Foto: Armando Santiago · © Atelier de Composição
Questionário/ Entrevista
Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos o levaram à composição e que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?
Armando Santiago: Ouvir música, emocionar-me com ela, «esconder-me» atrás dela, começou na minha infância. Com seis anos de idade, havia momentos em que eu desaparecia, lá em casa. A minha mãe ia encontrar-me na penumbra da sala, imerso no cadeirão mais profundo que aí havia e que me envolvia como uma fortaleza. Imóvel, os meus olhos perdiam-se no Infinito. É que no andar de cima, a dona da casa tocava a “Segunda rapsódia húngara”, de Franz Liszt ! Por meu lado, tinha entrado em transe. Nada mais existia senão a experiência do êxtase.
Perdido entre os livros do meu pai, havia um opúsculo intitulado “Rudimentos de música”. Passei a sabê-lo de cor.
Depois de eu muito insistir, os meus pais aceitaram a ideia de que, ao mesmo tempo em que eu frequentava já o curso liceal, eu seguisse as lições de piano junto de uma professora que eu próprio escolhi, depois de ter trocado impressões com um dos meus condiscípulos.
Dizia-se, na família, que eu fazia progressos. O meu avô Santiago ofereceu-me um piano. Foi um dos maiores acontecimentos da minha meninice. Aplicando o conteúdo dos “Rudimentos de música”, que assimilei por mim próprio – pois a professora não me dizia senão: «Mas que bem que lê as pautas!» – o aspecto vivo das noções de escalas, de modos, das funções fortes de Tónica, de Dominante, de Subdominante. A par das Formas «implícitas» às obras que ouvia.
Estávamos nos anos 40. Sempre que podia, passava os meus tempos livres a ouvir «Lisboa-2». Chopin, Liszt e Beethoven, eram o meu alimento. Musical, emotivo, equilibrante. Então, comecei a compor mazurcas. As ideias vinham espontaneamente. É claro, decalcava, sobretudo, o essencial harmónico de Chopin.
À medida que avançava no curso do liceu, ia sendo cada vez mais procurado, no Colégio, para «superintender os acontecimentos musicais», nas festas e nas sessões solenes. Ia para o piano tocar as minhas mazurcas. «Ó pá! Tu não deves parar de estudar música!» Tudo se passava segundo a mais rebuscada banalidade…
Adolescente, diante da minha insatisfação com as lições da professora, insisti para que o meu pai me desse um professor a sério. Foi o Alberto João Fernandes, compositor, violetista na Sinfónica da Emissora. Deslumbramento! Começou por me dizer que as minhas experiências musicais estavam carregadas de «quintas consecutivas». Percebi que não percebia nada de Harmonia… E encarregou-se de me preparar para a admissão ao Conservatório. E aqui vim a passar os dez anos mais extraordinários da minha juventude.
Poderá considerar-se que foi aí que se inseriram as minhas raízes musicais? As primeiras… Pelo menos, nunca tinha deixado de compor. Passaram a ser peças «modernas», de acordo com a minha escuta interior conservadora... Nos anos quarenta/ cinquenta, aluno de Piano, de Canto, de Violoncelo e de Composição, na Lisboa musical daquele tempo, não me tinha verdadeiramente sido possível de descobrir que a minha experiência composicional estava longe de ser «contemporânea», na acepção absoluta do termo. Nessa altura, ainda se ouvia Debussy com o grande respeito que se devia nutrir pelos mundos ousados e avançados do vanguardismo, e, de Ravel, falava-se com os cabelos arrepiados, dos paralelismos de acordes «tão dissonantes» do “Bolero”; mas a peça tinha caído no gosto de alguns, por ser fácil de entrar no ouvido e porque fazia pensar em odaliscas… Foi um mundo de árdua decifragem, quando comecei a descobrir Stravinsky, ao vivo, durante a sua primeira passagem por Lisboa, em concertos dirigidos por ele (1954), e ainda, mais tarde, por ele e por Robert Craft (à volta de 1961). Nessa época, de Mahler, Pedro de Freitas Branco, por prudência, limitou-se a dar apenas o Adagietto da "Quinta". «Ah! É deprimente! Parece música de enterro!» O «seu tempo» levaria tempo «a chegar», sobretudo a Lisboa… Da Segunda Escola de Viena, o mesmo chefe atreveu-se a dar o “Wozzek”, numa récita no São Carlos!
Não era tarefa fácil, encontrar raízes que pudessem vir a alimentar a minha futura vida musical!
