Foto: Rui Dias · © Duarte Gameiro
Questionário/ Entrevista
· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspetos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·
Rui Dias: Frequentei desde muito cedo o Conservatório Calouste Gulbenkian de Braga, em regime de ensino integrado e que tinha na altura ensino pré-primário, onde estudei Violino e as restantes componentes curriculares até ao 9.º ano de escolaridade. Por essa altura tinha percebido o meu interesse em informática e eletrónica, pelo que no ensino secundário fui estudar para a escola Carlos Amarante, também em Braga. Curiosamente, também por essa altura comecei a perceber uma grande curiosidade pelos instrumentos eletrónicos, sobretudo teclados, e simultaneamente mais linguagens musicais, como o rock psicadélico e sinfónico, a eletrónica (pop e ambient) e o jazz.
Foi um período que, em retrospetiva, percebo que foi essencial para descobrir um interesse musical que desconhecia, e desenvolver uma relação muito mais pessoal e íntima com a música, que me levou de novo a estudar música.
Comecei em 1991 a estudar Piano, Jazz particularmente, em Braga e mais tarde no Porto, em 1995, altura em que comecei também a estudar Piano Clássico, que me levou depois a voltar ao Conservatório de Braga, completando em 2000 o curso suplementar de Piano.
Apesar do interesse pelo piano, os meus interesses apontavam mais para a criação musical, pelo que ingressei no curso de Composição da ESMAE, no Porto. O contacto mais aprofundado com a composição contemporânea foi marcante, e sobretudo com a música eletroacústica, que me permitiu aliar o meu interesse pela música, ao das tecnologias e informática. Os meus interesses estendem-se, contudo, a outras músicas, a outros meios e formatos, nomeadamente aos sistemas interativos e à multimédia. Foi por aqui que os meus estudos de mestrado e doutoramento prosseguiram, na Universidade do Porto.
Dentro do pouco tempo de que disponho para os meus projetos pessoais, tenho tentado explorar espaços e contextos diversos, pelo que tenho tido projetos com dança, teatro, improvisação, instalação, entre outros.
· No decorrer do seu percurso quando percebeu que dedicaria a sua atividade criativa e artística à composição? ·
RD: A trajetória para a composição resultou de uma tomada de consciência gradual sobre a minha própria curiosidade e apetência para a criação. A minha passagem pelo jazz, onde é prática comum o instrumentista ser também compositor, pode ter ajudado a definir uma atitude ou visão do músico como alguém que naturalmente está numa perspetiva de criação. Ou seja, a ideia de criar, transformar, explorar, sempre esteve por perto, a par com toda o percurso de aprendizagem e desenvolvimento dos conhecimentos musicais, ainda antes de chegar à composição erudita. A incursão pela composição a nível de estudos foi na altura um prosseguimento muito linear.
Numa perspetiva mais alargada, vejo agora a composição como um dos meios de criação que me interessam, mas não o único. Interessam-me os vários formatos e cruzamento entre meios que pode resultar em alguns exemplos de obras que podem nem se situar na música ou nem mesmo ter som. Interessam-me, a criatividade em geral e a exploração de formatos e tecnologias na criação de algo inédito (mesmo que seja inédito só para mim).
· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objetivos «y»? Ou acha que a realidade é demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·
RD: Não, de todo. O meu percurso sempre foi um pouco «indeterminístico» a esse respeito, e o que me interessa hoje não é necessariamente o que me pode interessar amanhã. Teria por isso muita dificuldade em planear com antecedência, uma vez que vários fatores podem variar. Sobretudo em áreas ligadas às novas tecnologias, surgem constantemente novas possibilidades que dão origem a novos paradigmas e novas áreas de interesse.
· Quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais no tempo presente? ·
RD: Diria que provavelmente a minha preocupação mais constante é a falta de tempo para trabalhar continuadamente nos projetos que quero realmente fazer. A composição, e mesmo o pensamento criativo, é algo que deve ser alimentado continuamente, e a impossibilidade de manter essa atividade constante aumenta a dificuldade de criar o ritmo e registo certo de trabalho para cada novo projeto.
