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Pedro Lima


Foto: Pedro Lima · © Maria Fontes

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Questionário / Entrevista

 

Parte I · raízes e educação

· Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? ·

Pedro Lima: A música começou muito cedo, todos os caminhos apontavam nessa direcção. Foi, e é, uma arte preponderante na casa onde nasci, desde o meu irmão mais velho, incrível pianista, e sempre houve espaço para contextos informais onde os meus pais sacavam da guitarra para reviver o cancioneiro revolucionário em comunhão dos seus amigos (ainda hoje!).
  Penso que tudo isso foi preponderante para normalizar a existência da música na minha vida e francamente não tenho memória de ela não existir. Ingressei cedo no conservatório para estudar clarinete e todas as outras disciplinas tradicionais, mas confesso que nunca fui aquele aluno «predestinado», antes pelo contrário, procurei intuitivamente diversificar o investimento em vários ramos dentro da própria música – desde bandas de rock progressivo, até experiências como DJ – só mais tarde, numa adolescência tardia, compreendi que a minha profissão poderia passar por aqui e que criar era indissociável do que queria ser.

· Que caminhos o levaram à composição? ·

PL: Sempre preferi pesquisar ao invés de reproduzir. No clarinete, no piano, na percussão, no computador houve sempre um impulso criativo para descobrir o que não estava escrito na partitura. Quando o Paulo Bastos aparece na minha vida, eu teria 12 ou 13 anos, traz consigo um conjunto de peças e de sons que nunca tinha ouvido na vida. Lamento que nem todas as crianças e adolescentes tenham tido o devido privilégio de ouvir György Kurtág, Johann Sebastian Bach, António Pinho Vargas, Steve Reich, ou Luís Tinoco numa fase em que o gosto se está a formar e que não se delimita por típicos preconceitos que mais tarde se perpetuam na fase adulta. Muita desta música caracteriza-se também por ser extremamente didática, não há razão para ser preterida face a tantos outros clássicos. Em todo o caso, rejubilo-me e agradeço pelo privilégio de ter tido tal sorte numa fase tão determinante para a nossa formação. O Paulo plantou sementes indestrutíveis que adensaram o gosto pela criação, pela investigação e foi de forma natural que consumei a decisão de seguir com ele para o ensino secundário no curso de Composição algo que só me muniu de maiores certezas sobre o quanto eu queria seguir este caminho.

· Que momentos da sua educação musical se revelam, actualmente, de maior importância para si? ·

PL: Ter ingressado no Conservatório, ter estudado com o Paulo Bastos, em Braga, ter estudado com o Luís Tinoco em Lisboa, e ter ido para Londres ainda bastante jovem numa altura em que a minha música estava numa fase de auto-descoberta muito intensa. Ter peças tocadas desde cedo também foi preponderante para experimentar coisas diferentes e perceber o quão essencial é a relação que temos de ter com os músicos em espaço de ensaio, isso faz toda a diferença. Tudo isso terá pesado e moldado o meu estilo de alguma forma, mas simultaneamente sinto que o compositor existe numa redoma «educacional» quase que em permanência. Exige-se uma actualização, investigação, estar a par do que acontece e do que se vai criando sob pena de que se não o fizermos podemos cair no erro de achar que escrevemos a melhor peça do mundo, ou o melhor acorde da história...

 

Parte II · influências e estética

· Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical? ·

PL: A osmose no contexto da criação musical é um processo em continuidade perpétua e acontece de tal forma que estamos constantemente a citar e a reciclar ideias de outros criadores e nós mesmos. Sabemos que isso acontece de forma voluntária, mas também involuntária e no meu caso nunca houve qualquer tipo de complexo em assumir que isso é parte integrante do meu processo. Há imensos compositores e práticas musicais que influenciaram a minha linguagem desde sempre. Há também muitos géneros tendencialmente alheios à esfera clássica-erudita que absorvo na minha música. Sinto-me um ecléctico em permanente renovação e constato que o contexto é que cria a pertinência.