As verdadeiras raízes musicais, com verdadeira incisão na minha actividade composicional responsável e consciente, fui buscá-las a Paris, em 1961, no estágio na R.T.F., ao descobrir a Música concreta junto de Pierre Schaeffer, e, sobretudo, pouco depois, em Roma, junto de Boris Porena, com Goffredo Petrassi, na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, e em Siena, na Accademia Chigiana, trabalhando com Franco Donatoni.
Pode dizer-se, sob o ponto de vista prático, que as minhas raízes musicais e os caminhos que me levaram à composição estão intimamente ligados. Especificamente, os caminhos que me levaram à composição vieram de mim para mim próprio, e escrever música foi, desde sempre, uma actividade «visceral». Implícita.
No decorrer do tempo, em termos da minha educação musical, quanto aos momentos de maior importância, direi que são as lições com Boris Porena e, mais tarde, os contactos com o compositor e com a música de Franco Donatoni.
Porena abriu caminhos. Donatoni alimentou-os.
Na Accademia de Roma, o essencial das lições com Goffredo Petrassi incidiam sobre orquestração e a análise do acesso estético à obra musical.
Porena abriu-me o caminho para assimilar e ingressar na contemporaneidade dos primeiros anos da década de 60. Foi um trabalho de formação, além de preparatório à admissão na Accademia Nazionale di Santa Cecila. Aquisição de técnica. Tratamento da Função Tempo, tendo em vista a fluidez do discurso musical. Libertação da métrica. Tratamento do Timbre. Aquisição do conceito de «Música/ Realização tímbrica de Gestos». Desmistificação da hegemonia do dodecafonismo «Shoenberguiano», no campo das relações intervalares do parâmetro/ graus, no interior e para além do temperamento igual. Sem «desprezar» o aspecto universalizante da Komposition mit zwölf Tönen.
Donatoni levou-me a considerar a importância da subtileza do gesto criador. A proliferação de um «material». A técnica das «Leituras» levando ao seu extremo limite as possibilidades de transformações e de derivações. (A não confundir com as noções clássicas de «desenvolvimento» e de «variação»). Donatoni exerceu uma influência notável sobre a minha actividade de compositor, pelo seu incontestável exemplo de rigor, de sensibilidade e de modernidade.
No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical?
AS: Na minha experiência, um discurso musical é a concretização de um modo específico de comunicação, em função da força dinâmica do binómio criado pelo itinerário de uma ideia e pela escuta interior que a anima intrinsecamente.
A ideia musical é um edifício vivo, emotivo, animado por uma dose importante de impaciência criativa. A escuta interior é o fenómeno complementar, implícito e espontâneo, que «informa» o aspecto sintáctico e semântico da ideia, em relação com a natureza do seu vocabulário técnico próprio, micro-estrutural, o qual contém o germe de movimento e de informação, específicos a um gesto fonético e morfológico.
Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?
AS: O meu trabalho composicional/ musical – como o de toda a pessoa que escreve música – não pode tomar forma sem a influência de fontes extramusicais.
As restantes formas de arte têm fatalmente influenciado a minha actividade como músico.
A minha formação académica global, e, por consequência, estética, foi sobretudo alimentada pela assimilação dos dados fundamentais da História da Arte. Tudo começou no Colégio, durante o curso do liceu, graças a um bom número de professores competentes e cultos. Frequentei a faculdade de Letras: inesquecíveis, as aulas/ conferências do Professor Doutor Delfim Santos. Tive o privilégio de ter seguido um curso privado (durante três anos) de Estética e de História de Arte com a Doutora Maria Augusta Alves Barbosa.
Paralelamente, tive o ensejo de ter assimilado Paris. De me ter profundamente alimentado «com» Roma. De ter absorvido o universo de Veneza. E, façamos-lhe a devida justiça, Portugal não é desprovido de manifestações nomeadamente extramusicais de relevante importância, quando pensamos nos seus notáveis oito séculos de História, das suas inúmeras influências e radicalizações histórico-estéticas. Tendo aí nascido e aí ter passado a infância, a adolescência e a juventude, com os olhos abertos à assimilação de «tudo», não pude deixar dele me alimentar e por ele me ter deixado influenciar em inúmeros aspectos da minha vida.
De que maneira essas fontes extramusicais se exercem sobre a minha actividade de compositor? Obviamente, na maneira de sentir a arte de comunicar e na escolha do «ambiente psicoemocional» do mundo dos sons.
Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?
AS: A minha formação musical e geral foi sempre ligada, exclusivamente, à cultura ocidental. Embora tivesse tido contactos com aspectos de criatividade ligados a culturas não ocidentais, nunca me submeti à sua influência, a fim de alimentar a minha própria actividade criativa.
O que entende por «vanguarda» e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?
AS: A «vanguarda» é a doutrina dos inconformistas. É a mística dos impacientes por criar o nunca visto. É a irreverência dos que rejeitam as veredas já pisadas. Os «vanguardistas» sofrem da fobia da hereditariedade estética. Os «vanguardistas» … são heróis. São missionários que começam por pregar no deserto.
Passa o tempo, e a «vanguarda», de espanto, muda para aceitação. Perde virulência. Ao deixarem de ser da «vanguarda», os seus apóstolos aburguesam-se, e, passivamente, têm de se conformar com o advento de uma nova «vanguarda». E o ciclo reinstala-se. A História repete-se, fascinada diante de outras «novidades».
Como sempre o foi, é o que acontece hoje em dia. Quanto mais se procura ser da «vanguarda», mais se corre o risco de não se saber como fazê-la.
Talvez se espere um dia poder fazer-se música «sem som»… Já faltou mais!
Mas o fenómeno é antigo. O nosso glorioso «Vate» disse-o de uma elegantíssima maneira. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades… Todo o Mundo é composto de mudança…. E, afora este mudar-se cada dia, outra mudança faz de mor espanto, que não se muda já como soía.»
Camões estava na «vanguarda», no seu tempo. Se vivesse nos nossos dias, talvez fosse músico. Encarregar-se-ia de inventar uma «vanguarda mais recente». A mais extraordinária!
Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas/ estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, tendo em conta a sua experiência pessoal e também as referências do passado e da actualidade. O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música? Como, neste contexto, define a relação entre música e a ciência? Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?
AS: Dado o recuo introspectivo que me é presentemente possível realizar, torna-se evidente que o experimentalismo foi, para mim, uma prática de extrema importância.
Adoptei-o no momento próprio da minha formação de «compositor do meu tempo», durante a minha permanência em Roma, trabalhando sob a orientação de Boris Porena. O experimentalismo foi essencial, para poder libertar-me das redundâncias dos anos precedentes, indicando-me novas avenidas, seja sob o ponto de vista estético, seja sob o aspecto puramente técnico da emancipação do estatismo métrico, do timbre, da forma e da estrutura, que imobilizavam a minha juventude criativa. Sendo o meu acto de compor, como já disse, um fenómeno que «vem» de mim, para mim mesmo, nesta perspectiva, posso dizer que o experimentalismo praticado naquela época crucial de transição, contribuiu para o indispensável ajustamento da descoberta de mim próprio, em projecção, como músico criador. Isto, na medida em que, como consequência, eu iria, em seguida, adoptar as características que daí viessem verdadeiramente a interessar-me.
Entre outros exemplos da aplicação de experimentalismo dessa época, citarei o da orquestração de um desenho abstrato. O trabalho, no seu aspecto prático, destinava-se a criar uma música para seis orquestras de câmara colocadas, simultaneamente, em diferentes zonas espaciais adequadas ao efeito stereo. Aquele desenho final era a resultante do corte de um outro, extenso e compacto, situado numa grande folha de papel. Deste modo, esse desenho total contido na grande folha, transformava-se, em seguida, numa faixa de «informação gráfica», obtida por justaposição, longa em comprimento, mas curta em largura. O exercício consistia, em operações subsequentes, uma vez essa faixa colocada sobre papel milimétrico, em «ler e interpretar» o gráfico obtido, por intermédio de um cursor de controle igualmente milimétrico, ajustável ao gráfico da faixa. Cada milímetro correspondia a uma unidade de tempo, a irregularidade do desenho assegurava com eficácia a «desmetrificação» das curvas sonoras, as inflexões ascendentes ou as descendentes indicavam frequências, a maior ou a menor complexidade da densidade gráfica sugeria múltiplas variações tímbricas. A partitura resultante era uma surpresa constante! A música implícita no gráfico surgia, como por encanto, então, sob a forma de uma inesperada realização tímbrica de gestos fluidos e imponderáveis, flutuantes no espaço. A aprendizagem era concludente.
