Em foco

Rui Penha


Foto: Rui Penha · © Bruno Nacarato

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Questionário/ Entrevista

Parte I · raízes e educação

· Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? ·

Rui Penha: Foi um feliz acidente. Era o mais novo da família e fui estudar música porque os primos mais velhos também o faziam. A escola genérica era, regra geral, muito desinteressante, pouco desafiante e paupérrima em conteúdos estimulantes. Só era salva pelos raros professores que tinham particular paixão pelo que ensinavam e que estavam sempre prontos para se borrifarem nos manuais e nos programas em nome de uma oportunidade de enamoramento pelo objecto de estudo. (Hoje, infelizmente, estamos ainda pior, até porque temo que já não haja paixão capaz de vencer os espartilhos que esganam a relação entre os professores e os alunos.)

No ensino da música não era assim. Uma parte significativa dos professores tinha autêntica paixão pelo que ensinava e autonomia – dada ou roubada, para o caso tanto faz – para encontrar a melhor forma de fazer despertar essa paixão nos alunos, trazendo para as aulas todas as suas idiossincrasias e excentricidades. A primazia das aulas individuais ou em grupos pequenos ajudava muito, como é óbvio. Foi então nas escolas de música que encontrei os melhores professores, os desafios mais estimulantes e as melhores condições para aspirar a ser algo mais do que uma mera consequência óbvia do meu contexto familiar, que, por si só, me teria certamente empurrado para a ciência ou para a engenharia.

Não acredito que a música fosse a única opção para a minha vida – a minha paixão por Bach, embora mais antiga, não é maior do que a minha fixação por Heidegger e as minhas competências técnicas como pianista são até menores do que as minhas competências como programador informático –, mas foi aquela que mais cedo se revelou como abertura para um promissor salto de fé. Feliz ou infelizmente, ainda não sei bem, não temos direito a muitos destes saltos numa vida, pelo que me parece que é na música que me encontrarei por mais algum tempo.

· Que caminhos o levaram à composição? ·

RP: Poderia dizer que se tratou de uma vontade de me dedicar a um envolvimento profundo com o mundo que só é possível através da poiesis artística, mas a verdade é que esta é uma razão que só descobri já depois de estar há muito deste lado. É a razão que dá hoje sentido ao salto de fé que me trouxe para a composição, mas não foi a causa material desse percurso. Para essa causa terei de me reportar a outros acidentes, felizes como quase todos o são em retrospectiva.

A primeira vontade que reconheci como minha foi, na verdade, a de fazer um percurso na música antiga. Percebi depois que o que me atraía na música antiga era a sua comparativa estranheza: assim que uma dada prática do passado se começava a tornar mais familiar, eu começava a perder o interesse por ela (ainda que não o gosto, que de resto mantenho até hoje). Entretanto, era já um pouco tarde de mais para alcançar um virtuosismo instrumental que me permitisse voos interessantes nessa vertente, pelo que voltei a minha atenção para a direcção.

Contudo, percebi rapidamente que aquilo que me interessava na direcção era o processo de trazer à luz novas obras, pelo que achei que o estudo da composição me daria as bases mais sólidas para tal. Fui estudar composição, portanto, com o intuito de aí fundar uma carreira como performer. Só in media res descobri que o compositor, em particular na música electroacústica, tem de ser também – talvez até primordialmente – um performer. E aqui fiquei.

· Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si? ·

RP: Todos aqueles de que me recordo, e não apenas os circunscritos à educação musical: tudo o que nos toca contribui para aquilo que somos. Uma característica tão importante quão negligenciada da memória humana é a capacidade de esquecer. Eu tenho muita confiança na minha capacidade de me esquecer do que não é importante e de, assim, conseguir seleccionar o que o é. Se não fizer o esforço explícito de recordar os maus momentos, só me vem à memória um percurso muito feliz na música, mesmo nos momentos que mais tarde se revelaram equivocados. Não obstante, consigo identificar que quase todos os momentos altos aconteceram em concertos ao vivo: aquele momento em que aquela peça me tocou por razões que nem sempre consegui explicar inteiramente na altura. Toda a educação musical é justificável enquanto preparação para que esses momentos possam acontecer.

