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Carlos Marecos


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Questionário/ Entrevista

· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspetos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·

Carlos Marecos: Não posso dizer que tive na família as minhas raízes musicais, embora o meu irmão, oito anos mais velho que eu, tocava guitarra como autodidata, e fui aprendendo com ele a acompanhar as canções de intervenção após o 25 de Abril; canções do Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco, entre outros. Nessa altura frequentei alguns ateliers na Juventude Musical Portuguesa de construção de instrumentos onde, bem no espírito da época, produzíamos os nossos próprios instrumentos, talvez com 12 ou 13 anos.
Mas talvez a origem do que me define hoje, esteja nas minhas primeiras tentativas de compor solitariamente, após os primeiros estudos musicais em guitarra clássica com o professor Rogério Gouveia que também era o meu professor de formação musical, ou solfejo como se dizia na altura, e isto no Instituto de Música Vitorino Matono, que na altura não era uma escola oficial. Alguns anos depois, a conselho do meu professor de guitarra, para ter uma melhor formação teórica, comecei a frequentar a Academia de Amadores de Música; lembro-me de ele me falar na Acústica, na História da Música e na Composição. Apesar de gostar de tocar guitarra também me interessava por outros instrumentos para tentar compor, mas demorei algum tempo a poder ter bons instrumentos; tocava com a guitarra do meu irmão e, quando pude, comprei um sintetizador o DX27 da Yamaha uma versão muito simplificada do DX7, mas já era polifónico o que era um luxo para mim. Lembro-me de prender algumas teclas com pesos para criar pedais e depois improvisar e tentar compor sobre essas referências, uma música algo melancólica e modal (sem consciência disso).

· Quando, no decorrer do seu percurso, percebeu que dedicaria a sua atividade criativa e artística quase plenamente à composição? ·

CM: Hum, um grande salto da primeira para a segunda pergunta, mas pode dizer-se que quando entrei para a Academia de Amadores de Música, havia uma leve ideia de poder vir a ser músico, embora sem a certeza se isso seria possível. A minha mulher, que também começou no Instituto Matono, onde a conheci, juntou-se a mim mais tarde na AAM, por ser já uma escola oficial que nos podia dar uma habilitação. Ao frequentar de início escolas não oficiais, talvez por não termos qualquer aconselhamento familiar nem de ninguém do meio musical, acabámos por oficializar os estudos musicais um pouco tarde. Éramos muito humildes e pouco ambiciosos, apenas desejávamos estudar música para depois talvez poder vir a ensinar numa escola do ensino regular, talvez numa pequena vila no campo, tranquila, e viver lá; sentíamos que se conseguíssemos isso já seríamos realizados. Dentro desse contexto a vontade de compor existia, mas não pensava ainda como profissão. Só quando comecei a estudar Análise e Técnicas de Composição é que comecei a interessar-me pela composição mais a sério, onde para isso também foi importante a contribuição dos meus professores na AAM, o Eduardo Vaz Palma e o Eurico Carrapatoso. Depois começámos a pensar em seguir estudos superiores na Escola Superior de Música de Lisboa, e até foi a minha mulher que me incentivou a tentar a composição um pouco mais cedo do que eu tinha pensado.

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objetivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

CM: Diria que o meu percurso não foi de todo determinado por um plano muito concreto. A realidade é de facto um pouco caótica, mas independentemente disso, penso que em arte não é possível ter um plano muito definido.
O percurso faz-se de uma aprendizagem constante, da curiosidade de conhecer coisas novas ao mesmo tempo que se vão descobrindo ou redescobrindo coisas do passado. As descobertas mostram-nos novos caminhos, modulam-nos, e modulam também o nosso percurso. Nós somos seres sociais, vivemos e relacionamo-nos com os outros e necessariamente as nossas criações artísticas também se relacionam com as dos outros e vice-versa. Fazemos escolhas, sabemos mais por onde não queremos ir, do que onde queremos chegar.

