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Amílcar Vasques-Dias


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Questionário / Entrevista

· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras / musicais, destacando um ou vários aspectos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·

Amílcar Vasques-Dias: Na família não havia «tradição musical» nem «raízes sonoras / musicais». Apenas a presença «cantante» de minha mãe. De facto, tudo começou com os meus 12 anos – idade com que ingressei no Seminário Menor de Braga – com os estudos musicais básicos, a iniciação ao estudo do harmónio, do piano, e a prática intensa do canto coral e do canto gregoriano durante os dez anos que permaneci na instituição.

 

· No decorrer do seu percurso, quando percebeu que dedicaria a sua actividade criativa e artística à composição? ·

AVD: Aos 22 anos, após dez anos de diversas práticas musicais com os professores Faria Borda, Manuel Faria e, sobretudo com Cândido Lima, nos Conservatórios de Música do Porto e de Braga, que mais me motivou para continuar os estudos de Composição. Após uma entrevista com a Dra. Madalena Azeredo Perdigão em Junho de 1974, foi-me atribuída uma bolsa de estudos por três anos pela Fundação Calouste Gulbenkian para efectuar estudos de Composição e Música Electroacústica no Conservatório Real de Haia, Países Baixos. Terminada esta, recebi depois uma bolsa de estudos por três anos da Secretaria de Estado da Cultura para continuar os meus estudos. Entretanto, tendo recebido encomendas da Fundação Orkest de Volharding, criada em 1973 pelo meu professor Louis Andriessen, e da Fundação Calouste Gulbenkian, e também pelo meu gosto e entusiasmo pela composição, claro que já não tinha dúvidas sobre o futuro da minha actividade artística!

 

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objectivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

AVD: Não tenho qualquer plano para o meu «caminho», mas tenho preferências e expectativas. Sei que tenho de gostar dos projectos e das encomendas e que preciso de tempo para compor. As motivações surgem por iniciativa própria, como por exemplo o projecto com o pianista Álvaro Teixeira Lopes e a escritora Gabriela Llansol, “Doze Nocturnos Em Teu Nome” e “Lume de chão – tecido de memórias e afectos”. As encomendas fazem parte do meu «caminho», felizmente desde 1975, por exemplo, pela Câmara Municipal de Amesterdão, pela Fundação para a Criação Artística dos Países Baixos e pela Fundação Calouste Gulbenkian. Nos anos 80, estas instituições voltaram a encomendar-me peças, de que destaco “Pranto” (1984–1988) e “Romance O Conde da Alemanha” (1982).
   Nos anos 90, a Fundação para a Criação Artística dos Países Baixos encomenda-me uma peça para dez acordeões, quarteto de cordas e vibrafone a que chamei “Ser-rana” e cuja instrumentação me entusiasmou na altura, e, ainda hoje considero original. Estreada em Amesterdão em 2001, com transmissão em directo pela Rádio Hilversum 4.
   Nos anos 90, as encomendas de Lisboa – Capital Europeia da Cultura, da Expo’98 e da Secretaria de Estado da Cultura fazem parte deste «caminho». Nesta década, gosto de destacar a organização do festival Encontro do Alentejo de Música do Século XX, em 1998, com o apoio da Delegação da Cultura do Alentejo, da Câmara Municipal de Évora, da Universidade de Évora e da Fundação Eugénio d’ Almeida. Continuei o Encontro de Música do Alentejo dos Séculos XX e XXI, até 2009.
   Na primeira década de 2000, reiniciei o meu gosto pelo «piano» com os projectos “Em Cante”, sobre cante alentejano e piano, “Desnudo”, sobre poesia feminina hispano-árabe para canto e piano, e “De ouvido e coração”, sobre música de José Afonso. Na segunda década, destaco as duas óperas: “Soror Mariana Alcoforado” (2017) e “Geraldo e Samira – uma ópera para Évora” (2019).