Parte II · influências e estética

· Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical? ·

RP: Temo não saber responder muito bem a esta pergunta… Posso apenas dizer que mudam consoante aquilo em que estou a trabalhar num dado momento, sendo todas inteiramente assumidas. Qualquer ouvinte conhecedor identificará com facilidade quais são as convocadas em cada caso e não é raro que as identifique também nos textos que acompanham as obras. Cada trabalho convoca um universo próprio de referências – musicais e não só – e é nesse universo que tenho de estar completamente imerso durante os meses de incubação de uma peça (para minha desgraça, sob o ponto de vista pragmático, sou um compositor extraordinariamente lento). A presença de Bach na estante do meu piano é, talvez, a única constante que vê o passar dos anos, mostrando-me assim que alguns clichés até têm razão de ser. Mas, para a minha prática como compositor, a música de Bach aparecerá apenas como testemunho de um transcendente envolvimento com a matéria da musica. Algo que não pode servir como referencial, já que esse grau de envolvimento não está acessível a um comum mortal como eu.

· No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical? ·

RP: Não consigo responder a esta questão em pouco espaço, até porque se o pudesse fazer inteiramente em palavras não precisaria da música para nada. É errada – e muito perigosa – a ideia de que tudo o que é significante pode ser traduzido ou codificado numa qualquer outra forma de transmitir informação, seja ela composta por números, bits, imagens ou palavras. Há sempre algo que se perde – e outro tanto que se ganha, ainda que inadvertidamente – na tradução ou na transmutação. O caso da arte, de resto, ilustra bem o truísmo de que o meio é a mensagem. Também me parece perigosa a ideia da arte enquanto expressão de algo, como se o que encontramos na música fosse apenas a tradução em música de algo que o próprio autor encontrou bem definido antes, presumivelmente dentro de si próprio. Incomoda-me ainda a forma recorrente como alguns artistas reclamam para si o controlo do poder simbólico de um ou outro elemento das suas obras. Este poder simbólico pode ser real, mas parece-me que o é sobretudo quando não depende das explicações explícitas – e, por vezes, até da consciência prévia – do seu autor. Em resumo, esta é uma questão muito difícil e sobre a qual tenho escrito algumas ideias, para onde, e na impossibilidade de as conseguir resumir aqui, remeto um eventual leitor interessado.

· Existem fontes extra-musicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho? ·

RP: Não sei se existe o extra-musical: tudo pode ser musical se o ouvirmos enquanto tal. O problema está, a meu ver, na visão da arte estritamente baseada na sua materialização como objecto artístico ou na sua emersão enquanto fenómeno cultural. Sob essas lentes, pode ser verdade que há objectos musicais e objectos não-musicais, ou que é possível dividir as práticas entre as que são musicais e as que não o são. Mas a arte é muito mais do que isso, exige um envolvimento com o mundo que vai muito para além da separação sujeito-objecto ou de qualquer demarcação cultural. Tudo pode ser musical – na verdadeira acepção da palavra, e não apenas no sentido substantivo –, se nos deixarmos envolver com o mundo dessa forma.

· No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade? ·

RP: Não, mas também não sinto nenhum particular afastamento de nenhuma!

· No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade? ·

RP: Cada obra minha é um reflexo das referências que insistiam em não me largar no momento em que a escrevi. Raras vezes são escolhidas de forma consciente, sendo frequentemente encontradas enquanto estava distraído com outro objectivo qualquer. É por isso que invisto tanto tempo na seriíssima ocupação de me distrair com tudo e mais alguma coisa, o que não podia estar mais longe do diletantismo ou da superficialidade. Por alguma razão, que nem sempre percebo muito bem antes de dar a obra por terminada, algumas referências põem o pé na porta e insistem em ficar a acompanhar aquele trabalho até ao fim. Algumas ficam depois para jantar, outras vão-se embora logo de seguida. Tenho de as levar a todas a sério, sob pena de perder a oportunidade de as compreender através da sua incorporação na minha acção poiética sobre o mundo.

