“Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / À parte isso, trago em mim / Todos os sonhos do mundo.”
Álvaro de Campos
Compositora, pianista, percussionista e professora, Constança Capdeville aliou a música à componente cénica no contexto do teatro musical (ou teatro-música), ocupando uma posição singular no universo da música portuguesa. A sua criação espelha a reflexão estética sobre a indissociabilidade entre a vida e as artes, sem nunca esquecer a importância da pesquisa sonora, corporal/gestual e literária da obra. “A Constança caiu de outra galáxia e esteve cá pouco tempo. A música portuguesa não estava preparada para ela, agora é que falam dela, alunos dos alunos, «o que fazia a Constança». Mas é preciso que se tente reavivar os espectáculos dela, que eram maravilhosos. Tinham uma luminosidade e uma variedade, com a música no centro… não era só movimento, da música é que saía o movimento.”[1] Constança Capdeville nasceu em Barcelona em 1937. A sua actividade criativa começou muito cedo, pois com 12 anos já tinha escrito várias pequenas peças: “Caixinha de Música” para piano, “Ária à Memória de um Rei Desaparecido”, “(...) onde a parte do canto era substituída por uma melodia no oboé”[2], “Visions d’Enfant”, uma pequena suite para piano. Iniciou os estudos musicais em Barcelona antes de se estabelecer permanentemente em Portugal a partir de 1951, devido a condicionantes político-sociais decorrentes da Guerra Civil de Espanha. Prosseguiu os estudos superiores no Conservatório Nacional de Música de Lisboa, cursando piano com Varela Cid e composição com Jorge Croner de Vasconcellos. Formou-se em interpretação de música antiga (transcrição, instrumentação, prática de clavicórdio e acompanhamento pianístico) através de cursos ministrados por Macário Santiago Kastner. “Ao entrar para a aula de Composição de Croner de Vasconcelos no Conservatório Nacional, Constança Capdeville era uma jovem quase criança ainda, com uma mistura de fragilidade e energia, possuidora de uns olhos enormes que pareciam querer sair-lhe das órbitas, de entusiasmo e de penetração”[3], recorda Gil Miranda. Constança Capdeville participou em trabalhos musicológicos através da Fundação Gulbenkian, da Biblioteca Nacional e da Biblioteca da Ajuda, tendo ainda colaborado num estudo, com Mário de Sampaio Ribeiro, relativo ao Tratado Lux Bella de Domingos Marques Durán. No Verão de 1962 foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, cursando composição na Galiza, com Philip Jarnach. Desta motivação surgiu a obra “Variações sobre o nome de Stravinsky”, para órgão, que mereceu o Prémio de Composição do Conservatório Nacional. Esta obra “marcou o início do período de maturidade da compositora, a qual manteve sempre os traços da cultura catalã, a influência dos seus mestres/criadores e, simultaneamente, integrou a tradição da arte e da cultura portuguesas.”[4] Inúmeros seminários e cursos de aperfeiçoamento conduziram-na à apresentação das suas obras em festivais nacionais e internacionais. Seguiu de perto o percurso da Orquestra Universitária de Lisboa, onde participou inúmeras vezes como compositora e intérprete. As suas obras iniciais, por exemplo a “Sonata concertante” (1963), já reflectem uma atracção forte pelas novas técnicas e linguagens alternativas. Contudo foi na metade dos anos sessenta quando tomou conhecimento mais profundo da música de Karlheinz Stockhausen, Igor Stravinsky e Vinko Globokar, entre outros, que a sua música se tornou particularmente experimental, enfatizando as investigações tímbricas, como em “Momento I” (1972-74).[5] Após o período de juventude, em que a compositora escreveu várias peças, sobretudo para piano, a sua carreira sofreu um impulso decisivo, em 1969, com a encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian da obra “Diferenças sobre um intervalo” para orquestra de câmara, que mostrava já uma linguagem musical personalizada e cuja 1.ª audição foi dada pela Orquestra Gulbenkian no XIII Festival de Música Gulbenkian de 1969. “A realização dessa partitura exigir-lhe-ia um grande esforço, do qual guardou sempre uma viva recordação. Para satisfazer a encomenda isolou-se durante meses...”