 

· Quais são as suas preocupações artísticas / criativas principais no tempo presente? ·

AVD: Ser «original» e ser capaz de «surpreender», apesar de pensar que era mais fácil a «originalidade» no século XX. Quantas vezes fui a concertos ouvir música de compositores mais jovens, apresentados como muito «originais», e eu saio a pensar que não conhecem o que foi ‘feito’ há 50 ou mais anos atrás... Isto para dizer que – para se ser original – é preciso ter interesse e curiosidade de escutar a música que foi criada, pelo menos, no século XX. São precisos critérios mínimos de originalidade e de complexidade ‘inovadora’. Provavelmente, serão importantes alguns conhecimentos de psicoacústica para melhor avaliarmos o resultado musical das ‘notas-sons’ que escrevemos na partitura. Pensar na percepção auditiva do ouvinte – o receptor da nossa obra musical – não pode ser um ‘luxo psicológico’ para cientistas...!

 

· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·

AVD: Na minha experiência pianística da juventude sempre gostei de sons graves, «redondos», «cheios» de harmónicos... Talvez este meu «gosto» se reflita na minha composição actual.

 

· Na entrevista que deu ao MIC.PT em Novembro de 2015 disse: «Interesso-me por música que me surpreenda. Admiro a originalidade-imaginação-invenção de uma obra…» 1 Pode dar alguns exemplos de música que o surpreendeu nos últimos anos? ·

AVD: «Nos últimos anos» e há vários (muitos!) anos, as obras: “Vozes à luz” (1996) para quarteto de cordas, de Cândido Lima; “Jonchaies” (1977) para orquestra, de Iannis Xenakis; De Staat (1976) para orquestra, de Louis Andriessen.

 

· Quais são as fontes extramusicais que no seu caso podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·

AVD: As árvores, as plantas, os animais, os aromas, os espaços geográficos e sociais...

 

· Há quase dez anos, na entrevista dada ao MIC.PT disse: «Música é o “resultado” da sua própria organização num determinado tempo... Mas, porque o ouvido “escolhe”, num campo vibratório que o rodeia, os sons significativos que pode descodificar, rejeitando outros, o que a música pode exprimir ou significar é muito subjectivo. O compositor pode ter a “intenção” de exprimir algo, mas nunca sabe exatamente o significado que o ouvinte lhe vai atribuir... » 2 Hoje em dia, mantém a mesma postura relativamente ao «discurso musical»? ·

AVD: É claro que sim! Actualmente ainda mais me pergunto como é que a minha música estará a ser entendida, percepcionada pelos intérpretes e pelos ouvintes!

 

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

AVD: No sentido da «procura» do som que me «interessa» encontrar. Os meios usados podem ser: «improvisação» ao piano, audição de músicas instrumentais específicas, leitura de textos informativos sobre algum instrumento e respectiva execução, textos poéticos...

 

· Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·

AVD: Mais emocional a primeira vez que ouço «uma» música, depois, numa segunda ou terceira vez, talvez mais racional que emocional...

 

· Existe na sua atividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·

AVD: Não «sinto» oposição. Alguns professores e amigos deram-me uma «orientação vocacional» para ser compositor.

 

· Prefere trabalhar isolado na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

AVD: Prefiro a «tranquilidade do campo», mas o campo é um local de muitos estímulos...

 

· Seleccione e destaque três obras do seu catálogo e justifique a sua escolha. ·

AVD: “Pranto” (1984–1988) para Orkest De Volharding (flauta, três saxofones, trompa, três trompetes, três trombones, piano, contrabaixo). “Ser-rana” (1989–1990) para dez acordeões, quarteto de cordas e vibrafone. “Unha-gata” (2015) para duas tubas e piano. “Acarro” (2023) para quarteto de cordas.
   Procurei escolher peças muito diferentes. O que têm em comum é que todas foram encomendas para intérpretes muito específicos.
   Curiosamente, todos as peças têm como ponto de partida temas ligados à vida no campo. Por exemplo, em “Ser-rana”, o coaxar das rãs (rana) está no som do acordeão. Em “Acarro”, a energia física da deslocação dos animais está na sonoridade «pesada» do quarteto. “Unha-gata”, pequena erva espinhosa infestante das searas, inspira-se num cante alentejano “Alentejo, terra sagrada do pão”. “Pranto”, nasce de um fenómeno da vida no campo que são as pranteiras, grupo de mulheres que entoam choros ou prantos nos velórios e funerais...

 

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projectos artísticos planeados para 2025, 2026, ...? ·

AVD: Trabalho na ópera “As sombras de uma azinheira”, baseada no romance homónimo de Álvaro Laborinho Lúcio para quinteto de cordas (Ritornello) e três solistas, com estreia prevista para 25 de Abril de 2025. Trabalho também na obra “Elegia a Olga Prats” para canto e piano, encomenda de Bernardo Mariano.