Por razões que serão óbvias, tropeço mais frequentemente em referências oriundas daquilo a que se convencionou chamar de “cultura ocidental”, embora tenha sérias dúvidas de que possamos tratá-la de forma tão una e estanque. Não só estão mais próximas do meu quotidiano, como são as que tenho mais facilidade em incorporar na minha mundividência. Mas gosto sempre mais daquilo que me mostra novas formas de ver o mundo, pelo que a curiosidade acaba por me levar a todo o lado. E não é raro que me sinta mais próximo de elementos da cultura de outros locais do que da generalidade dos produtos da indústria de entretenimento ocidental, por fáceis que sejam as interpretações mal-intencionadas que esta frase poderá ter.

No entanto, só ascendem à verdadeira condição de referências as que transcendem a condição de objectos distantes de mim para se tornarem, ainda que muito lentamente, parte integrante da minha mundividência. Se eu sou inegavelmente “ocidental”, então, a partir desse momento, essas referências são também, e na mesma medida, “ocidentais”. Tenho sérias dúvidas de que possamos convocar verdadeiramente uma referência ao mesmo tempo que a mantemos à distância, seja porque motivo for. Por vezes confunde-se o respeito com a distância, mas, para mim, são conceitos mais antitéticos do que aparentados. A distância vem geralmente da soberba, do medo ou da indiferença. No que me toca a mim, e perante as pessoas e as ideias que admiro e respeito, pretendo manter o mínimo de distância possível.

· O que entende por “vanguarda” e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista? ·

RP: Não sou nada materialista, pelo que a ideia de vanguarda enquanto grupo avançado que explora o caminho que será depois inevitavelmente seguido pelas massas me é completamente estranha. E vanguarda não é certamente um “estilo”: haverá poucas coisas musicalmente mais conservadoras nos dias de hoje do que escrever, e.g., uma peça ao estilo do Pierre Boulez ou do Karlheinz Stockhausen dos anos 60 do século passado, por muito revolucionárias que tenham sido algumas das suas ideias à época.

Posto isto, a arte que se faz antes de ser feita, ou seja, a arte que se filia num determinado estilo escolhido de forma apriorística, ou que surge de uma vontade de reconhecimento deste ou daquele grupo particular, em geral não me interessa minimamente. Interessa-me a arte que me propõe novas formas de ver o mundo, o que depende, claro, tanto da minha capacidade de a compreender como do meu conhecimento acerca do contexto em que surgiu. É um equilíbrio difícil: se nos situarmos completamente fora de uma tradição, o que fazemos é ininteligível; se nos situamos completamente dentro de uma tradição, o que fazemos é redundante.

Talvez seja isto que podemos entender como vanguarda: a atitude exploradora das fronteiras do que ainda não é musical numa dada tradição, sempre alicerçada numa firme vontade de trabalhar o material por forma a tornar claro para o ouvinte atento que a fronteira do musical é expandida precisamente através dessa acção artística. Se assim for, então diria que o que me interessa é exactamente a arte de vanguarda.

Parte III · linguagem e prática musical

· Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas / estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora. ·

RP: Costumo dizer, para choque de alguns, que caracterizar a linguagem ou o estilo de um compositor em actividade é um pouco como fazer uma autópsia no corpo de um doente vivo: conseguiremos certamente muita informação relevante para o nosso objectivo de curar o paciente, mas este não sairá vivo da operação. Espero que a minha linguagem musical seja ainda um devir e não um corpo morto, pelo que peço que me libertem do ónus de ter de responder a esta questão de outra forma que não a de compor mais música!

· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo? ·

RP: O processo de cada obra é diferente, porque cada uma delas pede coisas únicas. Não consigo separar a obra do contexto em que surgiu: quais são as minhas preocupações do momento, quais os livros que li enquanto a escrevia, quem ma encomendou, o espaço em que será a estreia, etc. A haver alguma constante, ela é a de que não fico satisfeito se não aprender alguma coisa nova com cada obra que faço. Ou seja, dificilmente sairá das minhas mãos uma obra que seja apenas a materialização de uma ideia apriorística, uma obra que consiga antever por inteiro antes de a materializar.

Nesse sentido, e embora perceba o seu sentido histórico, afasto-me da arte conceptual sempre que esta invoca para a ideia o papel de ser a máquina que faz a arte. Há um inequívoco poder revelador da poiesis, que não tem nada a ver com o capricho arbitrário do artista, estando, ao invés disso, fundado na sua capacidade de reconhecer em permanência a qualidade do seu envolvimento com a matéria que está a trabalhar. É este envolvimento que conduz à descoberta de soluções para problemas que muitas vezes nem saberíamos muito bem como formular de antemão, mas que se tornam, através da manipulação do material, claros como água. E, de repente, compor torna-se tão fácil que sentimos que estamos a ser guiados através do desconhecido por algo que nos transcende. Até isso acontecer – e é tão raro quanto tem que ser para que possa ser tão especial quanto o é – o único método que tenho é trabalhar, trabalhar, trabalhar; escolher, rever e, sobretudo, deitar fora tudo o que está a mais.

· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração? ·

RP: Não consigo separar as duas coisas. Eu sou um só quando estou a compor: com a razão, a emoção, a intuição e todas as relações entre elas que só são complicadas porque as tentamos separar artificialmente através do discurso. Dou porventura alguma primazia ao controlo racional apenas para tentar evitar o capricho do gosto, que é, no fundo, um julgamento de base apriorística que, sendo tentador, tem um alcance sempre muito limitado. Não desisto nunca à primeira do que não gosto, embora desista quase sempre à segunda daquilo de que gosto à primeira. Só se pode gostar de imediato do que convoca aquilo de que, de forma consciente ou não, já gostávamos antes: é um terreno entediante e, francamente, pouco fértil em coisas com que valha a pena gastar tempo. Fora isso, e apropriando-me da frase de um dos nossos gigantes, tento pôr tudo quanto sou no mínimo que faço.

· Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música? ·

RP: A minha relação com a tecnologia é muito complicada. Por um lado, e quando a dominamos, é um instrumento fantástico para chegar a determinados fins que seriam impossíveis sem esse controlo da técnica. É, nesse caso, em tudo semelhante ao virtuosismo num instrumento musical. Por outro, é um domínio que facilmente captura a nossa mundividência, colocando-nos ao serviço da própria tecnologia e sem grandes meios para lhe resistir. É uma ambiguidade que já muitos identificaram e que não sei como – ou sequer se – a conseguiremos resolver.

Por isso, o mais importante para mim é sentir que domino as técnicas que uso, o que é mais facilmente posto em evidência quando as uso para fins diferentes daqueles para os quais foram criadas. Tento assim fugir dos usos que me são sugeridos pela maneira como a própria técnica se apresenta, situações nas quais acabo por me sentir eu o controlado. Daí o ênfase na programação de software e na construção de novos instrumentos no meu percurso recente: não é tanto uma vontade de estar na crista da onda da tecnologia, mas sim uma tentativa – que sei ser, no fundo, vã – de manter alguma capacidade de respirar no seio do vortex tecnológico em que vivemos e que acabará por nos reduzir a todos à condição de utilizadores.

· Defina a relação entre a música e a ciência e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação. ·

RP: Outro tópico complicado sobre o qual tenho escrito algumas coisas que não consigo resumir aqui. Direi apenas que a arte e a ciência são formas muito diferentes e, por isso mesmo, complementares de lidar com a complexidade do mundo. A ciência procura abstrair dessa complexidade lentes que nos permitam formar uma compreensão e informar uma acção sobre o mundo, lentes que nos ajudem a trazer à superfície o que há de universal num mundo de particulares. Há hoje muito boa gente que acredita que não há nada mais a dizer para além disso.

