Em foco

Diogo Alvim


Foto: Diogo Alvim · © Susana Pomba

Questionário / Entrevista

Parte I · raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?

Diogo Alvim: Sempre ouvi muita música em casa, o meu pai é um melómano. Desde cedo que tinha uma predilecção pela música antiga ou moderna. Durante a infância e a adolescência tive umas aulas de piano (particulares, e na Academia de Amadores de Música), mas foi só mais tarde, depois de entrar para o Coro da Universidade de Lisboa com o maestro José Robert, que decidi candidatar-me para o Conservatório Nacional de Lisboa (curso de cravo) para aprofundar os meus conhecimentos de música.

Que caminhos o levaram à composição?

DA: Nunca me vi como um instrumentista, e queria desenvolver ideias musicais para lá da interpretação. Queria pensar na música tal como estava a fazer com a arquitectura. As aulas no Conservatório, principalmente as de Análise e Técnicas de Composição com o compositor Eurico Carrapatoso foram fundamentais para aprofundar o pensamento musical e desenvolver ideias sobre música e som. Foi a partir daí que decidi estudar composição.

Parte II · influências e estética

Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical?

DA: Não acho que as referências me influenciem de forma estática, e em momentos diferentes oiço artistas diferentes que me influenciam de formas inesperadas. Mas não posso negar o peso que a música antiga tem no meu pensamento musical. No entanto, tento diversificar ao máximo as minhas influências, que podem ir desde os virginalistas ingleses, ao barroco italiano, passando pela música mais experimental, electrónica, improvisada, etc.

No seu entender, o que pode exprimir e / ou significar um discurso musical?

DA: Acima de tudo acho que a experiência musical está sempre vinculada ao momento e à situação em que a escutamos, ou seja, o modo como a música nos afecta está sempre relacionado com as condições específicas do contexto e dos ouvintes. Por essa razão, o discurso musical apenas existe contextualizado e é um fenómeno intersubjectivo, nunca controlável pelo compositor.

Existem fontes extra-musicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

DA: Sim, sempre. As disciplinas são construções artificiais. A música enquanto disciplina autónoma com fronteiras muito definidas é uma invenção muito recente, e que consiste num exercício constante de separação entre dimensões que coexistem naturalmente – som e espaço, escuta e lugar, composição e performance, etc. Como arquitecto, sempre fui sensível às questões do espaço e da arquitectura enquanto dimensões que afectam o timbre, a dinâmica, e outros fenómenos da escuta. Acho que somos todos naturalmente transdisciplinares e a arquitectura é prova disso – cumpre uma experiência perceptiva múltipla e complexa. Por isso interessa-me o extra-disciplinar enquanto método de desconstrução e reconfiguração dos limites das disciplinas, na procura da nossa percepção total complexa.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

DA: Apesar de sentir alguma afinidade com escolas que procuram uma relação mais clara com o som enquanto fenómeno físico e perceptivo (Ligeti, Xenakis, Scelsi, Lucier, música espectral, minimalismo, etc), existem muitas outras músicas que de algum modo diferente me influenciam sem razão aparente.

O que entende por "vanguarda" e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

DA: Acho que hoje, todo o processo criativo é exploratório e leva-nos a lugares novos. Por isso toda a produção artística que não esteja enquadrada em (ou sujeita a) estruturas comerciais, ou processos institucionais cristalizados, é de vanguarda no sentido em que questiona e transforma esses mesmos processos.

Parte III · linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas / estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

DA: A ideia de uma linguagem pré-definida é, para mim, contraditória à ideia de processo criativo exploratório. A linguagem, tal como o estilo são consequências de uma prática continuada e manifestam-se na totalidade da obra. Por isso não procuro uma linguagem, mas um processo de trabalho que a encontra. Poderei usar técnicas de escrita que vão beber a diferentes linguagens musicais mais ou menos recentes, mas apenas enquanto instrumentos para chegar a um fim. A linguagem inventa-se constantemente e interessa-me mais pensar nas condições que a inventam.