· Em que medida a circulação entre os universos, acústico e eletroacústico, tem vindo a enriquecer a criação musical das últimas décadas? Existe na sua música uma influência mútua entre estas duas práticas? ·
RD: Sem dúvida. A tecnologia veio criar novos horizontes e permitir a realização de conceitos antes idealizados. No meu caso julgo que há influências bastante visíveis (ou audíveis) em alguns dos aspetos técnicos e estéticos que me interessam explorar.
· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·
RD: Tenho dificuldade em pensar num «timbre» específico, ou mesmo uma só linguagem. Fui-me apercebendo de certos tipos de elementos, gestos, texturas, ou «tiques» que encontro em mais de uma peça. No entanto, não é algo que faça de forma muito consciente, ou intencional.
· Na entrevista que deu ao MIC.PT em abril de 2015, em resposta à pergunta, «Como carateriza a sua linguagem musical?», disse: «Tenho uma tendência para pensar o som de uma forma plástica e orgânica, com texturas compostas por gestos e massas sonoras que se movimentam lentamente, explorando o desenvolvimento de timbres em mudança constante, e harmonia que vai sendo exposta e desenvolvida gradualmente.» 1 Passados quase 10 anos, como presentemente responde à mesma pergunta? ·
RD: Creio que a resposta continua hoje completamente válida. É ainda o tipo de imagens sonoras que me ocorrem de forma mais imediata, ao pensar numa abstração musical, artística. Diria até que a proximidade ao fenómeno sonoro aumentou desde então, talvez pela curiosidade em áreas como a acústica, o design de som e a síntese sonora. Contudo, talvez tenha hoje mais presente que associado à noção de som que referi na altura, há também a importância do gesto. Se antes pensava que o som molda o gesto, talvez hoje pense mais no inverso, que o gesto de certa forma molda o som, ou o som é usado para construir o gesto. Mas as duas versões podem coexistir, e referem basicamente um foco nos mesmos tipos de elementos.
· Quais são as fontes extramusicais que no seu caso podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·
RD: Creio que qualquer tipo de fonte pode ser usado para a composição musical. Se pensarmos num processo composicional puramente artístico, não haverá propriamente limites no uso de elementos musicais ou extramusicais, a não ser aqueles criados por nós próprios para cada obra. Há um espectro alargado de possibilidades entre a música composta de forma mais empírica ou mais estruturada, que podem usar fontes extramusicais de formas igualmente válidas, ou pelo menos servir os intentos de inspirar ou ajudar a suportar ou direcionar a obra. Desde uma adaptação mais livre e emocional de um texto ou de uma imagem, até uma quase sonificação de dados absolutamente rigorosos, creio que o mais importante é que haja uma coerência e pertinência nos elementos utilizados, de acordo com o contexto da peça.
· Em que medida os novos instrumentos eletrónicos e digitais abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·
RD: Se nos remetermos para uma perspetiva histórica, com o aparecimento e desenvolvimento dos primeiros dispositivos elétricos, as primeiras correntes baseadas no uso das tecnologias e o uso do computador em música, é óbvio que há todo um conjunto alargado de possibilidades que foram tornadas viáveis pela eletrónica e sobretudo pelas tecnologias digitais.
Os instrumentos eletrónicos e digitais, mais especificamente, criam inclusivamente paradigmas completamente novos nas possibilidades sónicas e expressivas, mas também na própria relação entre o instrumentista e o instrumento. O tempo necessário para o domínio de um instrumento eletrónico pode ser drasticamente menor num instrumento digital. No entanto este é também um dos problemas mais recorrentes neste domínio. Há muito poucos músicos a tocar um instrumento digital de forma continuada. A enorme quantidade e variedade de instrumentos eletrónicos e digitais que há são em grande parte dos casos, circunscritos a um conjunto limitado de possibilidades ou mesmo a um conjunto de utilizadores específicos, e em vários casos tocados apenas pelo próprio construtor.
