Em foco

Pedro Rebelo


Questionário/Entrevista

Parte 1 . raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?

Pedro Rebelo: Sempre tive um interesse pela música e lembro-me de ouvir a banda do meu irmão mais velho a ensaiar lá em casa. Comecei a brincar com alguns instrumentos e aos 10/11 anos pedi aos meus pais para ter lições de piano. A par do reportório clássico das aulas de piano comecei a tocar em bandas (com os tais instrumentos do meu irmão...). O rock (mais ou menos progressivo) deu eventualmente lugar ao jazz, ao free jazz e improvisação livre, ainda antes de ter decidido estudar música no ensino superior.

Que caminhos o levaram à composição?

PR: Durante a adolescência a composição foi simplesmente uma forma pragmática de organizar materiais musicais para tocar com amigos. Foi na minha licenciatura na Universidade de Edimburgo que a composição se tornou uma actividade mais focada e suficientemente aberta para poder incluir o meu interesse na improvisação.

Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?

PR: A minha primeira memória é do meu irmão a ensinar-me As àguas de Março do Jobim num piano eléctrico Elka, com ele a tocar a harmonia e eu a melodia.
A primeira aula de harmonia no primeiro ano de licenciatura em Edimburgo com o professor Nigel Osborne. Pediu para nos descalçarmos e tomarmos um lugar no enorme gamelão espalhado pela sala. Uns anos mais tarde numa aula privada com o compositor Gérard Grisey apresentei uma instalação baseada num espectro duma sala e ondas sinusoidais. Lembro-me de ele dizer que as ondas sinusoidais soavam tristes o que me levou a trabalhar o mesmo conceito para uma orquestra de cordas, ele não chegou a ouvir o resultado... Em termos de repensar a música... o meu doutoramento foi feito numa escola de arquitetura; isto foi talvez o ponto mais significativo da minha educação musical!

Parte 2 . influências e estética

Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical?

PR: Em termos gerais a música improvisada livre, com descendência do free jazz mas com incidência na vertente europeia desde os anos 60, é para mim talvez a referência principal. Cage é também um ponto de referência que revisito regularmente.

No seu entender, o que pode exprimir e/ou significar um discurso musical?

PR: Imensas coisas mas sempre dependentes do contexto. O contexto (musical, cultural, social etc.) tem, a meu ver, um papel central no discurso musical e nos seus possíveis significados. Estou-me a referir aos contextos em que a música é feita, tocada, ouvida, lembrada, imaginada... ou seja contextos em permanente desenvolvimento e alteração. Devo adicionar também que a música tem uma capacidade incrível de recontextualização, o que desdobra ainda mais a sua capacidade de interação com as pessoas.

Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

PR: As artes plásticas a partir da segunda metade do século XX são uma referência importante para mim. A arquitectura e formas de pensar em espaço são talvez as fontes mais importantes.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

PR: Não especificamente, embora me sinta à vontade na improvisação livre de um modo geral.

Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?

PR: Sim, pontualmente.

O que entende por “vanguarda” e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

PR: No contexto onde trabalho (como professor universitário no Reino Unido) é uma palavra que já não ouço há bastante tempo!!! O conceito modernista de vanguarda não me parece útil neste momento. A minha preocupação centra-se no fazer música como acto de investigação e criação de conhecimento.

Parte 3 . linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas/estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

PR: Os elementos principais centram-se nos seguintes pontos:
Uma abordagem espectral em situações que se exerce escolha de alturas e harmonias.
Uma abertura formal (open form).
Uma abordagem de notação (gráfica ou híbrida) que partilha decisões com os performers.
A improvisação como método de garantir escuta crítica e uma abordagem social ao fazer música.
Embora cada vez menos me associe à música electroacúsica como formato, não posso negar a sua influência no que diz respeito ao tratamento de materiais sonoros.
Elementos documentais que possam de alguma forma comunicar contexto, espaço e identidade têm-se tornado cada vez mais importantes. Muitas vezes isto se traduz na utilização de gravações de campo e entrevistas num contexto quase radiofónico.

No que diz respeito a sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

PR: Depende, mas muitas vezes o contexto e conceito é pré-definido (talvez em resposta a um estimulo exterior). Gosto de trabalhar o conceito do ponto de vista das ideias que estão por trás de um trabalho. Quando chega ao ponto de fazer música, trabalhar materiais etc., o meu espírito de improvisador toma conta do processo...!

Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os “impulsos criativos” ou a “inspiração”?

PR: Não faço muita distinção entre estes dois campos embora existam claramente momentos de criação de ideias e momentos de execução. Tento que a relação entre ambos seja a mais fluida possível.

Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?

PR: Todas as tecnologias influenciam o fazer da música pois trazem com elas determinados “workflows”, resistências, oportunidades e culturas. Isto aplica-se tanto às tecnologias digitais como a vários instrumentos tradicionais. Um dos meus exemplos preferidos é a prática da Mbira – o lamelofone usado em muitas partes da África. Em certas comunidades a canção ou melodia é definida pelo padrão de dedilhação e não pela sequência de alturas (ou seja, o mesmo padrão de dedilhação pode ser utilizado com afinações diferentes). Trata-se de um exemplo de tecnologia musical reprogramável.

Qual a importância do espaço e do timbre na sua música?

PR: Imensa! O espaço (entendido como uma forma de qualificar lugar, distâncias, acústicas, ressonâncias, localizações, comunidades, identidades) é o elemento principal na minha música. Para mim o espaço, através da ressonância está sempre ligado ao timbre.

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

PR: Sim, a outra opção é o “derivativismo” que não me interessa.

Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares?

PR: Para mim são interligadas e por vezes indistinguíveis. A performance, composição (e improvisação) são nomes que se dão a actividades que muitas vezes não são diferenciadas na prática musical do dia-a-dia, especialmente em ambientes colaborativos e partilhados.

Parte 4 . a música portuguesa

Tente avaliar a situação actual da música portuguesa.

PR: Extremamente saudável, diversificada, partilhada, inovadora e a ganhar visibilidade internacionalmente.

Conforme a sua experiência quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?

PR: As políticas de financiamento, patrocínios e de educação pesam em Portugal de um forma que nem sempre é visível noutros países. Nos últimos anos (para quem vê de fora) nota-se uma muito maior agilidade e posicionamento da parte de criadores, promotores, associações... Esta agilidade faz com que haja alguma independência das agências governamentais por exemplo. É importante que haja um sector criativo que não esteja sujeito à rotina política de mudança de governos. É importante que esse sector se possa concentrar em objectivos de médio e longo prazo.

Parte 5 . presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

PR: Vou começar a preparar um projecto participativo de arte sonora em Viseu (minha terra natal) com uma duração de três anos, no contexto dos Jardins Efémeros. Este projecto vem no seguimento do trabalho, “Som da Maré”, na favela da Maré no Rio de Janeiro. Como contraste, tenho uma encomenda para o quarteto de saxofones Quasar de Montreal para o Outono. Nos próximos três anos irei focar-me num estudo sobre som, musica e conflito em várias partes do mundo e no contexto de um projecto de investigação de grande escala na Queen’s University Belfast.

Poderia destacar um dos seus projectos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

PR: Um dos projectos que teve um impacto grande na minha forma de pensar na função da música e do som chama-se Listening to Voices. Trata-se de uma peça binaural, semi-documental com 30 minutos que explora a experiência de ouvir vozes. É um projecto participativo com pessoas diagnosticadas com esquizofrenia. O processo de composição incluiu exercícios de escuta (e.x. passeios sonoros), gravações de campo, entrevistas, “re-enactments”, entre outros. A peça tem como objectivo dar a conhecer, de uma forma experiencial o que é ouvir vozes. As características do público alvo para esta peça são muito diferentes de outros projectos. Isto levou a que o acto de composição fosse mais reflectivo do ponto de vista do impacto da obra. A peça tem um carácter quase radiofónico, mas não necessariamente narrativo.

Como vê o futuro da música de arte?

PR: Não ser chamada de música de arte mas apenas música (ou apenas arte!). A cima de tudo, vejo as práticas musicais contemporâneas como parte do enquadramento mais abrangente das artes sonoras. Isto com o objectivo de quebrar preconceitos que associam supostos níveis de erudição a determinadas formas de apresentar música (a partitura, a sala de concerto...). Na prática, há uma geração de criadores que estão à vontade na sala de concerto, num barracão a desenvolver uma instalação, a programar um aplicativo para smartphone, num DJ set de um clube alternativo, ou a trabalhar com uma comunidade num projecto participativo numa galeria de arte moderna, ou ainda a fazer intervenções públicas. As artes sonoras abrangem tudo isto.

Pedro Rebelo, Setembro de 2016
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