Mas uma abordagem que procura trazer tudo à superfície será sempre, e como o próprio nome indica, superficial. A arte, por seu turno, assume a complexidade do mundo como irredutível, olhando para cada encontro com cada particular precisamente através daquilo que o torna particular. Mas, e como a complexidade do mundo é inesgotável, uma abordagem que se detenha em cada pormenor dessa complexidade não tardará a conduzir-nos à imobilidade da contemplação. Não acho, por isso, que ninguém ganhe em separar a arte e a ciência, nem na academia, nem na sociedade, nem na vida de nenhum indivíduo em particular.

Pela minha parte, interesso-me imenso por ambas, o que não pode deixar de se reflectir naquilo que faço. Não obstante, parece-me que a balança social está, neste momento, claramente desequilibrada no sentido de privilegiar quase em exclusivo a ciência. Um dos perigos mais óbvios desse desequilíbrio é o de que algumas pessoas comecem a sentir a falta daquilo que a ciência não lhes pode dar – até porque não estaria a fazer bem o seu trabalho se o pudesse – e a identificarem nisso um problema intrínseco da ciência, levando-as a rejeitá-la liminarmente mesmo nos domínios em que será pouco ajuizado fazê-lo. Se sinto que a ciência não dá resposta aos meus anseios enquanto, ao mesmo tempo, esta se apresenta como a única actividade humana capaz de dar resposta a todas as questões, é natural que me pareça óbvio que tenho de a rejeitar…

O preocupante fenómeno de rejeição da ciência a que assistimos hoje é, parece-me, uma consequência de um esvaziamento promovido pela própria ciência, e que, enquanto tal, se resolverá mais facilmente por uma recuperação do papel das humanidades (entre as quais incluo as artes) do que pela perseguição inquisitória dos descrentes na exclusividade iluminadora da ciência. Haveria muitas lições históricas que poderíamos convocar aqui, mas parece-me que estamos sobretudo a pagar o preço da excessiva especialização do ensino. Apropriando-me do célebre aforismo de Abel Salazar, diria que o artista que só sabe de arte, nem de arte sabe. E que o cientista que só sabe de ciência, nem de ciência sabe.

· Qual a importância do espaço e do timbre na sua música? ·

RP: Podemos ver toda a música como sendo materializada através da articulação (ritmo, métrica) de uma morfologia espectral (timbre, afinação, harmonia) num espaço acústico que, na música ocidental, tende a ser um espaço fechado. (Mesmo nos concertos ao ar livre, o paradigma acústico que prevalece é o do espaço fechado e não o do campo aberto.) Tomada a consciência disto, como poderiam estes elementos não ser importantes? Ainda para mais num momento histórico no qual já tomamos, colectivamente, consciência da importância desse facto e no qual proliferam diversas perspectivas sobre essas questões.

Poderia escolher relacionar-me com esse facto ignorando-o ostensivamente, o que seria uma escolha artística perfeitamente legítima, desde que tomada em consciência. Não foi o meu caso, em particular no que concerne à relação da música com o espaço, que acabou por se tornar no tema do meu doutoramento. Mas é importante para mim que o trabalho no espaço seja mais uma tomada do discurso musical pela consciência do espaço do que o contrário. Ou seja, não quero fazer no espaço a mesma música que faria sem o espaço, apenas com esse ornamento extra: um pouco como quem orquestra uma peça que foi nitidamente pensada para o piano. Quero que o trabalho no espaço contamine o discurso musical de um modo que torne a obra impossível sem esse elemento, de modo a que o gesto musical exista não apenas no espaço, mas através dele. Como em quase tudo, é mais fácil dizê-lo do que fazê-lo.