· No tempo presente quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais? ·

CM: No presente a minha principal preocupação artística, pode não parecer necessariamente artística, mas sim um pouco paralela. Tenho vindo a sentir que o mundo da música sofre de um problema de gestão do tempo, onde nas palavras da filósofa Joke J. Hermsen, num mundo onde o pensamento neoliberal impera, o tempo é medido em termos económicos, onde o mensurável prevalece acima da imaginação.1 Na criação artística é preciso tempo para que surjam boas ideias, para que se consiga procurar o que não se conhece ou mesmo mudar de rumo.

Porque pintar, como escrever ou compor, significa sobretudo atrever-se a esperar, esperar que o corpo se relaxe por completo, que o espírito encontre a paz, e que a alma fique livre de preocupações e de outros ruídos. Primeiro temos de nos desfazer das expectativas e representações mais óbvias e normalizadas e, para isso, há que preservar na espera. Temos que dar ao nosso espírito a oportunidade de limpar bem todas as imagens convertidas em clichés. Nesse sentido, esperar significa esvaziar-se, como se a nova obra tivesse de criar primeiro o seu espaço num lugar ainda envolto em sombras antes de emitir a nova luz que está dentro dela.2

Precisamos também de tempo, para quando termina a gestação de uma obra, termos condições de preparar a sua apresentação, o seu nascimento. Na música temos estado dominados pela organização de um tempo demasiado contado para todas as fases da criação, desde os prazos de concretização de obras apoiadas por instituições ou pelo estado; o tempo disponível para criar, que não pode pôr em causa as obrigações que garantem a subsistência (pois a criação não garante à partida a subsistência) é um tempo muito curto em todo o mundo, sem que se ofereça o tempo necessário à preparação cuidada da sua apresentação. O cuidado que o criador tem na gestação da sua obra merece todo o cuidado na preparação e montagem da sua apresentação pública. Como dizia José Saramago (por ordem inversa, mas com a mesma intenção, creio): não percamos tempo, mas não tenhamos pressa. O objetivo artístico quando está a nascer é sempre frágil e precisa de ser tratado com todo o cuidado. Eu sei que a perfeição não existe, mas devemos ter a intenção de a tentar atingir ao preparar a apresentação de uma obra, e para isso é preciso tempo. Não assisto a muitos eventos artísticos que rocem a perfeição, mas quando isso acontece a minha sensação é que essas produções emanam tempo, sente-se pela sua aproximação à perfeição o «cheiro» a tempo.

· Em que medida os novos instrumentos eletrónicos abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·

CM: Filosoficamente diria que não há diferença entre composição instrumental e composição eletroacústica; simplesmente é música para outro «instrumento». Ao longo dos tempos, os instrumentos musicais têm-se desenvolvido com a evolução da tecnologia, um piano do século XIX já tinha uma tecnologia muito mais avançada do que os primeiros pianos, e o mesmo acontece com a das ferramentas eletroacústicas, os instrumentos digitais e as técnicas associadas. A mim interessa-me mais a música mista (instrumentos com eletrónica), do que a música puramente acusmática, pelo facto de implicar a existência do intérprete, como uma interface entre o compositor e o ouvinte. Com a componente eletrónica esse intérprete está apoiado em tecnologias do nosso tempo que podem ajudar a expandir a nossa paleta criativa.
Sem dúvida que em muitos aspetos a componente eletroacústica tem enriquecido a composição, mas não me interessa a tecnologia para apenas reforçar uma música que podia ser simplesmente acústica e transportá-la para grandes espaços, e também não me interessa apenas pelas suas ferramentas tecnológicas que permitem certas «habilidades» informáticas, que eventualmente espantam o público apenas pelas suas possibilidades. O que me interessa é a contribuição que essa tecnologia pode dar para a transformação e desenvolvimento da linguagem musical; mais do que usar ferramentas eletrónicas «vistosas» pela sua extravagância tecnológica, interessa-me a energia que a componente eletrónica nos dá, bem como a espacialidade e envolvência que proporciona com sistemas multicanal, seja em suporte fixo ou em tempo real, e preferencialmente num contexto de música mista. Interessa-me também muito a manipulação do timbre, seja na criação de sons desconhecidos, seja pela manipulação e a distorção do timbre dos instrumentos.
Em ópera, por exemplo, a tecnologia audiovisual atual pode trazer ao palco técnicas cinematográficas misturadas com técnicas teatrais. A simples amplificação de um cantor permitirá sussurrar numa determinada cena, com timbre natural, e fazer ouvir claramente esse sussurro como no cinema, se o desejarmos, e sem a típica empostação operática necessária a uma sala grande sem amplificação. Os meios tecnológicos possibilitam fazer ouvir a intimidade de uma personagem, aproximando assim a linguagem teatral da linguagem do cinema. Com todas as restantes componentes da música eletroacústica muitas possibilidades se abrem com esta filosofia.