· No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical? ·

PL: Praticamente tudo, não vejo limitação na associação e extrapolação que se pode fazer a partir de uma nota musical. A música existe numa dimensão abstracta e por essa mesma razão todos os significados lhe podem ser imputados. Se trabalharmos com a inclusão de texto ou vídeo, por exemplo, a coisa altera-se drasticamente, mas naquilo que à música instrumental diz respeito, penso que há um vasto leque de associações que se podem fazer. A música é uma expressão artística com léxico próprio e creio que na evolução humanista que temos feito enquanto civilização, temos recorrido a ela para exprimir matérias, sentimentos, reacções e dúvidas para as quais as palavras, por si só, ficariam aquém.

· Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho? ·

PL: Sem dúvida que existem, são essenciais. Os processos que absorvemos de outras formas de artes como o cinema, a literatura ou a pintura oferecem-nos diferentes ângulos para que possamos confrontar o nosso próprio processo de criação musical. Há até uma certa rotina padronizada na forma em como vou recorrendo a criações não-musicais para que se providencie alguma «inspiração» para a minha própria música. Existe ainda uma tendência para a forma como imagens e poesia são nutritivas e provocações activas para paisagens sonoras que se emancipam no meu imaginário. Nada de novo ainda assim, a forma como Mark Rothko pintava e gerava textura nas suas obras tem um claro paralelo na forma em como György Ligeti orquestrava e propagava micro-células nas suas obras orquestrais e corais. As analogias são incontáveis e a arte só tem a beneficiar com o alargar das suas próprias fronteiras.

· No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade? ·

PL: Sinto com várias. Praticamente todos períodos da história da música ocidental são reveladores de novidades transformadoras na forma de como se cria e para o que se cria. Nunca deixei de me sentir próximo das formas dançáveis do período barroco ou do minimalismo americano e europeu, por exemplo. Há diferentes graus de contágio, uns mais claros do que outros, mas o meu ouvido e a minha «personalidade musical» foram sempre moldados neste contexto e por isso há uma sensação de proximidade incontornável. Diria que nos últimos anos a geração de compositores ingleses no activo no final do século XX e princípio do século XXI – Anderson, Benjamin, Adès, Turnage – terão sido determinantes na forma como construí alguns dos meus recursos. Paralelamente as experiências levadas a cabo por György Ligeti, em particular no final da sua carreira numa altura em que o próprio revisitava o seu percurso à luz de uma sensibilidade efervescente, foram muito importantes na busca pela fluidez musical.

· Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais? ·

PL: Existem, mesmo não conseguindo destacar de forma instantânea, esta pergunta é óptima para dar início essa reflexão. O enquadramento ocidental é claramente o mais preponderante na nossa academia e consequentemente nas nossas salas de concerto. Claro que hoje estamos mais perto de todo o mundo até porque grande parte dele está verdadeiramente encapsulado para futura descoberta através do objeto que guardamos no nosso bolso. Nos últimos anos desenvolvi um crescente fascínio pela música de um famoso compositor japonês, Tōru Takemitsu. Claro que quem conhece a música de Takemitsu rapidamente apontará para o facto do seu percurso, não por raras ocasiões, se ter cruzado com o Ocidente e com importantes figuras e correntes vigentes neste espaço na segunda metade do século XX – é verdade. Contudo, muito para além disso tornam-se evidentes as múltiplas manifestações da sua identidade japonesa-oriental em praticamente toda a música que escreveu e isso faz-me sentir em casa, paradoxalmente. O mesmo se pode dizer sobre dizer sobre esta positiva avalanche de cultura sul-coreana que tem chegado às montras ocidentais. Desde o K-Pop, que pouco ou nada me diz, até aos êxitos cinematográficos como “Parasitas” (2019) de Bong Joon Ho ou “Past Lives” (2024) de Celine Song, estes últimos, entre outros, referências. Há uma manifestação surrealista, política, perturbadora e provocadora nestas histórias e gosto de pensar que a minha música se deixa contaminar por estas formas de arte.

