da Primavera de Viseu para estreia do Duo Sigma. Recordo-me que na altura a peça fez convergir uma quantidade muito considerável de coisas importantes para mim, particularmente focadas em torno da cidade de Viseu. Por um lado, regressar à poesia do Luís Miguel Nava (poeta viseense), que desde muito cedo se revelou de grande importância para mim, por outro, este poema em particular, que me ressoava algo do que sinto pelo Emmanuel Nunes, a quem a peça é dedicada e por fim, a encomenda partir de um Festival ligado ao Conservatório de Viseu, um lugar que foi da maior importância no meu percurso e uma cidade que apesar da distância, se mantém da maior importância na minha vida. À parte isto, escolhi também esta peça pelo que foi o processo da sua realização. É uma obra extremamente exigente, de uma perspectiva performativa, aliás, como muitas das minhas obras. Recordo-me que o trabalho de preparação para a interpretação foi bastante difícil, e muito marcado por dois termos distintos que admito, me desagradam sobremaneira: cedência e idiomático. Tal como qualquer repertório, existem obras mais exigentes e obras mais imediatas e isto refere, exclusivamente, à prática performativa, não tem peso estético, apenas mecânico e digital. A dificuldade ou facilidade de uma obra não determina a sua relevância, mas determina, sem dúvida, o sucesso da sua realização por parte dos músicos. Os desafios que a experimentação coloca estendem-se (muito) aos intérpretes, que ou estão mental e fisicamente disponíveis ou não, sendo relativamente curta a margem para estar no meio destes dois polos. Mas o mesmo se passa com o Brahms, com o Mahler, com o Liszt … ninguém discute a necessidade de meses de preparação para interpretar música de câmara de Brahms, contudo, se se pedem mais de dois ou três ensaios para algumas estreias, entramos no campo da dificuldade ou do compromisso relativamente ao que as obras precisam para chegar a ser o que são. Esta situação é muito complicada, mesmo porque se passa muitas vezes, face ao espaço muito limitado que a música de experimentação ocupa no que toca à sustentabilidade dos músicos que a ela se dedicam.
A terceira obra que escolhi foi a “Penélope, meio-dia” (2023), para harpa espacializada e actriz, que foi encomendada pelo Projecto DME e estreada em residência artística com a Salomé Pais Matos, no Lisboa Incomum. A escolha desta obra deve-se, na verdade, em primeiro lugar ao prazer enorme que me deu escrevê-la e também como contraponto ao que descrevi sobre a obra anterior. Em boa verdade, considero-me particularmente afortunado. Em conversa com o Pedro Figueiredo, há uns tempos atrás, ele dizia-me (com um ar brincalhão!), “Já viste que sempre que falas dos músicos com quem trabalhas, são sempre todos incríveis!”. E é verdade, pelo menos para mim, incluindo-o a ele próprio nessa lista! Tenho tido a sorte imensa de, nos últimos anos, ter trabalhado sempre com pessoas que admiro profundamente e de ter encontrado em quase todas estas pessoas, uma disponibilidade e interesse extraordinário no empenho que dedicam à minha música. Regressando à “Penélope”, é uma obra extremamente exigente, quer de uma perspectiva técnica, como de endurance, como da própria espacialização prevista. Encontrei no trabalho da Salomé uma dedicação imediata, uma abertura enorme à procura de soluções e à descoberta de uma musicalidade que me surpreendeu sempre. Durante o próprio processo de residência, o mesmo se passou com toda a equipa do Lisboa Incomum, pessoas da maior generosidade e empenho. Admito, agora que penso nisto, que poderia quanto a este ponto, felizmente, falar de mais pessoas e de outros espaços. Senti o mesmo, a um nível elevadíssimo por parte do Duo Nada Contra, que estreou recentemente a minha “Canção III – Pairs: á propos de l’intériorit’e”, tal como, já por muitas vezes, o enorme prazer de ser recebido no O’culto da Ajuda, onde a relação entre rigor e generosidade é sempre da maior ordem.