· Recentemente, em 2020 e 2021, tem participado em projetos de dança criados em colaboração com a coreógrafa Sofia Silva – “Tríptico” e “Interior Presente”. Qual a importância de criações interdisciplinares no seu percurso? ·

CM: O meu interesse pelas criações interdisciplinares tem origem na minha sensação de que o modo convencional de apresentação de concertos em salas convencionais, com uma etiqueta própria, está um pouco esgotado.
A simples presença de outra disciplina artística, em conjunto com a música ao vivo é, só por si, uma diferença considerável para que o evento possa adquirir um interesse e uma concentração diferente. A dança, foi algo que sempre me interessou e que já vem de trás, pois já tinha trabalhado, com mais quatro coreógrafos diferentes, antes de trabalhar com a Sofia. Desde 1994 até agora escrevi oito peças para dança contemporânea.
A música para dança apresenta-se como um desafio muito interessante porque tanto a dança como a música podem ter uma linguagem abstrata. A música instrumental, não nos dá uma dramaturgia clara, como pode ter a música vocal que apresenta um texto cantado, que necessariamente nos transporta para um universo dramatúrgico claro. Por sua vez, se existir uma dramaturgia ou uma narrativa numa música instrumental, essa narrativa é construída a partir de características exclusivamente musicais, tenha a inspiração ou o título sugerido elementos extramusicais. Na música o discurso chega-nos através do som, são os instrumentistas que transportam o discurso. Com a dança passa-se o mesmo se assim se quiser, os corpos em cena podem não definir necessariamente imagens humanas, mas sim objetos abstratos em movimento ou estáticos. Contudo, a presença de um corpo em palco leva muitas vezes a que o coreógrafo lhe atribua a função de uma personagem, como na dança-teatro, embora com a vantagem de, estando o foco no movimento e na relação com a música, essa personagem pode ser mais abstrata, e com uma narrativa muito mais aberta do que num texto teatral. Todas estas nuances tornam a dança e a música como parceiros privilegiados, como aliás sempre foram. Muito mais se poderia dizer da relação da música com a dança, falando da maneira como se relacionam as duas disciplinas artísticas, se a dança segue um movimento independente da música ou o contrário, se têm pontos de contacto, se uma é o suporte da outra, ou se se relacionam mutuamente de forma mais próxima com os elementos que lhe são comuns, como o ritmo (o imenso que haveria para dizer a este nível), o gesto fluído, o gesto articulado, os momentos simultâneos, o contraponto, as camadas texturais, o que está em plano de fundo e o que está em primeiro plano, os solos, os solos e o outros elementos que os suportam ou partilham os mesmos espaços. Tudo isto é fascinante para mim, e mais do que procurar uma arte completa, com todas as disciplinas artísticas, como muitas vezes se fala da ópera, o que me interessa é em cada momento procurar uma relação especial entre duas ou mais áreas artísticas.

· Como descreveria o timbre da sua música? Partindo dele, é possível encontrar os seus interesses musicais de juventude? ·