· O que entende por «vanguarda» e o que, na sua opinião, actualmente pode ser considerado como vanguardista? ·

PL: Talvez pela associação a certas correntes estilísticas, «vanguarda» parece-me uma palavra não tão «vanguardista» aos olhos de hoje. Claro que quando penso na etimologia da própria palavra o significado revela-se bastante óbvio: algo que se posiciona «à frente» de qualquer outra coisa. Já quando penso num contexto mais artístico-musical, penso inevitavelmente na primeira metade do século XX, penso em França, na Alemanha e numa série de correntes que se ramificaram desse «centro artístico contemporâneo». Hoje em dia, a noção de «vanguarda» parece ser mais difícil de enquadrar num determinado contexto, pelo menos para mim. Pode ser que seja uma palavra que esteja dependente de um tempo futuro para poder existir, isto é, daqui a umas décadas talvez saibamos qual é a vanguarda de hoje, eu não sei.

 

Parte III · linguagem e prática musical

· Caracterize a sua linguagem musical sob a perspetiva das técnicas/ estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o início até agora. ·

PL: A minha linguagem musical talvez se enquadre num «neo-modalismo super expandido com gravíssimas crises de identidade». Mais a sério, existe uma noção de tonalidade na minha identidade musical e há uma relação quase que umbilical para com o fenómeno da harmonia, desde sempre. Existe um fascínio com a profundidade que se encontra numa orquestra, talvez pela relação de amor-ódio com o espectralismo e com a música de György Ligeti, Luciano Berio e Igor Stravinsky, nestes últimos a relação só se manifesta em amor, obviamente. Referir nomes é sempre perigoso, mas simultaneamente eficaz para criar uma ideia mais clara sobre aquilo que pensamos.
  Há também uma aproximação estética para com uma linhagem de «música britânica» que se baseia em Oliver Knussen – grande pedagogo, um tanto ou quanto desconhecido, diria – em George Benjamin, Julian Anderson, Thomas Adès e falar desta geração é falar também de Olivier Messiaen, inevitavelmente, e do fenómeno da «ressonância» enquanto gesto musical. Depois há a ópera, e dentro da ópera há muita coisa que fascina, mas também que me repudia (termo claramente exagerado). Pensar em Claudio Monteverdi e redescobri-lo no tempo de hoje é uma coisa maravilhosa – a simplicidade em ebulição poética. Pensar em Philip Venables e no que a ópera pode ser hoje – a criação musical para “4.48 Psychosis” de Sarah Kane é fascinante e um statement brutal da liberdade que temos ao dispor para criar e pensar ópera nos dias de hoje.
  Noutro prisma, a música do Luís Tinoco e a forma tão esclarecida como escreve para vozes é uma inspiração para sempre intemporal. Quanto ao Luís, em boa verdade, preciso de evocar toda sua música uma vez que parece herdar as cores do jazz em comunhão com o que de melhor existe na era do pós-modernismo, isso fascina-me. Depois há o minimalismo que, entre muitas outras coisas, cruzou a tradição clássica com «ouvidos» de outras paragens. Por aí, considero este género libertador e fonte de validação para muitas das novas ideias que se sucederam ao Reich, ao Adams, ao Glass, ao Riley e ao Arvo Pärt.
  Por fim vem o jazz, será porventura o último reduto, mas absolutamente indispensável para descrever a minha música, tanto pelo lado harmónico, mas também pela vertente da improvisação que continua a ser preponderante na forma como experimento ideias e faço gestão de impulsos em «tempo real». Embora seja um processo intelectualizado e de raciocínio ponderado, isto é, passível de se alterar e reescrever, o impulso e a intuição são cruciais no meu modus operandi.