No entanto, e isto é fundamental quanto à definição do meu próprio perfil de compositor, uma vez cumprido o «dever» da minha aproximação pedagógica a esta «terapia experimentalista», e de lhe ter assimilado os efeitos benéficos previstos, não senti, na continuidade da minha actividade de compositor, a necessidade de me fixar no exercício de um «eterno» experimentalismo, de efeito, quase pode dizer-se, dispersante. Excepção feita, todavia, a alguns exemplos, especialmente os de duas peças compostas muito mais tarde em datas não consecutivas. Trata-se de “Pièce por cor et métaux” (1974) e “Musique pour quatre” (1988), versão A, quarteto para saxofones com instrumentos de percussão, em que a execução das percussões está igualmente a cargo dos saxofonistas. Na realidade, considero-as como obras híbridas «sem consequências», cuja direcção não retomei.
De facto, considerando a globalidade da minha produção musical, os meus interesses conduziram-me a uma estabilização da minha escuta interior, necessária à definição exacta da minha personalidade composicional, como o resultado de uma dupla libertação: a dos condicionalismos precedentes e a dos próprios processos de libertação.
Ao cabo de uns setenta e tantos anos de criação musical, procurando uma definição da minha fisionomia composicional, sou obrigado a concluir – fenómeno comum a muita gente, creio eu – que não me vejo de maneira a me fixar numa uniformização redaccional. Não me sinto na situação de me identificar com técnicas, ou com estéticas, desta ou daquela «filiação», ou de alguma moda. Na realidade, não tenho de dar contas nem a mim mesmo. É, aliás, extremamente agradável. Trata-se de um somatório de assimilações, de aceitações e de rejeições que foram dando forma à espontaneidade e à independência de ouvir. Assim, como exemplo recente, se manifestou o impulso que deu origem a “Groupes III” (2019) para piano solo.
Por um lado, se a música é o resultado da construção de ideias por meio de sons, e (para simplificar este outro vastíssimo assunto) se se disser que a ciência é o sistema de conhecimentos exactos e racionais, tendo um objectivo determinado e um método próprio, a «primeira» não pode existir sem a «segunda».
Para que eu pudesse ter chegado de uma forma equilibrada de tudo quanto ficou acima dito, foi forçosamente necessário que eu me tivesse socorrido de um mínimo de ciência para ter concretizado as manifestações criativas dos meus edifícios musicais. Tudo a partir da «ideia» geradora inicial, claro está.
Por outro lado, sem intencionalmente o procurar, vejo-me, por vezes, a abordar umas certas referências tardias à estética da escola de Darmstadt, sobretudo se se pensar no “Quatuor à cordes 1995”. É fruto de uma constatação, não de uma determinação.
Tal circunstância, a de, mesmo sem o querer, ter «olhado para trás», poderá, de certo modo, explicar a minha fisionomia natural de compositor «conservador»… Bem vistas as coisas, o facto de, quando era adolescente, eu não ouvia, não pensava, nem sentia, senão através dos noturnos, das polonaises e dos estudos de Chopin, deve ter deixado alguns resíduos explicativos de muita coisa…
Nesta perspectiva geral, quais as obras que posso considerar como pontos de viragem no meu percurso?
A matéria é complexa!
Primeiro, vieram as «viragens»/ alvoroço/ perturbação/ influência. Foram múltiplas, plurais. Levaram meses e anos a operar. Elas interrogavam-me: «De onde vem a força profunda da Arte?»; conduziam-me a transformações progressivas.
E existiu uma segunda, a viragem pragmática. Técnica e estética. O que me disse, foi de ordem pedagógica: «Doravante, age diferentemente!» Impôs-se-me como um dever. Foi uma conversão imediata.