CM: O timbre é um elemento crucial na minha música atual, mas na verdade não era uma das minhas preocupações na juventude, pelo menos de forma consciente. Creio que cheguei a essa preocupação muito pelo estudo e pelo fascínio que adquiri posteriormente pelos elementos constitutivos do timbre e pela relação do timbre com a harmonia, dada a sua evolução ao longo da história da música. Aquilo que poderia já estar nas minhas primeiras experiências composicionais era a procura de polos mais ou menos claros, mais ou menos estáticos, que nos dão na escuta referências musicais que funcionam como pontos de apoio ou de repouso, entre várias fases do discurso musical. Quando essas referências são verticais, isto é, harmónicas, podem funcionar como uma espécie de atração gravítica no registo grave, o que faz com que determinados sons em registos mais agudos se sintam associados entre si, como que «orbitando» essas referências graves. Neste caso podemos dizer que entramos no domínio do timbre, ou seja na sua componente harmónica e na relação dos seus harmónicos para com a fundamental. Deste ponto de vista, e de forma intuitiva, já existia na minha juventude um ponto de contacto com o timbre, mas a sua exploração mais alargada com outras componentes ficou de facto para depois.
Nos dias de hoje, procuro escrever uma música que compatibilize uma componente abstrata criada por mim, que funcionará em conjunto com estruturas naturais, ou seja, que tenham a ver mais diretamente com a natureza física do fenómeno sonoro. Assim, a componente abstrata é maioritariamente constituída por escalas que não se repetem à oitava e mantêm um padrão intervalar característico e as estruturas naturais podem ser vistas como estruturas espectrais, nas suas mais variadas dimensões como a componente periódica, harmónica ou inarmónica, além do trabalho com o ruído, ou seja, com as componentes aperiódicas. A relação entre ambas pode-se estabelecer de inúmeras formas, mas posso dar dois exemplos:
– numa escrita predominantemente horizontal, posso ter duas linhas em contraponto (criadas a partir das referidas escalas não oitavantes) onde cada uma delas pode estar reforçada com a componente harmónica de um timbre natural através de outros instrumentos na textura, realizando aquilo a que Gérard Grisey chamava de «síntese instrumental»;
– na minha escrita, é também comum a criação, no registo central, de um gesto musical com as minhas estruturas abstratas; e a colocação, nos registos extremos, de estruturas espectrais que possam partilhar a textura com a componente abstrata. Ao interagirem, é possível «iluminar», acusticamente, a estrutura abstrata (num engajamento mais harmónico), ou «acinzentar» o gesto abstrato com componentes inarmónicas ou com ruído.

· No seu caso, quais são as fontes extramusicais que podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·

CM: Mais do que dizer quais são as fontes extramusicais que me servem como ponto de partida, penso que o mais importante é referir que esses elementos de facto existem no meu percurso e têm alguma influência no resultado musical final, embora essa influência possa, por vezes, ser evidente, ou não, para quem ouve a música.
Assim, para mim, os elementos extramusicais, podem ter influência ao nível da criação, da interpretação e da comunicação com o público.
Ao nível da criação, alguns elementos extramusicais podem funcionar como inspiração. A associação entre esses elementos e a música pode ocorrer ao nível simbólico, como a procura de signos da antiguidade clássica ou do nosso tempo. É também possível surgir-nos uma ideia extramusical a partir de uma emoção desencadeada ao ler um poema ou ao observar uma paisagem, emoção essa que serve de ignição para surgirem outras ideias musicais e se começar a ter a necessidade de compor.
Considero que todos estes elementos têm realmente uma influência nos gestos musicais criados e nos mais variados elementos e parâmetros musicais, mas não são nunca descritivos, sendo essa relação por vezes percecionada no resultado e outras vezes não.
Depois ao nível da interpretação, o conhecimento dos elementos extramusicais pode fazer parte dos recursos de que o intérprete usa para melhor fazer chegar o discurso musical do compositor ao ouvinte. O intérprete é sempre a interface entre o compositor e o ouvinte, por isso é essencial que conheça a linguagem do compositor nos seus elementos e funções essenciais. Não basta debitar as notas e ritmos, sem perceber o que está a «dizer» e com que intenção. Mas quanto aos elementos extramusicais considero que o intérprete pode saber quais foram ou não. Por vezes gosto de revelar quais foram esses elementos extramusicais, outras vezes é interessante para mim não influenciar o intérprete e esperar pela sua proposta interpretativa.
Para mim a apresentação de uma obra ao público é sempre um ato de comunicação, sendo que a música é suficientemente abstrata para permitir que cada ouvinte tenha uma leitura pessoal, diferente de pessoa para pessoa, e que se deixe emocionar por razões diferentes, o que é só por si uma riqueza desta arte. Por outro lado, se o publico tiver conhecimento de um pequeno detalhe extramusical que inspirou o compositor, imediatamente é influenciado na leitura que faz ao ouvir a peça.
Pessoalmente gosto de jogar com esse facto. Se quiser deixar em aberto muitas leituras possíveis para o ouvinte, basta nomear a peça por um número, por exemplo Op. 25, ou música para piano a 4 mãos. Mas se der o título de prelúdio sobre o mar, imediatamente estou a influenciar o ouvinte de forma clara por um conceito extramusical. Posso ainda ter um título mais enigmático como um sino contra o tempo, ou outro como ligamos os motores damos aos remos, onde, em ambos os casos, se apresenta algo mais aberto, que mais do que influenciar o ouvinte vai pô-lo a pensar como é que encontra relação entre a música e estas frases e, muito provavelmente, a partir do estímulo dado pelo título cada ouvinte vai criar uma leitura própria diversa.
E depois ainda podem existir as notas de programa, que podem explicitar os elementos extramusicais, que estiveram na inspiração inicial ou reforçar os elementos simbólicos ou ainda revelar alguns elementos técnicos.
Assim, considero que os elementos extramusicais têm alguma presença na minha música, sendo por vezes estímulos que me levam a iniciar uma composição com uma direção própria, por vezes símbolos ou referências culturais com influências em alguns elementos musicais ou ainda alguns elementos metafóricos que podem ajudar a interpretação a viver o mesmo universo que esteve no momento da criação, e sem dúvida que são uma ferramenta de comunicação entre o criador, o intérprete e os ouvintes.