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projetos artísticos planeados para 2024, 2025, 2026, …? ·

JQ: Como já referi, encontro-me neste momento a concluir a minha primeira ópera, na qual tenho vindo a trabalhar desde 2015 e que será estreada no final de Maio desde ano. A conclusão deste projeto, para além da sua dimensão na escala da minha vida pessoal, será também um passo importante para a conclusão do meu doutoramento, que tem avançado, admito, lentamente!
Ao nível da composição tenho alguns projectos alinhavados, nomeadamente, irei iniciar este ano um conjunto muito alargado de peças a solo, as quais prevejo que estarão em desenvolvimento ao longo dos próximos anos. Irei também, ainda este ano, como já referi, escrever a “Dynamis”, para ensemble, encomendada pelo GMCL, que conclui o conjunto de peças iniciado em 2010 sobre aspectos particulares da vida pulsional. Para 2025 tenho previsto um projeto com o percussionista Nuno Aroso e o coletivo Clamat, mas em relação a este, para já, não direi mais do que conta com o meu maior entusiasmo pela possibilidade de trabalhar com o Nuno, que admiro imenso, pela primeira vez e num projeto de larga escala. Irei também iniciar em 2025 um novo conjunto de obras para grande ensemble. A primeira destas “superfície e interioridade da pele”, já se encontra esboçada e tem a estreia prevista no contexto do ISCM World New Music Days 2025 em Portugal.
Contudo, para além da criação de novas obras, estou presentemente investido no desenvolvimento do Concrète [Lab] Ensemble, projeto que iniciei juntamente com um coletivo de intérpretes, exclusivamente dedicado à música de exploração e invenção e que, apesar de nos encontrarmos ainda numa fase inicial, tem já alguns projetos entusiasmantes em cima da mesa. Neste momento encontramo-nos a preparar um concerto monográfico do compositor e amigo Eduardo Patriarca que irá acontecer no final de Abril em Vila do Conde. Iremos também realizar um ciclo de concertos com repertório solista e de câmara, do qual já decorreu o primeiro e que irá continuar ao longo do ano na Associação Cultural Cigarra. Para além disto, iremos gravar um CD com cinco obras em estreia escritas para o ensemble, no final de Julho.
O projecto do Concrète [Lab] tem sido de grande importância para mim, a vários níveis. Por um lado, permitiu criar uma plataforma de desenvolvimento e canalização para a prática regular de música de inovação do potencial infinito dos intérpretes que integram o grupo (sublinho a parte da prática regular!), o que, por si só, é algo muito raro e não só no contexto nacional, mas em qualquer contexto. Por outro lado, ao nível pessoal, o projecto tem-me colocado numa posição nova, muito desafiante, de direcção. Admito que não me revejo como maestro (na plena acepção do termo e do métier) mas ao mesmo tempo, tem-me sido de enorme prazer e desafio de mim próprio este lugar da direção. Sinto em relação a este grupo, como se estivéssemos a criar uma família!
Por fim, para concluir a questão dos projetos, no contexto da Associação Portuguesa de Compositores, estamos agora a trabalhar na organização e programação da terceira edição do CROMA – Ciclo de Música Contemporânea. Este ano estamos a tentar alargar o formato do festival, para integrar mais concertos e actividades. Este projeto, que até aqui já contou com a presença de compositores como o Pierluigi Billone e o Franck Bedrossian, junta-me aos compositores Pedro Figueiredo e ao Nuno Henriques na direcção artística, duas pessoas com quem já trabalho há muitos anos e por quem tenho uma estima maior do que consigo descrever. O projeto do CROMA, apesar de «nos sair do corpo», de forma muito literal, abre igualmente a porta a juntar ao longo de uma semana compositores, intérpretes e público num ambiente de partilha e comunicação que me parece ser essencial a um meio demasiadas vezes ostracizado e mantido marginal sob o disfarce conveniente do elitismo.