· Há algum género/ estilo musical pelo qual demonstre preferência? ·

PL: Difícil de dizer, haverá um certo sentido de preferência para com criadores, mais do que para com estilos específicos. Mesmo essa eventual preferência vai sendo renovada e reorganizada de tempos a tempos em função do que se procura ouvir em determinado momento. Por exemplo, se estiver a compor uma peça de ensemble, é muito provável que nesse período de tempo o meu género predileto seja «música contemporânea para ensemble». Por considerar que ouvir peças de outros criadores é a melhor forma de sofisticar o nosso gosto e o nosso ouvido, vou investindo na investigação que em última análise me levará a gostar ainda mais do que estou a ouvir.
  A propósito desta pergunta, recordo uma pequena história de quando morava em Londres. Na altura estava a acompanhar a produção de uma ópera de Donizetti na Royal Opera House; “Lucia di Lammermoor”, um clássico. Os primeiros ensaios a que assisti já estavam a ser realizados no palco principal daquela magnífica sala, mas apenas com cantores, pianista correpetidor e maestro (prática comum na montagem de uma produção, escalar a entrada de recursos para simplificar o processo). No princípio toda aquela música que ainda não conhecia soava um pouco previsível e porventura aborrecida face às minhas irreverentes expectativas relativamente à ópera contemporânea que ouvia diariamente com particular fascínio. Até que pouco a pouco e para minha surpresa, comecei a compreender um subtexto revelador de qualidades inquestionáveis desta ópera: o ritmo harmónico, a orquestração, as maravilhosas e exuberantes árias de lamento que se cruzavam com um drama particularmente triste, agressivo e comovente. Passados dois ou três ensaios juntava-se a orquestra e eu contemplava a exponenciação do material que já conhecia bem por aquela altura, da versão para piano para uma grande orquestra, com coro, sinos que se tocavam offstage e criavam uma paisagem sonora super dramática e perturbadora (quem conhece esta ópera sabe do que falo). De repente estava a adorar “Lucia di Lammermoor” de Gaetano Donizetti e sentia que esta ópera revelava frescura e uma profundidade discursiva francamente vanguardista para a época em questão. Essa experiência levou-me a conhecer mais música de Donizetti e a perceber que no enquadramento do que ele produziu, é um compositor de que gosto particularmente. Serve este exemplo para fortalecer o argumento de contexto e investimento na investigação, por vezes somos ágeis a recusar ideias que nunca experimentámos e nesse sentido, a «experiência Donizetti» foi uma agradável surpresa, como muitas outras, basta que para isso permaneçamos abertos a novas possibilidades.

· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro forma ou vice-versa? Como decorre este processo? ·

PL: Maior parte das vezes procuro a «estrutura», talvez porque muitos dos meus trabalhos partem de textos e de outro tipo de ideias extramusicais que naturalmente já contêm uma estrutura em si. Contudo, reconheço que a manifestação de ideias-embrião é preponderante na forma como a própria estrutura se desenha, principalmente em peças puramente instrumentais sem texto falado, gravado ou cantado. Isto é, já vivi situações em que defini 10 minutos de uma peça em função de quatro segundos de música que compus e sou muito activo nessa procura. Gosto de pensar no ADN de uma determinada peça, na forma como os elementos se interligam e nas vezes em que deliberadamente optamos por abrir portas – excepções – para que outros ADNs também se evoquem quase que como «corpos estranhos» dentro de uma determinada criação musical. Um professor que tive quando estudava em Inglaterra falava muito sobre «regras» e sobre a forma como estas nos impulsionam criativamente. Reconheço isso ainda no que faço hoje. É quase como criar um pequeno jogo que eu próprio vou jogar e vou permitir, enquanto árbitro (meta posição), que de quando em vez as regras possam ser quebradas para obter um resultado diferente: nesse momento já estou mais perto de saber qual é o resultado que quero.

· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração? ·

PL: Sem evocar percentagens clichês e processos que não me dizem respeito, determino que existe um forte pendor para o raciocínio criativo e, simultaneamente, uma absorção e aproveitamento em permanência de qualquer impulso criativo que possa surgir. Depende claramente dos dias e de factores tão determinantes como «quanto tempo tenho para terminar esta peça?». Em todo o caso, o processo criativo é mesclado entre diferentes abordagens que se revelam úteis em diferentes momentos do próprio processo. A inspiração enquanto conceito é algo que parece residir fora de nós e chega-nos por fricção cósmica através de referências, pensamentos, contextos e situações da nossa vida. Desse modo, diria que a melhor forma de alimentar a inspiração é muni-la com o máximo de referências, aumentando o seu próprio léxico, para que as vias se mantenham abertas e disponíveis para comunicar connosco sempre que necessário e possível.

· Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música? ·

PL: Sim, diria que influenciam. São a representação de um elemento facilitador dentro do processo criativo – seja por provocação inspiracional ou pela possibilidade de aceder a elementos discursivos que de outra forma não existiriam. Por exemplo, denoto que a minha música ganha novo léxico quando feita com electrónica. Existem sons na minha cabeça que só se manifestam com essa possibilidade. Não tenho complexos nem preconceitos e continuo a escrever muita música puramente instrumental, mas até nesse cenário, o facto de ouvir e conhecer os meandros da música eletrónica, confere ao meu ouvido uma capacidade alargada sobre aquilo que se pode extrair de um instrumento dito «convencional». As novas tecnologias são parte integrante do nosso trajeto civilizacional e isso contempla a forma de como nos definimos enquanto criativos e humanos neste contexto.

· Defina a relação entre a música e a ciência e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação. ·

PL: A música e a ciência são indissociáveis, embora possa não parecer num primeiro olhar, sabemos que há uma íntima relação e nem sequer é descabido dizer que a música se pode analisar à luz da ciência. Pitágoras, quando estabeleceu a relação numérica dos intervalos musicais, juntou a música e a ciência pela primeira vez, mas desde então os exemplos tornaram-se incontáveis e há correntes musicais que são uma clara manifestação matemática, o serialismo ou o espectralismo são elucidativos disso mesmo. Seria por isso falacioso dizer que a minha criação não se entrelaça com a ciência, chega a ser redundante considerar essa tese uma vez que música é ciência num sentido literal. Para além disso, quando estou a compor há uma lógica de experimentação e consequentemente uma análise dos resultados obtidos, haverá comportamento mais científico do que este? Compor é fazer uma experiência empírica também! Mais ainda, existe uma lógica associada à acústica e à propagação física do som que ressoa noutras matérias, noutros corpos e somente dessa forma a minha música se pode tornar «viva». Por fim, há um claro paralelismo filosófico entre a ciência que descreve o curso da humanidade e a música que, tal como a sua irmã, não só descreve como também aponta um possível rumo para um possível futuro. Há mais semelhanças do que diferenças, parece-me.

· Qual a importância do espaço e do timbre na sua música? ·

PL: A noção de espaço tem uma importância naturalmente grande na minha música, quer pelo «espaço» onde a minha música acontece, quer pelo «espaço» dentro da própria música. Por exemplo, quando escrevo para orquestra gosto de pensar em espaço e em profundidade. Esses conceitos traduzem-se na orquestração e muitas vezes até nos podemos esquecer do fenómeno mais prático, mas se imaginarmos um grande tutti orquestral, em fortíssimo, seguido de um doce clarinete com uma nota longa, registo médio, em pianíssimo, conseguimos facilmente percepciocinar uma noção de espaço sui generis. Nesse sentido, gosto de planear e de criar sobre cenários que convoquem esta dimensão para o meu trabalho.
  Quanto ao conceito de espaço físico onde a minha música acontece, tento ser consistente para criar música que sobreviva a qualquer local, qualquer sala de concerto. Sabemos que nem sempre é fácil e o máximo exemplo disso são muitas das obras do francês Maurice Ravel… A sua escrita é de tal forma detalhada e criada ao milímetro da execução perfeita, que uma sala com uma acústica demasiado seca ou demasiado reverberante poderá ser fatal para a escuta ideal das suas belíssimas passagens. Por isso torna-se inevitável pensar em todos estes fatores. Há uns meses escrevi uma peça para os Drumming – Grupo de Percussão que foi feita no Mosteiro de Tibães (Braga) e que servia um espetáculo com dança com projecções de vídeo chamado “ECHO – Prelúdio à História de Narciso”, uma encomenda da Companhia Arte Total. A peça, na verdade, era um conjunto de várias peças e a música ia acontecendo em diferentes espaços do Mosteiro onde se encontravam extensos sets de percussão - quem conhece os Drumming sabe que eles têm instrumentos que mais ninguém tem neste país, é uma espécie de Disneyland Paris para compositores… À medida que os ensaios foram correndo, fui percebendo que a música funcionava de forma muito diferente nos diferentes locais em que era tocada. A Sala do Capítulo, por exemplo, uma sala amadeirada do século XVIII, com pé direito de 5-6 metros, trazia um som aveludado, mas simultaneamente exuberante às marimbas e aos pratos suspensos. Já o corredor central onde se encontram as celas do Mosteiro, convocava uma certa espacialização que se entrecortava pela absorção do chão, todo ele em madeira de pinho. Estes fenómenos, para um ouvido mais atento, são determinantes e nesse sentido fui executando e propondo algumas alterações em função da realidade acústica de cada espaço. A música existe (literalmente) no espaço e enquanto compositor é sempre útil prever e antecipar estes contextos.