· O que, no seu entender e de acordo com a sua postura estética e experiência, pode exprimir um discurso musical? ·

CM: Para mim, um discurso musical existe quando se consegue comunicar algo ao ouvinte onde, de forma mais ou menos abstrata, este consegue descodificar do ponto de vista emocional uma leitura pessoal de uma intenção pretendida pelo criador. Por vezes a intenção pode ser apenas a procura da beleza, ou da dor, mas para que isso possa acontecer tem de existir eficácia na comunicação, primeiro na escrita musical e depois na interpretação. Essa eficácia acontece quando o compositor consegue, a partir de elementos musicais simples, que se faça a síntese num todo complexo, capaz de conter o potencial de gerar em cada ouvinte um imaginário abstrato com capacidade de o emocionar. O coreógrafo grego Dimitris Papaioannou, diz que aquilo que lhe interessa é oferecer ao público sonhos; é um ponto de vista em que me reconheço, oferecer sonhos, pois nos sonhos há sempre uma presença do real com o irreal, uma parte que nos é familiar e outra que nos é estranha ou mesmo impossível, o que nos ajuda a navegar sempre entre o seguro e o desconhecido.

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

CM: Eu penso que a invenção e a pesquisa são indissociáveis da prática artística e da criação musical, pois para procurar o novo é fundamental a criatividade e a pesquisa sem esquecer o conhecimento da tradição e o suporte que nos oferece para partir em busca do novo, sem ter que inventar a roda; por outro lado a invenção de ferramentas, a pesquisa e a experimentação não são suficientes para garantir uma obra de arte; a obra de arte tem que, para além de nos dar algo novo, conseguir emocionar-nos, tocar-nos, suspender-nos no tempo com a sua presença, fazer-nos viver.

· Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·

CM: Quando escuto música é sem dúvida um processo mais emocional, embora seja bastante racional quando escrevo. Apesar disso não dispenso nunca a reflexão sobre o resultado a que cheguei, sobretudo pela observação e experimentação, através da escuta de excertos ao piano, com o computador ou mesmo com outros instrumentistas, quando necessário. Considero o trabalho em composição algo que pode ser visto como artesanal e, quando se arrisca um pouco há sempre que burilar arestas, há que retocar, pensar no equilíbrio formal, na gestão do tempo e só depois se pode dar como terminada a gestação de uma peça. Este trabalho de retoque e observação é já emocional, embora nesse processo também se retoquem questões puramente técnicas sem importância. Depois, a peça só nasce quando é apresentada ao público e aí a minha escuta é puramente emocional.