As primeiras indicavam-me, com efervescência, a ignorância congénita da emoção primária. Eram as viragens em busca do interior do Ser. A minha pessoa mudava-se lentamente, sem referências a datas do calendário. Doridamente. Iam-se mudando as células do entendimento emocional. Mas havia reviramento! Eu passava a «estados-segundos». Mesmo se continuava a escrever «mazurcamente» (já tinha deixado de ser Chopin…), o «movimento» persistia em alimentar-me o Inconsciente. Viragem para o Infinito. E o Infinito é vasto. É o Cosmos da definição da Personalidade. As obras representativas, responsáveis dos «pontos de viragem» foram várias e incidiram em diferentes zonas da Alma, que se constrangia gradualmente, em mimetismos múltiplos, como se eu visitasse o Museu da Evolução. Cada obra, à sua maneira, não estava longe da «vanguarda do seu tempo». Sem falar da já citada “Segunda rapsódia húngara” da minha meninice, foi o “Príncipe Igor” (Borodin), a “Sétima” (Beethoven), “Il combattimento di Tancredi e Clorinda” (Monteverdi), a “Júpiter” (Mozart), o “Requiem alemão” (Brahms), “Parsifal” (Wagner), a “Matthäuspassion”, BWV 244 (Bach), o “Requiem” (Fauré), o “3.º Coral” (Franck), as “Valses nobles et sentimentales” (Ravel), a “Terceira” e a “Nona” (Mahler), o “Gesang der Jünglinge” (Stockhausen). Certamente, esqueci algumas. (Que elas me desculpem…)
Eram viagens em que usava sempre o mesmo salvo-conduto, visitando pontos de partida semelhantes, em busca de mais emoções, de viragens comoventes. Subjectivamente. Andava eu por todo o lado e tinha várias idades. Sem que estivesse mergulhado em interrogações, ou buscando soluções.
A segunda, foi brusca, instantânea. Repentina. Fez-me vibrar a Responsabilidade imediata. Fez imperar a acção. Intimou-me a pertencer à época em que vivia, a definir gestos conscientes. Vindos da descoberta inadiável e radical do «modus operandi». Nada aí houve de comovente… Foi «ponctual», objectiva e definitiva. Roma, na aula de Boris Porena, numa terça-feira, às quatro horas da tarde. Analisava-se “Il canto sospeso” (Luigi Nono). Foi esta, a obra! Sem emotividade… Com os pés bem assentes sobre a terra. Com a noção que tinha diante de mim uma tarefa imensa. Foi então que passei a trabalhar na aventura das seis orquestras em stereo. Dei-lhe o nome de “Il canto disperso…” Tudo fervilhava à minha volta. E uma vez terminado, atirei o disperso para o fundo da gaveta.
Ao considerar as obras que compus, correspondentes à minha viragem de Roma, em primeiro lugar foi o “Quintetto di fiati” (1963), e, logo a seguir, “Episodii” (1963) e “Musica per orchestra” (1964).
Mas, para que a volta se completasse, uma outra terceira viragem teve lugar por volta dos anos 70 e 80.
Tinha adquirido conhecimentos e uma experiência redaccional, mas vivia no desconforto de me sentir como uma espécie de «maria-vai-com-as-outras» e tal situação roía-me a saúde artística, muito interiormente. Era preciso sair do embaraço. No fundo, não se tratava de nada de incomensurável. Não seria mais do que encontrar soluções a certos pormenores de escrita. Nesta ordem de ideias, enquanto as novas camadas de compositores, nessa altura, faziam furiosamente tabula-rasa de tudo quanto fosse manifestação de sentimentalismo, no que me dizia respeito, o caminho a seguir indicava-me a direcção oposta. Nada mais do que reabrir a porta à emoção e à minha autenticidade humana. E passei a uma recusa consciente e serena de efeitos exteriores, que me soavam inoportunos e gratuitos. Não foi necessário muito mais. Lembrei-me, muitas vezes das aulas de Goffredo Petrassi: «Nada de estravagâncias inúteis a camuflar faltas técnicas!» E, progressivamente, com «recaídas passageiras», aparecem novas obras como “Pièce pour percussionniste seul” (1973), “Undecassonia” (1975, rev. 1984) para pequena orquestra, abordando onze níveis de redacção das fontes sonoras, “Requies” (1979-83) para coro masculino e 25 instrumentos solistas.
E os anos 90 vieram confirmar este meu percurso, a partir do “Quatuor à cordes 1995”, uma das obras mais representativas do meu pensamento musical.
O “Quatuor à cordes 1995” procura ser a resultante de um só itinerário de intensões, embora o seu material de base tenha sido obtido a partir de quatro agógicas distintas, mas necessariamente complementares: 1) um conjunto de curvas «incisivas», discursivamente predominantes, constituído por valores rápidos sobrepostos; 2) um «traço» de natureza envolvente, material originário das curvas predominantes, agindo como um cluster movente; 3) um material-pedal, superior, inferior ou misto, igualmente de natureza de envelope e apresentado em sobreposições; 4) um «ataque» vertical, simples ou articulado, dispersado.