[6] Ao longo da sua vida Constança Capdeville fundou vários grupos: Convivium Musicum e ColecViva que interpretaram respectivamente música de câmara e teatro musical, tendo este último criado a “anti-ópera” “Don’T Juan” (1985) nos IX Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea. “A sua actividade de compositora foi sempre acompanhada pela de intérprete de piano e percussão e, nessa qualidade, colaborou com os Menestréis de Lisboa, com o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (para o qual escreveu algumas das suas composições) dirigido por Jorge Peixinho. Integrou ainda a Orquestra Gulbenkian, enquanto percussionista convidada, em concertos de música do século XX, nomeadamente na estreia em Portugal de obras de Krzysztof Penderecki.”[7] A compositora elaborou também com o então jovem compositor António Sousa Dias o projecto “Opus Sic” (obras realizadas com sons sintetizados), no âmbito do qual foi criada a música para o bailado de Margarida Bettencourt, “Io Sono una Bambina o sono un disegno” e a banda sonora para o filme de António Macedo “A Maldição de Marialva”. Constança Capdeville notabilizou-se no ensino da composição, nomeadamente na Academia de Música de Santa Cecilia, na Escola Superior de Música de Lisboa e no Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa. Desde os 17 anos começou a dar aulas particulares de piano. A sua abordagem muito própria na actividade pedagógica marcou os seus discípulos, alguns hoje compositores reconhecidos – António de Sousa Dias, Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Tomás Henriques e Virgílio Melo, entre outros. “O seu ensino foi orientado pela tentativa de despertar os jovens para as novas relações que pretendeu estabelecer entre o gesto musical, a sonoridade da palavra e do texto, o movimento e a espacialização física dos corpos, deslocando-os do seu contexto próprio para outros universos em que assumiriam novos sentidos.”[8] "A Constança Capdeville era um daqueles fenómenos quase um pouco zen... não aprendi nada com ela, mas era daquelas pessoas que sabia abrir o que havia em cada pessoa – o não aprender neste caso é positivo."[9] (Virgílio Melo) “A visão quase onírica do mundo [de Constança Capdeville] teve um efeito hipnótico sobre mim que ainda pendura. As suas aulas tinham uma fragrância a sândalo. A sua presença era etérea e caminhava silenciosamente como quem voa baixinho...”[10] (Eurico Carrapatoso) “Curiosamente a Constança, paralelamente, na sua atitude perante o som e perante a própria música, cultivava uma espécie de atitude-espanto que as pessoas gostavam de associar a uma espécie de criança permanente que a Constança tinha dentro de si, e que ela própria gostava, ou pelo menos apresentava como uma espécie de atitude quase infantil, isto é, desprovida de uma forte herança cultural condicionadora.”[11] (António de Sousa Dias) “Este contacto com a Constança, além de muito enriquecedor e de ter sido humanamente uma coisa muito especial, abriu-me os olhos para certos aspectos da vida profissional, como pianista, como «música» e como professora, que não considerava sequer até então: a colaboração entre professor e aluno, havendo sempre respeito, mas com uma maior proximidade.” [12] (Olga Prats) Constança Capdeville era membro da Direcção do Conselho Português da Música e membro efectivo da Associaciò Catalana de Compositors de Barcelona. O Governo Português, reconhecendo o papel preponderante que desempenhou no panorama musical contemporâneo em Portugal, atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Cultural, em Outubro de 1990. A compositora faleceu em Fevereiro de 1992, com apenas 55 anos, na casa de Caxias, junto da natureza que serviu de enquadramento ao seu trabalho e à sua vida. No mesmo ano, a título póstumo, foi-lhe atribuído o Grau de Comendador da Ordem de Santiago de Espada.Teatro na música
Constança Capdeville era uma “grande impulsionadora” no meio musical português tendo influenciado tanto os compositores como os intérpretes da nova música, a quem transmitia as suas ideias do teatro musical, ou melhor teatro-música como gostava de dizer. ”[Constança Capdeville] deu-me a volta à cabeça, completamente, sobretudo a nível interpretativo, a nível de palco, a nível físico da música. A música tem muito de gestual. Ela limpou-me os ouvidos de preconceitos (...). Deu-me uma dimensão teatral, (...), esta naturalidade de entrar num palco e falar com as pessoas e explicar as coisas e estar à vontade”[13], salienta Olga Prats. Escreveu cerca de 80 obras de vários géneros: orquestra, música de câmara, para dança, teatro, cinema, teatro musical (encenando música original) e espectáculos cénico-musicais (encenando sobretudo música de outros compositores). “A extraordinária invenção de Constança Capdeville, o seu gesto inconformista, quase sempre marcado por um olhar irónico, senão sarcástico, estão na origem do género híbrido que constitui o traço distintivo da sua obra: entre o teatro e a música, entre a visão e a escuta, entre o teatro pré-fixado e a improvisação, entre o corpo e o instrumento, entre a estrutura e o processo, entre o espaço e o tempo.”