· Na Entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo»3. Sente proximidade com esta afirmação? ·

CM: Pelas razões que tenho vindo a enunciar nas respostas anteriores, creio que se pode deduzir que concordo com esta observação, pois a música que é arte, reflete sobre si própria e convida também o ouvinte e os intérpretes a procurar as respostas mais importantes para o ser humano, como a busca de uma razão que justifique a sua própria existência. Nunca mais esqueci de uma frase que ouvi de uma pessoa anónima na rua em relação a música que soava num espaço público: «esta música dá vontade de viver».
Por outro lado, também me parece evidente que a arte não existe separada do mundo, e é uma forma muito peculiar de o habitar, de o contemplar e de nos dar esperança.

· Existe na sua atividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·

CM: Sendo que a minha atividade é ensinar e compor, diria que não existe oposição entre profissão e vocação. Partilhar o conhecimento, orientar investigações, preparar peças para serem apresentadas e tratar do seu nascimento é algo que faz parte da vocação de compositor. Certamente o ensino é também uma necessidade de subsistência, mas, ao mesmo tempo, é um prolongamento do compositor, que gosta de partilhar o conhecimento, levantar questões, fazer pensar, refletir em conjunto e partilhar momentos especiais de fruição de objetos artísticos.
Por outro lado, não posso deixar de referir que nos tempos atuais, pressionados por um pensamento neoliberal, os professores são vistos como parte de uma máquina que se quer rentável, são explorados, digo claramente são explorados no seu trabalho realizando tarefas muito para além da sua obrigação. Este tipo de pressão desvia o professor da sua função essencial, que devia ser formativa e não burocrática, retirando-lhe a possibilidade de oferecer mais tempo aos estudantes na partilha de atividades artísticas, e de poder respirar com eles e viver momentos artísticos plenos.
Também há que referir que hoje nas escolas a informatização e a digitalização dos processos burocráticos não nos está a fazer poupar tempo; a função da informática devia ser também a de agilizar as tarefas burocráticas, mas se pensarmos de forma lúcida, não é isso que está a acontecer. Com a informática as escolas estão a perder tempo e não a ganhar, e essa perda em alguns casos é gigantesca; quem pensa o contrário, deve refletir melhor sobre o assunto.
Por isso se a componente burocrática faz parte também da minha profissão, então aí há uma oposição entre a profissão e a vocação, mas de facto não deveria fazer parte, e certamente irei lutar nos anos que me restam como docente, para tentar influenciar o ensino a mudar este comportamento sobre a gestão do tempo.

· Prefere trabalhar isolado na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

CM: Em termos criativos, na escrita de uma obra, prefiro claramente trabalhar na tranquilidade do campo, talvez mais porque o campo me afasta mais da burocracia da escola, mas também gosto muito de trabalhar em ambiente citadino sobretudo quando estou em fase de montagem de peças, sejam minhas, sejam de alunos que oriento.

· O que distingue a sua abordagem pedagógica em relação a estudantes de Música (Composição, Interpretação, ...)? Consegue identificar algum traço característico nas novas gerações de músicos em Portugal (compositores, intérpretes, ...)? ·

CM: Não quero ser repetitivo, mas uma das mais importantes indicações pedagógicas que se podem dar nos dias de hoje aos estudantes é que façam menos, para fazer melhor, ou seja, que dediquem mais tempo às atividades que são mais relevantes para a sua formação para que as possam fazer bem, que avaliem o que é possível realizar de forma séria e aprofundada. Vejo nos estudantes uma pressa, evidentemente legítima, de cedo começar a trabalhar ou a dispersarem-se por demasiadas atividades, iludidos que lhes podem dar benefícios futuros, sem terem a noção que não é possível atingir resultados artísticos brilhantes sem tempo. Sinto no trabalho com os estudantes que o primeiro contacto é normalmente muitíssimo bom, mas depois muitas vezes o trabalho não é devidamente aprofundado. Tenho também a noção que a principal causa deste excesso de atividade não tem a sua principal origem nos estudantes, mas sim nas próprias escolas que se habituaram a lhes preencher o tempo com atividades desde cedo. Mesmo que todas essas atividades sejam positivas, «atropelam-se» umas às outras quando são excessivas. Devo dizer que os jovens músicos estão muito mais preparados do que estavam há 30 ou 20 anos, há no presente músicos brilhantes em Portugal, o que não quer dizer que o sistema seja perfeito, longe disso. Se todos soubéssemos gerir melhor o tempo do que fazemos, poderíamos obter resultados artísticos muito melhores e de uma forma mais saudável.