 

· Se não tivesse seguido o caminho de compositor, quais poderiam ser os caminhos alternativos? ·

AVD: Não penso nisso, pois nunca me arrependi do meu percurso como músico..., mas já que me coloca a questão, talvez agricultor, pastor, ou alguém com actividades contemplativas da natureza, dos «seus» sons, cores, geografias...

 

· Numa das entrevistas de 2020 o compositor Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» 3. Na sua opinião, qual é o papel que a música erudita contemporânea, ou a música de arte, desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? ·

AVD: Infelizmente, não creio que a acção do «fermento» tenha obtido grandes resultados. Conheço alguns textos (já antigos!) de Cândido Lima relacionados com este assunto. Creio que só será possível «aumentar a importância e o impacto...» através de políticas governamentais que estimulem a aproximação do público/ouvinte/espectador à música erudita contemporânea. A fórmula encomenda-concurso-apoio-divulgação creio estar esgotada!

 

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, ruturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras ruturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

AVD: Difícil pergunta para uma difícil resposta.
   A minha música está relacionada com os meus sentimentos, as minhas sensações e as minhas reflexões pessoais. Conceptualmente e tecnologicamente a minha música está sempre em transformação tal como a música de uma maneira geral. Dada a sua questão, não posso fugir à actualidade da IA. Por mim, duvido que algum algoritmo criado por IA me possa ajudar naquilo que para mim é compor, mas «ajudar» não é copiar e, portanto, não vou ser categórico dizendo já que não à IA...
   Para alguns artistas – que não ligam muito a questões éticas – o futuro deve ser uma coisa boa! Por outro lado, muitos programas oferecem já ferramentas livres de direitos autorais, com um potencial enorme de adquirir conhecimento, adaptando-se à sonoridade do músico que as está a usar, sugerindo-lhe ideias...
   Acho que os direitos autorais e a propriedade intelectual dos músicos vão atravessar um período de crise, talvez difícil de ultrapassar. Com a IA talvez se verifiquem dificuldades na criatividade e consequentemente na originalidade da produção de «música de arte ocidental», ou não...!
   Creio que a Inteligência Artificial poderá alterar o «desenho» do futuro da música de arte ocidental.
   Não sou capaz de mais «futurologia».

Amílcar Vasques-Dias, Dezembro de 2024
© MIC.PT

NOTAS DE RODAPÉ

1 Entrevista a Amílcar Vasques-Dias conduzida pelo MIC.PT em novembro de 2015 e disponível em: LIGAÇÃO.
2 Ibidem.
3 Entrevista com Georg Friedrich Haas conduzida por Filip Lech em junho de 2020 e disponível no portal Culture.pl: LIGAÇÃO.


Amílcar Vasques-Dias · Entrevistas MIC.PT

 
Entrevista Na 1.ª Pessoa com Amílcar Vasques-Dias conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2019.10.23)
 
 
Entrevista com Amílcar Vasques-Dias conduzida por Luísa Prado e Castro
dos Arquivos do Centro de Investigação e Informação da Música Portuguesa,
filmada a 29 de Julho de 2003.
 

Amílcar Vasques-Dias · Playlist

· Amílcar Vasques-Dias · “Unha-Gata” (2015) · Yamaha Tuba Duo – Sérgio Carolino e Shimpei Tsugita (tubas), Rena Hashimoto (piano) · gravação: Yamaha Concert Hall, Tóquio, Japão, novembro de 2015 ·
· Amílcar Vasques-Dias · “Lume de Chão · Sobreiro” (2005) · Joana Gama (piano) · “Travels in My Homeland” [Grand Piano Records (GP792), 2019] ·
· Amílcar Vasques-Dias · “Tojo” (1993) · Álvaro Teixeira Lopes (piano) e José Pereira de Sousa (violoncelo) · “Música Portuguesa do Século XX” [Numérica (NUM 1069), 1998] ·
· Amílcar Vasques-Dias · “Ser–Rana” (1991) · D‘Accord Ensemble · edição de autor ·
· Amílcar Vasques-Dias · “Pranto – in memoriam Manuel Faria” (1984–1988) · Orkest De Volharding, Cees van Zeeland (direção musical) · “Shoulder to Shoulder” [Attaca Babel (Volh 007), 1989] ·
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