No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

DA: Tal como aprendi em arquitectura, o processo criativo nasce das condições concretas e específicas. Quem vai ouvir, quem vai tocar, onde e quando, em que condições?
Normalmente isto é suficiente para fornecer materiais e iniciar o processo. Se for uma peça convencional de auditório, a situação é mais estéril, e normalmente desenvolvo um dispositivo que auxilie a re-inventar as condições da performance e da escuta. A partir dessa base, desenvolvo a peça como um projecto de arquitectura, desde uma visão geral, até ao pequeno detalhe.

Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração?

DA: Acho que nosso lado racional está sempre condicionado pelo nosso lado emocional. Pequenos eventos emocionais podem desbloquear processos racionais complexos, por isso por um lado, permito um envolvimento emocional nos processos criativos, mas por outro, tento controlar o processo com distância crítica.

Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?

DA: Tento não cair no fascínio da tecnologia e separar os processos conceptuais das possibilidades técnicas. A tecnologia deve servir as ideias. Mas claro que as possibilidades técnicas expandem os processos criativos, por isso há uma dialéctica que deve ser gerida.

Defina a relação entre a música e a ciência e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação.

DA: Considero o processo criativo um processo de investigação. As dimensões artísticas e científicas estão necessariamente em contacto nesse processo na medida em que as condições de criação envolvem questões de percepção, tecnológicas, etc. que se enquadram no conhecimento científico.

Qual a importância do espaço e do timbre na sua música?

DA: A ideia de "espaço" é muito complexa e podemos encontrar várias definições na música. Uma definição que considero muito útil é a que define três dimensões espaciais diferentes - o espaço da partitura (das notas, do timbre e das durações, etc), que é independente do espaço de escuta; o espaço da espacialização sonora, também com um alto nível de autonomia em relação à situação específica; e o espaço específico do evento, da escuta e do encontro, onde se revelam as particularidades sociais e se gera uma intersubjectividade fundamental para a criação de sentido para a música. Tento sempre considerar estas três dimensões no meu trabalho.

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

DA: Não sei o que é processo criativo sem experimentação. Não vejo o experimentalismo como uma estética ou uma escola, mas como uma metodologia necessária, mesmo essencial.

Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?

DA: "Paralaxe", para flauta, corredor e electrónica (2011), foi uma peça em que incluí a arquitectura no processo compositivo de forma realmente integrada. A partir daí o processo expansivo, ou extra-disciplinar passou a estar cada vez mais presente no meu trabalho.

Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares?

DA: Acho que a música apenas existe quando se ouve, e por isso o compositor é como um arquitecto que projecta qualquer coisa que irá existir no futuro. Como essa coisa, no caso da música, é um evento efémero, condicionado pelo contexto da sua realização, o compositor nunca é o autor total da música. Por isso, interessa-me explorar processos colaborativos em que eu também sou performer, ou em que o performer assume um papel criativo na peça. Isso pode ser feito em criações conjuntas, ou em mecanismos próprios como partituras com diferentes graus e tipos de prescrição, que funcionam como convites à participação criativa do intérprete.

Parte IV · a música portuguesa

Tente avaliar a situação actual da música portuguesa

DA: A música portuguesa sofre do mal que tantas outras áreas da cultura sofrem em Portugal: sub-financiamento. As instituições musicais continuam centradas em formatos conservadores que privilegiam música do passado, criando um fosso na criação contemporânea. Por outro lado, a força criativa no país manifesta-se na enorme produção musical em diferentes áreas musicais que não exigem tantos recursos, como a música dita clássica contemporânea. É pena ver uma grande resistência das instituições a abraçarem as novas práticas.

Como define o papel de compositor hoje em dia?

DA: Vejo o compositor como um arquitecto que projecta eventos musicais. Não escreve "obras" mas desenha situações. Por isso é que considero que a composição é uma actividade mais complexa do que aquela que a partitura tradicional consegue conter.