· Selecione e destaque três obras do seu catálogo e justifique a sua escolha. ·

CM: Hum, esta resposta é difícil, porque todas as peças fizeram sentido para mim quando as escrevi, e para conseguir responder talvez precise de destacar mais umas três ou quatro, com que tenho uma mais forte relação emocional e que considero relevantes dentro da minha linguagem pessoal; assim, aqui ficam destacadas cinco peças, escritas entre 2003 e 2022, pelas seguintes razões:
O Fim – Ópera Íntima (2003-2004), por ser uma ópera de câmara que gosto de revisitar como ouvinte no registo em CD e que recentemente estou a dirigir com muito prazer noutro contexto com outros intérpretes.
Caminho ao céu… (2003), por ser a minha peça que a minha mulher mais gosta, o que me fez refletir muito sobre ela no trabalho futuro, e por reconhecer nesta peça como, de uma maneira muito simples e despojada, é possível emocionarmo-nos de uma forma muito forte a ouvi-la.
terra (2009), por ser uma peça onde todo o meu pensamento sobre a interação entre as minhas escalas não oitavantes e as estruturas espectrais, é mais explorado num efetivo instrumental de apenas cordas, procurando estabelecer uma relação peculiar entre uma música predominantemente melódica e diferentes maneiras de pensar a harmonia. Aqui procuro inter-relacionar as suas linhas, simples ou em contraponto, com acordes constituídos por muitos sons, como objetos relativamente independentes, acordes que surgem, por vezes, de surpresa e que partilham o mesmo espaço que as melodias, iluminando-as de diferentes maneiras, com diversas intensidades e cores, ao invés de funcionarem como harmonias que sustentem melodias.
terras por detrás dos montes (2011), para piano solo, por ser uma peça onde o meu pensamento musical atual pôde acolher de forma subtil alguns elementos de música tradicional portuguesa, no interior de uma linguagem que não é tonal, modal, nem atonal. Algumas melodias do interior de Portugal habitam esta peça, por vezes de forma submersa, empoeirada, distorcida, desgastada pelos elementos, outras vezes de forma filtrada, mais límpida e pura.
A Casa do Cravo (2019), para piano e eletrónica, por ser representativa do meu uso da eletrónica em música mista, uma peça que se inspira na paisagem alentejana, no vazio, no silêncio, nos sinos que interrompem o silêncio, onde surgem, por outro lado, as memórias do 25 de Abril de 1974. Contudo não é uma peça sobre o «verão quente», mas sim sobre as terras e as paisagens alentejanas no tempo presente, uma região que viveu intensamente o período da revolução e que ainda guarda esses momentos nas suas memórias. Desde essa altura muitas utopias se esfumaram mas ficou a memória de milhares de pessoas nas ruas, que puderam experienciar a liberdade a passar pelas suas vidas, de uma forma talvez exagerada e sôfrega mas genuína. Tudo era muito urgente… Como diz o Sérgio Godinho numa das suas canções: «Esperar tantos anos torna tudo mais urgente».
branco, branco, branco… (2022) para soprano, saxofone, acordeão e quarteto de cordas, a partir de frases de Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, por ser uma peça que aborda uma das mais recorrentes temáticas na arte, o sofrimento e a superação. A peça é por vezes amarga, e surgiu também no contexto desse sofrimento, apresentando-se entre um certo lirismo e a angústia, a aflição, o medo, a dor, a morte, a violência, a tristeza pela vida interrompida por algo que não se pode controlar, a consciência do que conseguimos fazer para sobreviver. Tal como o livro de Saramago, esta peça coloca a possibilidade de descobrir a beleza no meio do caos e de encontrar nos momentos de superação a esperança de alcançar felicidade.