No entanto, não creio que faça sentido pensar nisto como constrangimentos destes instrumentos. Só há constrangimento quando há falta de domínio ou compreensão, ou quando há expectativas desapropriadas ou exageradas. Mas o mesmo se poderia aplicar a um instrumento acústico.
· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·
RD: Acho importante que haja este tipo de associação na base de qualquer obra neste domínio. Talvez seja verdade afirmar que há sempre algo de invenção e pesquisa em qualquer obra artística, quer de forma implícita ou explícita. No entanto há vários aspetos envolvidos nesta questão que me levantam mais dúvidas do que certezas.
· Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·
RD: Depende da música. Mas é uma questão que já me coloquei algumas vezes, e que me levou em certos momentos uma introspeção relativamente à relação que, como músicos, estabelecemos com a escuta. Desde que comecei a estudar música por iniciativa própria, nas etapas que atravessei – piano jazz, piano clássico, composição – a minha escuta musical foi bastante intensiva e cada vez mais analítica. Ou seja, passei cada uma destas etapas a absorver quase exclusivamente os diversos repertórios, com um tipo de atenção e escuta sobretudo racional. Alguns anos depois destas fases, fui percebendo que sentia alguma falta da ligação e da escuta que tinha inicialmente. Em retrospetiva percebo que foi essa ligação, muito mais emocional, que me fez querer dedicar-me à música. Para além de uns momentos de nostalgia a escutar alguma da música que não ouvia há muitos anos, esta perceção também me fez compreender que devo procurar esta componente na própria música que faço. Não no sentido de fazer aquela música que ouvia, mas no sentido de procurar e perceber quais os tipos de elementos técnicos e estéticos que me remetem para aquele tipo de ligação também emocional.
· Na entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo» 2. Sente proximidade com esta afirmação? ·
RD: É uma visão muito interessante e abrangente, que creio que se poderá alargar a qualquer forma de arte. Talvez a arte seja a manifestação mais intrinsecamente humana que existe. O próprio ato ou necessidade de exprimir algo, quer seja mais concreto ou abstrato, remete para algo muito especial da natureza humana. Num sentido mais lato, suponho que a minha própria atividade se poderá de alguma forma situar ou pelo menos tocar nesta perspetiva. No entanto creio que nunca utilizei ou quis transmitir com a música qualquer ideia ou mensagem filosófica ou política de forma explícita. Mas é sem dúvida uma capacidade que a arte tem, na intervenção e na expressão de ideias, e a música, de uma forma muito particular, tem o poder de o fazer mesmo sem o verbalizar, e ainda assim criar uma experiência emocional profunda nos ouvintes.
· Existe na sua atividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·
RD: Vou responder a duas possíveis leituras desta questão.
No sentido da «profissão» como a minha atividade profissional, e a vocação como referência à produção artística, há uma grande dificuldade na conciliação da disponibilidade (ou da falta dela) para os meus projetos pessoais, perante as minhas obrigações como docente e demais funções dentro da escola.
Noutra leitura possível, posso pensar nestas duas vertentes como complementares no próprio processo de criação. Se por um lado a vocação (aqui no sentido de inspiração) pode traduzir-se num motor impulsionador ou mesmo contribuir para a ideação, por outro lado há um sentido «profissional» que permite a realização do projeto, e a resolução de grande parte dos problemas. Não penso nisto durante o processo, mas numa perspetiva analítica, e até educacional, como docente, ajuda ter consciência destas vertentes e criar mecanismos para desenvolver cada uma delas.
· Prefere trabalhar isolado na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·
RD: Diria que ambos. Inércia gera mais inércia e movimento gera mais movimento, pelo que prefiro «alimentar-me» do «alvoroço urbano», mas preciso de alguma tranquilidade para trabalhar. Esta tranquilidade traduz-se, no entanto, mais na necessidade de ter tempo suficientemente livre para poder estar concentrado de forma continuada, e poder não «sair da bolha».