· O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música? ·

RP: Sim, como se pode depreender das respostas anteriores. Se não experimento e, com isso, aprendo algo de novo, então sinto que não tenho nada de novo para dizer e que o meu trabalho é redundante.

· Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso? ·

RP: Gostaria de poder dizer que são todas, no sentido em que são únicas. Mas, na verdade, contingências pragmáticas obrigam-me a fazer por vezes peças nas quais experimento menos e que são, por isso, herdeiras de outras experiências anteriores, tornando-se menos importantes. Diria que as peças que fiz durante o meu doutoramento (em particular as duas últimas, a “auditorium” e a “pendulum”, ambas de 2012) foram muito importantes pelas condições em que foram feitas, muito favoráveis à lentidão e à reflexão. Não significa que sejam as “melhores”, longe disso: parece-me, aliás, raro que possamos identificar o grande aprimoramento como característica mais relevante em obras de carácter experimental. Mas foram obras que me mostraram a importância de deixar que o envolvimento com o material me mostre aonde me quer levar. E que me mostraram que o ponto de chegada pode ser surpreendente até – e, porventura, sobretudo – para mim próprio. Foi nestas obras que senti pela primeira vez a chegada a algo próximo da feliz frase de Morton Feldman: “I don't push the sounds around.”

· Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares? ·

RP: Como disse acima, logo na segunda resposta, acho que são mais do que complementares: coexistem. Componho sempre a pensar na performance e poucas coisas me dão mais prazer do que as raras oportunidades que tenho de tocar a minha própria música, embora não possua particulares qualidades que me recomendem enquanto performer da música dos outros. Mas não creio que seja um acidente o facto de que tantos compositores tenham sido também excelentes intérpretes, ainda que o possam ter sido em diferentes momentos das suas vidas. A cada vez maior complexidade do que é exigido de uns e de outros limita seriamente a capacidade de dedicação séria a ambas as carreiras. No entanto, a invenção do compositor que não começa por ser proficiente na performance é muito recente, circunscrita a um pequeníssimo meio musical – do qual, de resto, faço parte – e carece porventura ainda de uma validação que só o tempo poderá trazer.

Parte IV · a música portuguesa

· Tente avaliar a situação actual da música portuguesa. ·

RP: Não sei se existe uma “música portuguesa” num sentido não dependente das circunstâncias que levam a que determinadas obras musicais sejam feitas em Portugal. Fazer música em Portugal é desnecessariamente difícil porque é raro termos condições para fazermos de forma séria o nosso trabalho. Porquê? Porque nos é exigido tudo e mais alguma coisa – e, sobretudo, coisas estupidificantes, como burocracia, marketing, recolha de indicadores, adequação a critérios obtusos, etc., etc. –, mas quase nunca nos é exigido que façamos o nosso trabalho com seriedade.

Aquilo de que mais falta sinto em Portugal é de uma massa crítica conhecedora e exigente, um grupo do qual possam emergir críticos musicais sérios e dedicados e, se não for pedir muito, políticos e gestores culturais mais motivados pela sua dedicação à causa da mundividência artística do que pela sua vontade de pertença – ou de crítica, que é também uma forma de vinculação – a este ou àquele grupo social. Tudo o resto – mais ou menos dinheiro, mais ou menos instituições, mais ou menos equipamento, mais ou menos divulgação, mais ou menos pensamento consequente sobre a arte, mais ou menos tempo para a criação – se resolverá facilmente se houver uma massa crítica exigente.

· O que, em seu entender, distingue a música portuguesa no panorama internacional? ·

RP: Tenho dificuldade em responder a esta questão. A mim interessa-me sempre mais conhecer o compositor x – ou até usufruir plenamente da obra x do compositor y – do que filiar a minha avaliação da sua obra numa qualquer classificação feita com base em critérios históricos, estilísticos ou geopolíticos mais ou menos arbitrários. Não é uma posição assim tão estranha, acho, já que a mim me interessa sempre mais conhecer a pessoa x – ou até usufruir plenamente do encontro x que tive com a pessoa y – do que filiar a minha avaliação dessa pessoa numa qualquer classificação feita com base em critérios históricos, estilísticos ou geopolíticos mais ou menos arbitrários.

