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Bruno Gabirro


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Questionário/ Entrevista

· Quando, no decorrer do seu percurso, percebeu que dedicaria a sua actividade criativa e artística à composição? ·

Bruno Gabirro: Desde que me recordo de mim, que a invenção, a criação, sempre estiveram presentes. É talvez a forma como me relaciono com o mundo que me rodeia, e com os outros. Com o outrem, dado que tanto o mundo como o outro são uma presença indefinida, imaginada até. Depois houve a certa altura uma decisão, de que seria essa a minha principal ocupação. Teria vinte e poucos anos, e a música de Luigi Nono e o mundo sonoro que descobri nessa altura acabaram por ser determinantes.

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objectivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

BG: Citando António Machado, «não há caminho, o caminho faz-se a andar» 1. E José Régio, «não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!» 2

· No tempo presente, quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais? ·

BG: Preocupa-me cada som, em cada momento. Como se vai ligar com tudo o que o precede, e com tudo o que o sucede, num determinado discurso musical, de uma determinada peça. De que forma se realiza musicalmente um determinado potencial sonoro. Só na liberdade de pensamento consigo realizar-me artisticamente, só assim consigo criar, por isso não tenho outras preocupações para além das que descrevi.

· Em que medida a circulação entre os universos, acústico e electroacústico, tem vindo a enriquecer a criação musical das últimas décadas? Existe na sua música uma influência mútua entre estas duas práticas? ·

BG: Não as vejo como práticas separadas. Quanto à presença cada vez maior de meios electrónicos nas últimas décadas, parece-me natural. Os instrumentos e a música do século XIII não são os mesmos do século XVI, e por sua vez não são os mesmos do século XIX, e entretanto também já não são os mesmos. É por isso para mim, uma e a mesma prática, inserida numa tradição já milenar e em continuidade histórica.

· Como poderia descrever o timbre da sua música? Acha que é possível encontrar nele os seus interesses musicais da juventude? ·

BG: Não consigo definir-me a mim próprio sem cair numa qualquer loucura surrealista. Penso, no entanto, ter uma sonoridade reconhecível que me é própria, e na qual se encontram formas de trabalhar e de fazer, que começaram bem cedo. Penso também que ainda sou a mesma pessoa desde as primeiras recordações de mim mesmo e do mundo que me rodeia – o íntimo ainda é o mesmo, apenas se manifesta de forma diferente aos meus olhos, e dos outros, porque, entretanto, o tempo passa.

· Qual a importância do silêncio na sua música? ·

BG: É som, que soa. Tem como principal parâmetro próprio a duração. Como parâmetros externos, mas que o atravessam e por isso igualmente importantes, o que o precede e o que se lhe segue. Há dois tipos principais de silêncio – o que separa, e o que liga. Cada um destes divide-se também em duas categorias – os que estão em repouso, e os que estão em movimento. É absolutamente fundamental que quem interpreta compreenda o silêncio como som, e que o trate como trata qualquer outra nota musical, harmonia, gesto, etc. Contar tempos terá um efeito semelhante aquando apenas se tocam as notas – não se percebe nada, não vibra, não soa.

· Quais são as fontes extramusicais que no seu caso podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·

BG: Toda e qualquer coisa. Musical ou extramusical. Material ou imaterial. Umas vezes consigo explicar a motivação, outras não. De qualquer forma é igual, para mim o mais importante é o que vou fazer com essas coisas.

· O que, no seu entender e de acordo com a sua postura estética e experiência, pode exprimir um discurso musical? ·

BG: O discurso musical para mim é logos – a razão activa que tudo anima. É por isso o centro de tudo, é o que dá vida. Sem isso não há música, apenas som. Sem logos fica a potência do som, mas este não adquire forma, não respira, não vive. E logos é o presente, o passado e o futuro em simultâneo, sendo o presente a projecção contínua do passado no futuro. Logos é assim uma energia vital, numa dinâmica entre repouso e movimento, uma força que dá vida ao som através das relações que se estabelecem. Tudo o que vive está em relação. E o som que realiza um seu potencial através das relações que estabelece, que vive, é música. Entendo assim, o discurso musical como a própria música.

· Em que medida os novos instrumentos electrónicos e digitais abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·

BG: Há cerca de 1000 anos Guido d’Arezzo estabelece termos de pensamento musical de tal forma importantes, que uma nova tradição musical surge. Em meados do século passado, Pierre Schaeffer estende esses mesmos conceitos, abrindo assim novos caminhos. Nova música requer novos instrumentos, novos instrumentos requerem nova música – este é um processo histórico dinâmico e contínuo. Para mim, o que abre novos caminhos é o pensamento, seja sobre música em geral, seja sobre os instrumentos em particular, que também é pensar sobre música. Os instrumentos electrónicos e digitais, por si e em si, não apresentam quaisquer novos caminhos – é absolutamente ridículo pôr uns instrumentos «modernos» à frente de toda a gente, fazer o que sempre se fez, e achar que se está a inovar. Não é com uma varinha mágica que se abrem novos caminhos, mas através do pensamento, do pensamento que perscruta, que inquire, que explora – do olhar vivo dos ouvidos bem abertos.

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

BG: Em praticamente todos os mitos da criação do mundo, uma entidade total, divina, cria tudo a partir do nada, através de uma acção acústica. Na minha condição humana, não tenho a capacidade de do nada criar o quer que seja. Posso criar, mas tenho de criar a partir de alguma coisa. Vejo assim a invenção e a pesquisa indissociáveis, permitindo a comunicação entre o mundo das ideias, ou ideal, e o mundo material em que a obra nasce, em que é criada.

· Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·

BG: Ambos. Não me parece sequer possível a existência de uma sem a outra, trata-se de uma só e da mesma entidade. Na circunstância do estudo do pensamento sobre si mesmo, consigo entender, apesar dos perigos inerentes, que se separem. No entanto essa separação não tem qualquer valor fora desse âmbito específico. Quando escuto música, penso.

· Existe na sua actividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·

BG: Não. Vejo a profissão como uma exteriorização da vocação, que é interna. Manifesto assim uma determinada vocação na profissão que escolhi.

· Prefere trabalhar isolado na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

BG: Prefiro a tranquilidade urbana, a urbanidade.

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projectos artísticos planeados para 2024, 2025, ...? ·

BG: Estou a trabalhar num ciclo de peças para o Sond’Ar-te Electric Ensemble, que informalmente denomino como «ópera», e que espero terminar entretanto. Chamar-se-á “La commedia è finita!”. Depois disso não sei. Tenho também um projecto com o Rui Silva, sobre o adufe, “Aduf&lectrónica”, com o qual espero ocupar-me até ao fim dos meus tempos. Terminámos há pouco um primeiro ciclo desse projecto, e novas aventuras estão no horizonte.

· Tente avaliar a situação de compositoras e compositores de música erudita contemporânea em Portugal, referindo as suas preocupações principais. ·

BG: Relativamente à situação, não há situação, aqui andamos. Podia ser pior, ali andamos. Das preocupações dos outros não sei, e das minhas é fazer o melhor que posso e que sei. E neste caso, fazer é fazer música, que contra moinhos de vento já sabemos como acaba. E, entretanto, preocupo-me e lá vou eu direito aos moinhos, como todos os outros, e talvez um dia possamos fazer alguma coisa. Em suma, e para definir algo dentro de todos estes pensamentos contraditórios, precisamos de estruturas para as várias componentes da actividade musical, na criação, na interpretação, e no ensino. E estruturas interligadas, porque ser músico é tudo isto em simultâneo. Sem qualquer tipo de estrutura de base, não há espaço de discussão, de sustentação de uma qualquer vida musical que nos dignifique, e que seja útil à sociedade em que nos inserimos. Aqui andamos.

· Se não tivesse seguido o caminho de compositor, quais poderiam ser os caminhos alternativos? ·

BG: Se… a angústia dos «ses» é para mim bastante real antes de tomar as decisões que de algum modo os materializam. A certa altura decido, e uma sensação de liberdade invade-me, o «se» desaparece. Neste momento não há «ses» relativos à circunstância de ser compositor.

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, rupturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras rupturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

BG: Nascimentos, rupturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras rupturas, e por aí fora… ou desaparece, e mais tarde uma nova tradição, diferente, de música de arte virá inevitavelmente. E recomeçam os nascimentos, rupturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras rupturas e por aí fora…

Bruno Gabirro, outubro de 2023
© MIC.PT
Texto escrito segundo o antigo Acordo Ortográfico.

NOTAS DE RODAPÉ

1 Antonio Machado (1875-1939) de “Proverbios y cantares” em “Campos de Castilla”.
2 José Régio (1901-1969), “Cântico Negro” em “Poemas de Deus e do Diabo” (1925).


Bruno Gabirro · Entrevista Na 1.ª Pessoa

 
Entrevista com Bruno Gabirro conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2022.05.22)
 

Bruno Gabirro · Playlist

   
Rui Silva e Bruno Gabirro · Aduf&lectrónica (2019-2022)
Rui Silva (adufe) e Bruno Gabirro (eletrónica)
Gravação: O’culto da Ajuda, Lisboa, 25 de maio de 2022
  Bruno Gabirro · I’ll know my song well (2021)
Sond’Ar-te Electric Ensemble, Guillaume Bourgogne (direção musical)
Gravação: O’culto da Ajuda, Lisboa, ciclo Formações Extraordinárias (Festas de Lisboa), junho de 2022
 
· Bruno Gabirro · “Harmoniemusik” (2021-2022) · Rui Silva (adufe), Bruno Gabirro (eletrónica) · “Aduf&lectrónica” [Miso Records] ·
· Bruno Gabirro · “Reverb” (2021-2022) · Rui Silva (adufe), Bruno Gabirro (eletrónica) · “Aduf&lectrónica” [Miso Records] ·
· Bruno Gabirro · “but I have many friends and some of them are with me” (2012) · Sond’Ar-te Electric Ensemble, Guillaume Bourgogne (direção musical) · “Portuguese Chamber Music of the XXI” [Miso Records (MCD 033/034.13)] ·
· Bruno Gabirro · “para os 25 anos da Miso” (2010) · Sond’Ar-te Electric Ensemble, Pedro Neves (direção musical) · “CADAVRES EXQUIS – Portuguese composers of the 21st century” [Miso Records (MCD 036.13)] ·
· Bruno Gabirro · “Julia Conesa Conesa” (2008) · Claire Brown (voz), Dominic Muldowney (piano) · gravação do compositor ·
· Bruno Gabirro · “per piano” (2008) · Evita Sfakianaki (piano) · gravação do compositor ·
· Bruno Gabirro · “vai faltar sempre um dia” (2008) · Gareguin Aroutiounian (violino), Orquestra Gulbenkian, Lorraine Vaillancourt (direção musical) · gravação do compositor ·
· Bruno Gabirro · “entre murmúrios e silêncios” (2007) · Royal Academy of Music Wind Quintet · gravação do compositor ·
· Bruno Gabirro · “Tento” (2006) · Maria Oldak e Haruko Motohashi (violinos) · gravação do compositor ·
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