· O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música? ·

PL: Sim e não, depende do contexto. Há situações em que o experimentalismo se revela como «facilitador» no seguimento de um processo criativo. Experimentar e reagir ao resultado da experimentação é relativamente comum no meu processo criativo. Mas na dimensão musical propriamente dita, no som e até na escrita, não considero que esse lado “experimental” faça parte da minha identidade neste momento.

 

Parte IV · a música portuguesa

· Tente avaliar a situação atual da música portuguesa. ·

PL: Esta pergunta depende do que entendemos como «música portuguesa», é a música escrita por compositores portugueses? Há uma identidade musical que se superiorize a esta lógica meramente geográfica? Numa altura participei numa entrevista com o compositor inglês Harrison Birtwistle e ele contava uma história sobre o seu próprio percurso enquanto jovem compositor nos anos 50 e 60 do século passado. Com humor e sabedoria, partilhava a ideia de que enquanto estudante de composição, queria que se a sua música se afastasse daquilo que ele considerava ser a «música inglesa do século XX». Todavia, quando começou a ter as suas obras tocadas num contexto europeu – fora do Reino Unido – com alguma regularidade, aquilo que ia lendo em jornais e críticas musicais, tendia a referir-se à sua música como «claramente inglesa», ou seja, frisando a única coisa que ele se tinha esforçado por não ser. Esta história coloca em perspectiva a identidade musical de uma região ou de uma filosofia. No caso de Inglaterra eu consigo perceber claramente o que pretendem dizer com «música inglesa». Há um contexto histórico e académico, em particular do século XX em diante, que cunha a música produzida por compositores daquela parte do globo com ideias musicais passíveis de serem relacionadas – a orquestração, a harmonia, até certo tipo de gestos musicais eu consigo catalogar como «possivelmente inglês».
  Até aí tudo certo, a coisa complexifica-se quando pensamos que um jovem como eu, nascido na modesta cidade de Braga nos anos 90, que viaja para Londres com pouco mais de 20 anos na procura de contactar com a identidade britânica que referia. Terei conseguido? Terá a «música inglesa» contagiado o meu contexto de «compositor português»? Não é fácil responder com certeza e é francamente difícil fazer uma análise biográfica nesse sentido, mas sem dúvida que a linhagem britânica de compositores dos últimos 50 anos foi preponderante nas aspirações que fui criando enquanto jovem compositor. Hoje já me reconheço um pouco à frente dessa questão.
  O que pretendo frisar e colocar em perspetiva é que hoje vivemos uma era global e se no século XIX era naturalmente difícil contactarmos com a música que se produzia na Nigéria ou em Los Angeles, hoje em dia estamos à distância de uns meros cliques para que isso se torne possível. Enquanto compositores e criadores da era digital parece-me que todas as fronteiras e questões que se prendam a uma certa identidade ficam um pouco para segundo plano na amplitude diversa do mundo contemporâneo. 
Ainda assim, constatando o óbvio, é claro que também temos a nossa «geologia portuguesa», mas sempre pensei que por ser tão mais diminuta face a outras realidades europeias, não terá sido preponderante na criação de uma doutrina ou de uma certa prática que possamos chamar de «portuguesa». Reconhecemos o impacto que o impressionismo francês terá tido na música de Luís de Freitas Branco, Joly Braga Santos ou até de António Fragoso e também sabemos o quanto Stockhausen e o IRCAM influenciaram a produção musical de Emmanuel Nunes. Sinto que estes pequenos grandes detalhes podem ser mais definidores de uma certa identidade musical do que a geografia per se.
  Quanto ao estado atual da música produzida por compositores e compositoras portuguesas, diria que nunca estivemos tão bem e que hoje em dia há uma lista cada vez maior de criadores que escrevem música de altíssima qualidade que poderia ser tocada em qualquer sala do mundo. Dever-se-á isso também a uma preciosa geração que lutou e tem lutado por mais e melhores oportunidades e também por um contexto académico e social que tem permitido à música contemporânea ganhar um certo destaque bastante diferente face ao que não tinha no passado século XX. Dito isto, ainda há muito por fazer.