Quanto à sua estrutura, a peça toma o aspecto de um «ostinato» (um «romantismo» exaltado?), no qual as diferentes micro células geradoras são submetidas às mais variadas formas de «leituras», multiplicadoras dos seus perfis. Uma longa secção, precedendo uma «coda» desenvolvida, apresenta um torvelinho cónico, oscilante, envolvendo os quatro instrumentos numa atmosfera sufocante. Por outro lado, a autoestimulação dos diferentes gestos inter-complementares, reexpostos e renovados em vasos comunicantes, é tributária da busca de timbres e é orientada em função de zonas de profundidade intrínsecas ao tecido sonoro.
Todo o conjunto redaccional pretende estabelecer uma incessante situação psicoemocional atormentada.
A partitura foi redigida por intermédio de um software por mim concebido, exclusivamente para ser aplicado ao “Quatuor à cordes” e destinado sobretudo a favorecer o aspecto gráfico específico das notações proporcional, métrica e mista.
Há algum género/ estilo musical pelo qual demonstre preferência?
AS: Na realidade, não tem sido tarefa fácil de identificar preferências por estilos ou géneros musicais, como «filiação» orientadora e estabilizante da criação da minha música. Como todos os compositores da minha geração, passei por períodos de formação, e, como consequência, as estéticas exploradas e daí assimiladas, influenciaram-me. Porém, não posso dizer que o resultado tivesse correspondido, em definitivo, a uma ou outra «preferência». Não tivera sido senão uma integração de aprendiz. Com a passagem do tempo, no campo da minha actividade criadora, a noção de preferir este ou aquele estilo, nunca chegou a instalar-se, como um «credo» inviolável, terminantemente. Sob este aspecto, acabo por não preferir um caminho, decisivamente. O somatório das experiências auditivas do meu «passado», sem definir uma inclinação escolástica em particular, levam-me a «ouvir» edifícios e, em seguida, a escrevê-los. E verifico que gosto muito mais de «fazê-lo», do que «tê-lo feito».
Que acontece em relação à Arte musical em geral (e a outras manifestações criativas)?
Todas as manifestações se revestem de um indiscutível interesse, sem necessariamente eleger uma zona de criação de maior «atracção» do que outra. Ajusto a minha análise/audição/observação à época em que essas manifestações foram criadas. Em cada estilo, e em cada género, eu encontro o seu interesse próprio. Alguns exemplos? Na audição dos românticos, o tempo parece não existir. Ouço Stravinsky, fico maravilhado. Abeiro-me de J. S. Bach e redescubro-o, como se tivesse de o «preferir» a todos os demais. A Segunda Escola de Viena? O que aqui há de interesse!
Quanto à música dos tempos que se seguiram, ela desperta-me sempre uma grande atracção. Mas a minha atitude persiste. As diferentes «correntes» correspondem a descobertas e a impaciências de indiscutível legitimidade. Observo-as e ouço-as com o maior respeito.
No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro forma ou vice-versa? Como decorre este processo?
AS: Não se trata de um procedimento uniforme. Depende do conteúdo e, por vezes, da dimensão da partitura. De uma maneira geral, porém, posso dizer que o que predomina é a obtenção de uma forma a posteriori.
Na maioria dos casos, parto de uma «audição interior espontânea» que conduz à criação de um «núcleo gerador», micro bloco conciso. Esse núcleo poderá fazer parte da obra, ou ser abandonado depois de ter obtido dele um número suficiente de «leituras» que me satisfaçam, método muito prezado por Franco Donatoni, compositor com o qual trabalhei em Siena e que, nesse aspecto, bastante influenciou o meu processo composicional.
Neste caso, a macro forma é o resultado da «composição», em reciprocidade, das «leituras» obtidas.
Se tomo como exemplo o meu “Quatuor à cordes 1995”, (duração, 22 minutos), foi um gesto-material-construtivo inicial (sem as características de núcleo gerador), criando uma multiplicação (não propriamente, «desenvolvimento») obtida em torno de si mesmo, que veio a projectar-se, sobre variados perfis, por meio de tratamentos rítmicos e tímbricos, ao longo da partitura. Esse trabalho «provocou» novas situações ou materiais discursivos não daí derivados, mas complementares, ou, intensionalmente «divergentes», até ao ponto em que a informação contida nessa acumulação gestual seja considerada suficiente, conduzindo a um gesto global coerente, segundo, claro está, as minhas próprias exigências de comunicação. É evidente que, neste caso, a partitura foi obtida por um flagrante processo de forma a posteriori.