· Numa das entrevistas de 2020 o compositor Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» 3. Na sua opinião, qual é o papel que a música erudita contemporânea, ou a música de arte, desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? ·

JQ: Esta é, talvez, uma das questões mais complicadas e, simultaneamente, mais importantes no que toca à missão de criar arte, porque aponta, de forma concreta, para uma função da arte. Eu admito que concordo, sem muita hesitação, com o Haas, não apenas pela analogia que directamente posiciona quem cria arte na função de ampliação do tecido social, mas mais ainda pelo que ele diz depois disso na entrevista, ao estabelecer uma relação directa entre arte e o posicionamento político de ampliação do campo de acção em relação ao outro, particularmente no que toca ao combate aberto a todo o tipo de força que mova a experiência humana pelos recursos do medo, do ódio e do fechamento ao outro.
Este, apesar de ser um território perigoso, é crescentemente necessário, particularmente considerando que temos assistido a uma progressiva ascensão de forças políticas e governativas que apontam sem hesitar para valores retrógrados, antidemocráticos, selvaticamente capitalistas através de uma continuada estupidificação populista. Assistimos a isso neste preciso momento em Portugal. Admito que me assusta a facilidade com que tanta gente tem ignorado as lições da história recente do século XX, a facilidade com que forças com discursos de ódio e políticas do medo ganham dimensão alargada.
Em relação à criação artística, face a isto, trata-se não mais que acreditar na dimensão do potencial humano. É importante sublinhar que não se trata de um fechamento necessariamente conceptualizado, mas sim a um posicionamento criativo que potencie a experiência individual do campo, que desafia à amplitude, para que cada um siga o seu caminho de experiência e reflexão. Trata-se de acreditar que não precisamos de estupidificar a arte e, por consequência, o pensar e o sentir, mas pelo contrário, que a abertura ao crescimento deve desacatar esse potencial à abertura. Acima de tudo, parece-me ser uma chave fundamental a compreensão de que a generosidade não significa um compromisso individual, mas pelo contrário, que o desafio do campo fertiliza o espírito e enriquece a amplitude da experiência e, nessa medida, oferece um retorno coletivo. É importante combater activamente todas as forças que ciclicamente se vão erguendo e que apontam para o lugar da pequenez e do empobrecimento da vida, não só por quem vê essas forças pelo que elas são, mas precisamente por quem possa, por fragilidade, ser alvo fácil desse tipo de retórica. Sublinho, é importante para isto que a arte seja generosa, não condescendente.

João Quinteiro escreve de acordo com a Ortografia Antiga

João Quinteiro, fevereiro de 2024
© MIC.PT

NOTAS DE RODAPÉ

1 Frase atribuída a Agostinho da Silva.
2 Entrevista a João Quinteiro conduzida pelo MIC.PT em dezembro de 2019 e disponível em: LIGAÇÃO.
3 Entrevista a Georg Friedrich Haas conduzida por Filip Lech em junho de 2020 e disponível no portal Culture.pl: LIGAÇÃO.


João Quinteiro · Entrevista Na 1.ª Pessoa

 
Entrevista com João Quinteiro conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2019.12.09)
 

João Quinteiro · Playlist

   
João Quinteiro · Eurídice, sete da manhã (2016)
Marco Fernandes (percussão), Teresa Doblinger (dança)
Gravação: Festival Música Viva 2020 · O’culto da Ajuda em Lisboa · 9 de dezembro de 2020
  João Quinteiro · Eros (2017)
Lisbon Ensemble 20.21, Pedro Pinto Figueiredo (direção musical)
Gravação: Teatro Municipal de Vila do Conde · 2017
 
   
João Quinteiro · Canção I – I Ascolta (2020)
ASTRUS DUO: Manuel Teles (saxofone), Paulo Amendoeira (percussão)
Gravação: O’culto da Ajuda em Lisboa · 16 de fevereiro de 2024
  João Quinteiro · Penélope, meio dia (2023)
Salomé Pais Matos (harpa)
Gravação: Lisboa Incomum · 12 de novembro de 2023
 
   
João Quinteiro · Canção III – Pairs: à propos de l’interiorité (2024)
NADA CONTRA: Mrika Sefa (piano e teclados), Francisco Cipriano (percussão)
Gravação: O’culto da Ajuda em Lisboa · 3 de fevereiro de 2024
   
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