· Como define o papel de compositor atualmente? ·

PL: Um criador sintonizado com o mundo, mas com a destreza para dele se ausentar sempre que necessário.
  Um homem, uma mulher, um outro alguém que dentro da sua capacidade expressiva tenha o dom da alquimia para imbuir a própria música de um espírito activista e contemplativo face à beleza, aos horrores, à política, à poética, a tudo que existe entre nós e tudo o que não vemos entre nós. Um mágico com o poder de escrever, de forma detalhada, o tempo cronológico que as pessoas dedicam a ouvir o que escrevemos. Um ser paradoxal e em constante frustração porque a última ideia já não valerá tanto como a que virá a seguir. Mas virá alguma? …
  Já não sei se estou a falar de mim ou de um compositor que não conheço…

· Conforme a sua experiência, quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo? ·

PL: Há uma diferença no mercado e na frequência em que música clássica-contemporânea se protagoniza nas salas, nas rádios, nas televisões, na atenção público-política. Sabemos que hoje que o meio musical português é mais qualificado do que alguma vez foi. Há instrumentistas, maestros, compositores, programadores e trabalhadores artísticos de toda a ordem com capacidade para fazer do melhor que se pode encontrar no mundo inteiro. As oportunidades e a visibilidade não se coadunam com este crescendo de «matéria-prima» mas reconheço que estamos num ciclo de transformação e acredito, com um optimismo moderado, que o nosso meio musical se poderá vir a equiparar a outros de referência daqui a umas décadas. Sinto que a principal diferença reside na validação social que nos é dada por quem não percebe nada do assunto. Isto é, a política e a educação são estruturantes na definição de uma visão comum sobre determinado assunto. Apesar de tudo somos um país com graves problemas de literacia (de vários tipos) e a educação ainda precisa de progredir dentro de si para que os resultados se propaguem em diferentes meios, nomeadamente no meio cultural-musical. Há uma grande percentagem de pessoas em Portugal que não fará ideia do que é ou do que faz «um compositor», isso é um problema e isso tem solução, mas demora tempo e é preciso investimento a longo prazo para que os resultados possam transformar o contexto.

 

Parte V · presente e futuro

· Quais são os seus projetos decorrentes e futuros? ·

PL: Neste momento estou a escrever duas óperas para 2025 e 2026 (adoro escrever óperas apesar de chegar ao fim como se tivesse corrido uma maratona sem parar durante cinco meses) e vou começar a escrever uma peça para ensemble que vai estrear em junho de 2025, em Portugal. Estou a colaborar com algumas instituições em projetos com carácter mais comunitário, a fazer música para um espectáculo dança que se chama “Clementina” e algumas obras para espaços-instalações site-specific. Simultaneamente, na ressaca do álbum que lancei no começo deste ano, “Talkin(g) (A)bout my Generation” (Artway NEXT), estou já a preparar o próximo que será bem diferente e muito mais desafiador do status-quo da música contemporânea na fusão com a dance music no sentido mais lato possível.

· Poderia destacar um dos seus projectos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas? ·