Não obstante, é claro que o contexto do criador é determinante para a sua mundividência e que esta emergirá sempre na sua produção artística. Parece-me, contudo, que no contexto da música de arte portuguesa – para usar a expressão proposta neste questionário –, a mundividência é sobretudo determinada pela actividade musical dos países europeus de onde vêem as obras programadas pelos nossos gestores culturais e para onde vão os nossos compositores estudar. Não me parece possível, por isso, estabelecer fronteiras – ainda que artificiais, como todas o são – que demarquem a música portuguesa.

As obras feitas em Portugal ainda morrem demasiadas vezes no mesmíssimo dia em que nasceram, em estreias não raras vezes marcadas pela ausência de condições dignas de ensaio e de performance. Não tenho a certeza de que seja desejável criar uma “forma portuguesa” de fazer música, mas tenho a certeza de que nunca conheceremos verdadeiramente os compositores que criam em Portugal – e o alcance da sua mundividência – se esta situação não se alterar significativamente.

· No seu entender é possível identificar algum aspecto transversal na música portuguesa da actualidade? ·

RP: Musicalmente falando, acho que não. Pelas razões que já expus acima.

· Como define o papel de compositor hoje em dia? ·

RP: Acho que não é diferente do que sempre foi, nem me parece que seja substancialmente diferente do papel de qualquer outro tipo de artista. Nem sequer acho que seja substancialmente diferente do papel de ser um ser humano que, usando a terminologia existencialista, viva uma vida autêntica. Trata-se de desenvolver um envolvimento profundo com o mundo que se manifesta sob uma peculiar prática a que convencionamos chamar de música. É um privilégio enorme poder ter o tempo e calma necessários para deixar que este envolvimento com o mundo cresça com a lentidão necessária. Ser capaz de manifestar esse envolvimento através de algum tipo de criação artística é um privilégio adicional, mas um que é, quanto a mim, subordinado ao primeiro. Não só não estamos a lutar para que mais e mais pessoas possam ser libertadas da vil luta contra a escassez, tendo assim – e apenas assim – real acesso a estes privilégios, como inventamos cada vez mais escassez artificial e mais micro-divisões do trabalho para que ninguém possa escapar às amarras da dicotomia labor/entretenimento que afoga o potencial humano que há em cada um de nós.

Parte V · presente e futuro

· Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? ·

RP: Neste momento aguardo ansiosamente estreias de obras que foram adiadas por causa da pandemia. Estou também a preparar uma peça para o Sond’Ar-te Electric Ensemble, sobre a qual nada posso dizer por enquanto. Tenho ainda muitas aulas para preparar, livros e artigos para ler e para escrever, todas actividades que me dão tanto prazer quanto a composição. Depois disso não sei: não gosto de fazer planos a longo prazo. Tenho medo que me impeçam de aproveitar as oportunidades de mudança que volta e meia me aparecem pela frente.

· Como vê o futuro da música de arte? ·

RP: Não tenho o dom de ver o futuro. Mas tenho algumas pistas sobre a direcção para onde gostaria de caminhar, lentamente e dando sempre à reflexão pós-experiência primazia sobre qualquer ideologia apriorística. Julgo que alguns desses caminhos terão ficado claros nas respostas anteriores. É para lá que tentarei ir, se nada de mais importante me distrair entretanto.

 

Rui Penha, Dezembro de 2020
© MIC.PT

 


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Rui Penha · no man is an island
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  Rui Penha · Pendulum
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Entrevista com Rui Penha conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2020.01.23).
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· "Pendulum" (2012) · Sond'Ar-te Electric Ensemble, Guillaume Bourgogne (direcção) · Portuguese Music of the XXI · [Miso Records] ·
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