Parte V · presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

DA: Tenho colaborado em muitos trabalhos de dança, performance e instalação que irão ter apresentações até meados de 2020. Interessa-me muito trabalhos colaborativos e interdisciplinares, principalmente aqueles em que a composição musical integra o processo criativo como um todo.
Acabei recentemente uma nova versão de "Campo Próximo" com a artista sonora Matilde Meireles, uma peça em formato instalação e concerto, para o Convento São Francisco em Coimbra. Estou também a colaborar com a Sara Vaz (coreógrafa, performer) e o Marco Balesteros (designer gráfico) em "Livro: Poema Livre", um projecto que já teve várias apresentações em formatos diferentes (Temps d’Images, Museu do Chiado, Festival Folio, ZDB, Atelier Real), e irá culminar num novo trabalho em Março de 2020. Estou também a preparar um espectáculo para crianças, e irei tocar electrónica ao vivo para uma reposição da peça "Da Nova Arte de fazer Ruínas" de Beatriz Cantinho com Ricardo Jacinto. Participo também numa nova criação do performer Miguel Pereira, com estreia em Montevideo, e apresentação em Lisboa e Porto em Maio de 2020.
Quanto a trabalhos individuais, estou a desenvolver um projecto continuado de investigação artística que chamei de "Trabalho de Mesa" e que tem resultado em vários trabalhos com formatos diferentes.

Poderia destacar um dos seus projectos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

DA: "Trabalho de Mesa" é um projecto de música / som que tenho vindo a desenvolver, que concentra a prática artística aliada à investigação (no seguimento do meu doutoramento "Music through Architecture – Contributions to an Expanded Practice in Composition"). Explora a criação musical e sonora numa dimensão projectual, baseada numa compreensão da composição como prática permeável, dependente de contextos e activa na relação com outras disciplinas.
A prática tradicional do compositor, tal como do arquitecto, desenvolve-se à mesa – a partir da escrita e do desenho, do esboço ou do plano, o compositor projecta (programa) num futuro uma acção. Em "Trabalho de Mesa" essa projecção torna-se performativa, e o tempo diferido torna-se real. A partir de um enunciado exterior, sugerido por uma situação concreta (um texto, um conceito, um lugar ou espaço, uma obra de arte, etc.), o projecto explora processos compositivos mediados por uma rede de referências que densificam a intertextualidade do trabalho. Deste modo, a composição é informada por elementos que simultaneamente potenciam um enquadramento semântico expandido da escuta.
O projecto teve já várias encarnações em diferentes formatos. No primeiro caso, um concerto na Galeria Zaratan em Dezembro de 2016, o tema foi o texto "Sobre a Tradução" de Paul Ricoeur, e as partituras gráficas de compositores espanhóis dos anos 60-70, numa proposta de tradução dos elementos gráficos a sonoros. Uma segunda versão do trabalho foi criada para o ensemble do Laboratório de Música Mista da Escola Superior de Música de Lisboa, num workshop em Janeiro de 2017, e interpretado por José Luís Ferreira no Festival Música Viva 2017. Tratou-se de um partitura gráfica em tempo real e simultaneamente dispositivo de música electrónica, uma espécie de partitura interactiva que reage aos músicos tal como eles reagem à partitura.
Uma outra variação em suporte fixo, como "ensaio audio-visual" ("Contraponto") foi publicada na revista Wrong Wrong em Março de 2017, e explorou as relações entre ideias centrais da composição musical e visual.
Outra encarnação do trabalho, "1/500", teve o formato de instalação pontuada por momentos performativos, realizado em Setembro de 2017 a convite da stress.fm, onde sons da cidade de Lisboa eram recebidos por transmissores em tempo real, e utilizados como material sonoro de uma composição em que distâncias, medidas à escala de 1/500, se tornaram parâmetros de manipulação sonora.
Posteriormente, "Material Music" consistiu uma performance (no CNEAI em Paris) realizada em resposta ao convite do artista Ramiro Guerreiro. A peça utilizou uma instalação sua e salientou a dimensão táctil, háptica do som, servindo-se dos materiais plásticos como materiais musicais. Finalmente, estou a desenvolver uma nova versão, iniciada numa residência artística na Cité Internationale des Arts em Paris a convite do Théâtre de la Ville, desta vez alimentada pela efeméride marcada pelos 50 anos dos eventos de Maio de 68, e por uma metodologia baseada nas dérives e détournements situacionistas.

Como vê o futuro da música de arte?

DA: Plural, diversificada, e expandida. Menos autónoma e mais extra-disciplinar, mais relacionada, implicada e consequente com diferentes dimensões da vida e da sociedade.

Diogo Alvim, Fevereiro de 2020
© MIC.PT

 

 

 

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