· Se não tivesse seguido o caminho de compositor, quais poderiam ser os caminhos alternativos? ·
RD: Tenho na verdade alguma dificuldade em dizer que segui o caminho de compositor. Aliás talvez não o possa dizer de todo, por duas razões principais. Por um lado, porque tenho um emprego como docente numa instituição de ensino superior, que implica que uma grande parte do meu tempo seja ocupado com as minhas funções, que vão muito para além do tempo de lecionação. Por outro lado, também no meu trabalho pessoal, artístico, nem todo é centrado na composição, uma vez que tenho trabalhado frequentemente com instalação, programação e multimédia, mesmo que em grande parte com uma componente principal musical ou sonora.
Não estou certo do que teria seguido se não tivesse seguido música, mas provavelmente implicaria a informática e programação.
· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, ruturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras ruturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·
RD: Acho cada vez mais difícil adivinhar o futuro, nesta ou noutras áreas, mas posso partilhar alguns aspetos que me têm feito pensar nas mudanças que já nos rodeiam, e naquilo que pode afetar o futuro próximo. Nomeadamente, as tecnologias de informação e comunicações estão a mudar drasticamente a experiência de vida a cada geração que passa.
O acesso ao conhecimento é algo agora muito mais facilitado e democratizado. A quantidade de informação e conteúdos é astronomicamente maior do que há alguns anos. Esta acessibilidade vem por um lado potenciar uma globalização das áreas de conhecimento, o que pode traduzir-se em mentalidades menos marcadas por dogmas e postulados herméticos, por exemplo, mas pode também potenciar uma certa superficialidade na mensagem e no conteúdo. A velocidade crescente a que se acede a conteúdos facilita a sua desvalorização e torna-se cada vez mais difícil exigir o tipo de atenção e disponibilidade necessária para a contemplação plena de conteúdos um pouco mais aprofundados e com mais ramificações.
Também os avanços recentes de modelos de inteligência artificial estão a trazer novos e inéditos desafios para a maior parte, ou mesmo para todas as áreas de conhecimento, incluindo as áreas criativas como a composição. Há já sistemas capazes de gerar automaticamente todos os conteúdos para a criação de música tonal ou modal (possivelmente outros), incluindo o timbre e expressão vocal, a um nível de qualidade que até há pouco pareceria impossível.
Tendo a ser otimista em relação aos avanços tecnológicos e científicos em geral, mas certamente que nos obrigam a repensar continuamente o nosso papel como criadores, e sobretudo em áreas como a educação, onde percebo, a cada geração que passa, que o lugar dos professores, das matérias lecionadas e o próprio lugar da escola são (e devem ser) colocados em questão.
Rui Dias, outubro de 2024
© MIC.PT
NOTAS DE RODAPÉ
1 Entrevista a Rui Dias conduzida pelo MIC.PT em abril de 2015 e disponível em: LIGAÇÃO.
2 Entrevista a João Madureira conduzida pelo MIC.PT em outubro de 2016 e disponível em: LIGAÇÃO.
· Rui Dias · “Hands Off!” (2017) · [Phobos, Dysfunctional Robotic Orchestra · Sonoscopia, 2017] · · Rui Dias · “Cathedralis” (2015) · [Phonambient – Braga · Sonoscopia 2015] · |
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· Rui Dias · “Schizophonics ” (2012) · música eletroacústica sobre suporte · · Rui Dias · “O homem do sam-un-ché” (2012) · Gil Magalhães (flauta), Carlos Lima (guitarra), Rui Dias (eletrónica) · “A China Fica ao Lado · Expressoriente Duo · Tributo a Maria Ondina Braga” [EOCD01 2015] · · Rui Dias · “Feedback” (2005) · João Pedro Santos (clarinete), Rui Dias (eletrónica) · edição de autor · · Rui Dias · “A-S-R (aka Daedalus XXI)” (2003) · música eletroacústica sobre suporte · · Rui Dias · “Obscurium per Obscurius” (2001) · música eletroacústica sobre suporte · |
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