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projetos artísticos planeados para 2023, 2024, 2025, ...? ·

CM: No momento não tenho projetos de novas criações agendados, apesar de na minha cabeça estar a germinar uma peça orquestral e uma nova ópera com características muito próprias. No fundo estou à espera do momento oportuno para as escrever. Depois estou a preparar a circulação de algumas peças tentando dar-lhes as melhores condições de apresentação possíveis. Estou ainda a desenvolver no contexto da ESML um intenso trabalho de investigação com um ensemble com obras de estudantes.

· Se não tivesse seguido o caminho de compositor, quais poderiam ser os caminhos alternativos? ·

CM: Acho que os caminhos alternativos seriam sempre relacionados com a criação artística, áreas que de algum modo já experimentei nos meus trabalhos interdisciplinares relacionados com a minha música ou com trabalhos de investigação em música por mim orientados. Então, podia ter sido desenhador de luz, técnico de som, figurinista, coreógrafo, fotógrafo ou encenador.

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, ruturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras ruturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

CM: Não sei se é importante fazer um exercício de futurologia, mas o meu desejo é que o futuro da música de arte ocidental pudesse ser um espaço de diversidade do ponto de visto estético e técnico, e do ponto de vista social não tivéssemos de pensar que a arte tem que se transformar num produto de massas com preocupações financeiras como outro qualquer produto. Para isso precisamos todos de olhar para a arte em geral como um investimento essencial ao bem-estar e à saúde mental de uma sociedade saudável.

Carlos Marecos, maio de 2023
© MIC.PT

NOTAS DE RODAPÉ

1 Joke J. Hermsen (2017), in Melancolia em tempos de perturbação, Quetzal, Lisboa, 2022, p. 182.
2 Joke J. Hermsen, op. cit., p. 83.
3 Entrevista com João Madureira conduzida pelo MIC.PT em outubro de 2016: LIGAÇÃO.


Carlos Marecos · Entrevista Na 1.ª Pessoa

 
Entrevista Na 1.ª Pessoa com Carlos Marecos conduzida por Pedro Boléo.
Gravada a 24 de setembro de 2019 no O’culto da Ajuda em Lisboa.
   

Carlos Marecos · Playlist

   
Carlos Marecos · Música para um Palácio – oito instantes
para quarteto de cordas
(2018)

Ensemble MPMP: Daniel Bolito (violino), Sara Llano (violino), Leonor Fleming (violeta),
Nuno Cardoso (violoncelo). Gravação: Palácio de Seteais, 16 de dezembro de 2018.
  Carlos Marecos · terras por detrás dos montes – Paúl (2011)
Joana Gama (piano)
 
   
Carlos Marecos · terras por detrás dos montes – Miranda (2011)
Joana Gama (piano)
  Carlos Marecos · Caminho ao Céu I, II, III (2003)
Poema de Teresa Duarte Martinho.
Margarida Marecos (soprano) e Maria Repas Gonçalves (meio-soprano), OrchestrUtopica
sob a direção de Cesário Costa. Gravação de outubro de 2003 (Culturgest, Lisboa).
 
· Carlos Marecos · “A Casa do Cravo” (2019) · Ana Telles (piano), Carlos Marecos (eletrónica), João Quinteiro (gravação) · edição de autor ·
· Carlos Marecos · “Este sangue” (2010) · CADAVRES EXQUIS – Portuguese composers of the 21st century · Miso Records (mcd 036.13) ·
· Carlos Marecos · “Ode a Gaia, deusa da Terra” (2009) · Coro Ricercare, Margarida Marecos (soprano), sob a direção de Pedro Teixeira · edição de autor ·
· Carlos Marecos · “terra” (2009) · Sinfonietta de Lisboa, sob a direção de Vasco Pearce de Azevedo · edição de autor ·
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Espaço Crítica para a Nova Música

 

MIC.PT · Catálogo de Partituras

 

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