Em partituras de mais curta duração, é mais fácil de encontrar o conceito de forma a priori. Mas isso observa-se mais, à medida que se recua no tempo, em datas perto de uma idade menos, ouso dizer, «amadurecida». É o caso de “Trois miniatures pour clarinete solo”, em que a forma quase pode dizer-se que criou as ideias.
Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração?
AS: Consideremos, portanto, a relação que pode haver entre as noções de «raciocínio», de «impulsos criativos» e de «inspiração».
Raciocínio, na minha prática musical, é o mecanismo que me permite conceber uma forma, de assegurar a coerência da «escrita», de conhecer e aplicar, com o rendimento de excelência que as minhas possibilidades e os meus conhecimentos o permitem, a natureza dos «suportes», mais uma panóplia de pormenores técnicos complementares, tudo isso em busca do conceito de equilíbrio a que eu tenho acesso. Depois de tudo isto, retomo o resultado, e, na maioria dos casos, «reescrevo» o todo, até que a minha autoanálise me diga: não mexas mais nisso. «Que Deus Nosso Senhor te ponha a virtude», como dizia um dos meus professores quando eu devia apresentar-me a um exame…
Impulso criativo (a aceitar a aplicação desta noção à minha pessoa, no actual período da minha vida, em que as «ebulições» da adolescência já se encontram longíssimo…), é o que poderá levar-me a querer obedecer a uma forma mais ou menos complexa de impaciência que, em seguida, me levará a produzir qualquer coisa. «Impulso criativo» pode, de certo modo, dizer-se que é uma forma de «ansiedade», de «desassossego» que poderá estimular-me a dar forma a «qualquer coisa», sem esforço, ou premeditação.
Inspiração (tenho que fazer um esforço ainda maior, para aplicar esta noção à minha actividade musical) talvez seja o que me impele a pôr-me em estado de escuta de uma emoção ou de uma outra « sacudidela da alma» e que, sem que eu o tenha querido, me invade o pensamento e a sensibilidade, caindo do céu sobre o meu ser, durante uma manhã de deslumbramentos e de abalos de maravilhas inqualificáveis. (Parece ter-se querido dizer que o século dezanove estava cheio disto! E porque não? Eles criaram tantas obras extraordinárias!) Faz-me pensar um pouco naquela frase: «Ó Deus! Dá-me um sinal da tua existência!»
Trata-se da aplicação destes conceitos à minha prática musical.
1. O raciocínio está sempre presente. O impulso criativo, também. A inspiração, já não sei o que é. Preferiria substituir esta palavra por «escuta interior». Esta última, mesmo depois de velho, ainda a tenho.
2. Qual é a relação entre estes três estados, na actividade da minha acção criativa musical? Eles interpenetram-se e são indiscutivelmente necessários.
3. Ao analisar e tentar compreender a complexidade destas interpenetrações de factores, se, por um lado, sou um «discípulo» de Pasteur, isto é, não acredito muito na geração espontânea, assim, isolada e candidamente expectável…, eu atribuo, portanto, um considerável valor à virtude do trabalho, como um «seguidor» da preciosa lição de Stravinsky: «as ideias vêm do labor com as ideias», isto é, quanto mais se busca, mais se encontra, por outro lado, sinto o poder atractivo do «sonho» e creio na fertilidade da intuição e da imaginação poética. Uma atitude não exclui a outra. Completam-se.
Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?
AS: Nunca senti a necessidade de recorrer à prática específica da Música Concreta (da qual eu me abeirei, muito directamente, na minha juventude, durante o estágio em Paris, junto de Pierre Schaeffer, na R.T.F., em 1961). Nem à das fontes sonoras electrónicas.
No entanto, o contacto com a Música Concreta deitou alguma luz no meu trabalho composicional, no que diz respeito à flexibilidade e à independência da estrutura e dos gestos. De certo modo, também abriu uma porta à pluralidade dos timbres. Sem necessariamente aí introduzir a noção de «acaso global».
Não posso classificar aquela acção como uma «influência absoluta». Muito longe disso. Mesmo se os músicos concretos têm uma faceta importante de «construtores» … mas à sua maneira. Foi esta «sua maneira» que eu não adoptei.
Pois acima de tudo, tendo em linha de conta as devidas distâncias, evidentes e de variadas espécies, posso considerar que recebi uma grande influência de J. S. Bach e de Beethoven.
Considero-me um compositor fundamentalmente construtor.
Em contrapartida, utilizei as fontes sonoras MIDI. Daí, saiu “Musica Intuitiva” (2003).