[14] No âmbito de teatro-música se reiteram as tendências já afirmadas na música orquestral: uma faceta fortemente multidisciplinar, uma escrita de forma aberta, onde os temas são mais repetidos do que desenvolvidos e onde a nota polar substitui a tónica, perpassada de citações e afirmando a influência dos compositores seus mestres, como Wolfgang Amadeus Mozart, Claude Debussy, Eric Satie e Igor Stravinsky; escolhendo textos de escritores e poetas recorrentemente citados como Federico García Lorca, James Joyce, Blaise Cendrars, Edgar Allan Poe, T. S. Elliot; optando por referências, nomeadamente pelo processo da colagem, a pintores como Salvador Dalí ou Pablo Picasso; e olhando em face os inovadores da performance, como John Cage, Kurt Schwitters, Luciano Berio ou Mauricio Kagel. De todos se aproximou, referenciando-os, e de todos guardou a distância necessária à sua criação original. Nos seus espectáculos cénico-musicais homenageou Igor Stravinsky, John Cage e Cathy Berberian, recriando-lhes os textos e as músicas em encenações de grande humor e virtuosidade. É também de realçar a utilização de elementos cénicos em algumas das suas peças de câmara e a escrita de música para cinema. “Abordar o teatro musical de Constança Capdeville significa penetrar num universo multifacetado de sons e de imagens, que é o das pulsões criativas”[15], escreveu Maria João Serrão nas páginas da sua tese “Constança Capdeville. Entre o Teatro e a Música”. Na sua última peça de teatro-música para o cinema “Take 91”, Constança Capdeville conseguiu atingir um grande sincretismo, numa realização em que o cinema é o tema central, servindo as imagens projectadas de guião para a música, a representação e o canto e ostentando as mais recônditas memórias de infância.[16] “«Take 91» é uma nova aposta do ColecViva no sentido de, a partir de sensações, de memórias, de vivências, criar imagens – imagens visuais, imagens sonoras – organizando-as de modo a, por sua vez e através do fio mágico da comunicação, acordar memorias, criar novas imagens a quem vê, a quem escuta.”[17] Constança Capdeville, não professando nenhum credo, assumiu contudo uma mística de dicotomia entre terra e céu, subterrâneo e aéreo, obscuro e luminoso que atravessa as suas obras, bem como uma dialéctica com o invisível a que se refere repetidamente. “Ao compor «Libera me» situava-me no centro da terra enquanto que durante a composição de «Que mon chant ne soit plus d’oiseau» sentia-me num ponto central do espaço sideral.”[18] “Libera me” é uma composição cheia de conflito humano e pessoal, já que Constança Capdeville referiu-se muitas vezes à dor da existência humana. “Segundo ela, o facto de vivermos uma vida que não escolhemos, e cujo conteúdo e destino grandemente nos escapam, era obra da maior injustiça”[19], escreveu Gil Miranda nas páginas do livro “Dez Compositores Portugueses”. Na sua obra, Constança Capdeville, inserindo-se nas tendências da criação artística do seu tempo, numa estética ligada à então música contemporânea, abriu novos caminhos para as relações entre o teatro e a música, apostando nas novas formas e nos invulgares tipos de comunicação com o público que hoje em dia são paradigmáticos para as criações do teatro musical no mundo todo. “Depois da aproximação feita por Constança Capdeville entre o teatro e a música, as coisas nunca se passaram como antes. Exerceu seguramente uma forte influência sobre [os seus sucessores]. Assim, entre os seus colaboradores, o grupo Miso Ensemble continua a criar [espectáculos de teatro musical]. O encenador Luís Miguel Cintra, director de um dos melhores grupos de teatro independente, A Cornucópia, sempre desejou uma qualidade equivalente para o teatro e a música nas peças por que é responsável.”[20]