Esta construção é constituída por doze modos de escuta imediata destinada a uma orquestra virtual.
1-2. Explosion – Lumière
3. Soleils
4. Nova
5-6. Pulsar – Gravitations
7. Chutes
8-9. Galaxies – Ombres
10-11. Tourbillon – Quasar
12. Expansion
A obra é o resultado de um gesto poético.
O princípio do Princípio, as trevas e a luz, a vida e a morte de tudo quanto existe, a fenomenal energia dos núcleos siderais, o canibalismo entre galáxias, os abismos do infinito, os turbilhões gravitacionais, o destino da realidade cósmica, tudo se amontoa e se entrechoca perante uma testemunha imaginária, audaciosa e privilegiada.
É a sedução do insondável, espontânea, por intermédio de gestos independentes ou justapostos que procuram libertar-se de soluções de continuidade.
Concebida como se se destinasse a uma orquestra e a vozes humanas filtradas – as fontes sonoras MIDI, em liberdade instrumental e neutralidade dogmática, transformam-se, então, num instrumentalismo gigante e virtual –, a obra avança como uma longa ode de estrofes estáticas, onde micro-organismos, multiplicados até ao infinito, se espraiam sobre objectos curvilíneos, com dons quase encantatórios.
“Musica intuitiva” (2003) foi concebida como uma obra fundamentalmente musical, de fontes sonoras autónomas, apesar de uma vocação multimédia, paralela. Desde o início da sua concepção, esta peça não se pode afastar de um aspecto implícito à música de ballet, sincronizada à ideia de uma coreografia colorida, vigorosa, e em cumplicidade, em fundo de cena, com projecções simultâneas em ecrã gigante, de imagens do Universo, gigantesco, profundo e temível.
Qual a importância do espaço e do timbre na sua música?
AS: Na elaboração da minha música, o timbre é um dos elementos do tecido musical de primordial interesse, sobre o qual procuro exercer as técnicas de tratamento necessárias. Obviamente, a elas se juntam, em igual plano de importância, operações complementares, implícitas e indispensáveis, definidas pela «manipulação» de outros parâmetros, como os graus, as frequências, os registos, as durações, os ataques, a aspereza, as dinâmicas e as articulações. As texturas. No trabalho composicional, todos estes parâmetros são tributários uns dos outros, em vectores convergentes. Ou divergentes, se tal se apresenta necessário ao meu discurso musical.
Nessa ordem de ideias, a construção pode ir buscar recurso a vários níveis numa infinidade de operações. A generalização da noção de intervalo e a sua proliferação. A generalização da noção de escala. A dosagem dos elementos discursivos em função da sua organização gramatical. O controle da «função tempo». A quantificação. A qualificação. As rotações. As translações. As «zonas dominantes». O conceito de dialética, aplicado ao acto de compor música.
Em termos práticos, interessa citar, entre outros exemplos, o emprego dos sons, «casos especiais» das fontes sonoras instrumentais (tanto os determinados, como os indeterminados).
Ao encarar as relações entre os diferentes princípios construtivos da «escrita», procuro projectá-los em variadas direcções, cuja definição e ordenação se tornam vitais.
Daí, o valimento que tem para mim a determinação das diferentes dimensões da trama musical, a fim de criar os movimentos essenciais ao discurso sonoro. Ou seja, as direcções ascendentes, as descendentes e as de profundidade. De onde se define a noção de espaço. Elemento que eu considero tão importante como os restantes factores da criação da obra musical.
Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares
AS: A composição e a performance podem tornar-se, a meu ver, actividades de uma relevante complementaridade. Considero um caso privilegiado, sempre que essa situação é possível obter-se.
Verifiquei-o nas situações em que tive a oportunidade de dirigir obras minhas.
Penso essencialmente na questão da dinâmica, parâmetro a que dou uma especial importância, não só no caso da escrita das minhas partituras, mas, de igual modo, quanto à escuta de toda obra musical.
Tal facto, a meu ver, requer sistematicamente um cuidado sempre renovado.
No que diz respeito à minha própria experiência, encarando a obtenção exacta das exigências de ordem dinâmica (e não só, bem evidentemente!), essa complementaridade esteve implícita, como exemplo flagrante, no caso da realização de “Musica intuitiva” (2003), na medida em que toda a resultante sonora, pondo em evidência o binómio composição/ performance, esteve integralmente sob a minha responsabilidade.
Armando Santiago, Junho de 2020
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