PL: Destacaria o projeto da “DANCE SUITE”, uma peça para orquestra sinfónica que escrevi para o Concerto de Ano Novo de Aveiro 2024 e que simultaneamente coincidiu com a inauguração de Aveiro Capital Nacional da Cultura 2024.
  Convidaram o maestro Martim Sousa Tavares, maestro, para dirigir e programar este concerto a seu gosto. Inteligentemente, refletiu sobre o facto de termos entrado num sistema de reprodução (imitação?) de uma tradição que, por definição, nem é nossa: as valsas e as polcas que se tocam no Concerto de Ano Novo em Viena, no famosíssimo concerto que é transmitido um pouco por todo o mundo. Este repertório nesse momento específico, «contaminou» o nosso imaginário e muitas orquestras e maestros de hoje têm perpetuado esta tradição porque efectivamente não há quem não se sinta bem num vestido aprimorado a ouvir uma valsa de Johann Strauss. Tudo certo, nada de errado. Simultaneamente, o Martim apontou para o facto de que hoje em dia, quem procura dançar, não vai atrás de uma boa valsa ou de uma fantástica polca, antes pelo contrário, estes géneros cristalizaram-se nas salas de concerto e são raras as ocasiões em que alguém os dança nos dias que correm.
  No tempo presente, o espólio da música de dança é bastante diferente e bem mais diversificado do que alguma vez terá sido e foi na senda desta reflexão que me chegou a proposta para escrever uma peça para orquestra, com cerca de 30 minutos de duração, fazendo uso de «estilos» musicais próprios da dance music do final do século XX e princípio do século XXI. O desafio já era ambicioso para alguém como eu e o facto de a proposta estar condicionada pela não utilização de «electrónica» terá conferido uma certa bravura ao meu prontíssimo: «Sim, aceito!». A verdade é que apesar da formação clássica-erudita, sempre tive espaço para ouvir muita música electrónica e os meus ouvidos também se moldaram por muitos DJs e produtores que nas últimas décadas expandiram o conceito da disco music para outros patamares de fusão que valorizo e respeito muito. Contudo, ninguém é de ferro e tendo começado a trabalhar na peça foram imensas as questões que se foram passando pela minha cabeça. Uma dessas questões prendeu-se com a narrativa e com a rentabilidade do material que estava a compor. Havia certas ideias que precisavam de um determinado tempo para se estabelecerem, como aliás é comum na música disco, e isso gerava um conflito na minha autoridade criativa.
  Sempre que escrevo música faço com que a minha percepção se desdobre numa óptica externa, quase como se fosse o instrumentista que toca a música que estou a escrever. O problema neste caso era bastante simples: imensa repetição! Eram sistemas e sistemas de música sempre igual que me levavam a pensar de que forma alguém conseguiria tocar tudo isto sem se perder e sem se aborrecer pelo meio. Na busca de uma solução, pus mãos à obra e estudei de forma afincada a corrente minimalista tentando desvendar de que forma Steve Reich e John Adams conferiam através das suas técnicas, a dita «variedade» dentro de um material que aparentemente se repete de forma contínua. Paulatinamente fui encontrando algumas soluções e através da orquestração e variações nos motivos musicais consegui gerar um maior interesse a diversas secções sendo que o output me parece particularmente eficaz num duplo sentido: em primeiro lugar conferindo variedade ao material musical e simultaneamente gerando mais interesse capaz de manter o músico conectado com a narrativa musical sem se aborrecer ou perder o foco.
  Posteriormente, já numa fase mais avançada, surgiu a questão: «Mas esta música é minha?»; «Terei prazer em reconhecer a figura de Pedro Lima nestas sonoridades?». E foi aí que me lembrei de Igor Stravinsky e pensei na ousadia que ele manifestou vezes e vezes sem conta para se reinventar dentro de contextos inusitados. “A Sagração da Primavera” ou o ballet da “Pulcinella”, antíteses de um só génio que ainda hoje estamos a tentar compreender. E terá sido por aí que percebi que o estilo, só por si, não é determinante da forma como podemos ser eficazes ou bem-sucedidos numa incursão musical. Foi dessa forma que procurei aprimorar a minha orquestração trazendo técnicas expandidas e instrumentos perfeitamente inusitados, como tachos de cozinha ou caixas de água, que foram capazes de convocar uma identidade sonora nada «comum» ao universo da dance music. Desse modo criou-se um novo paradigma e de repente eu não estava só a escrever dance music conforme a conheço, estava mais do que tudo a reinterpretá-la ao meu jeito e isso para mim já era um exercício suficientemente interessante.

· Como vê o futuro da música de arte? ·

PL: Com ânimo, com curiosidade e com bastante entusiasmo. Independentemente do contexto da nossa existência, augura-se alguma apreensão face a vários temas e por várias razões; desde o colapso climático até a variados conflitos que têm posto em alerta a nossa percepção de «paz perpétua» e até mesmo a complicações indissociáveis da era digital. Penso que haverá sempre matéria para impulsionar a criação e a música revela-se particularmente pertinente em contextos adversos.
  Como tal, imaginando que o futuro poderá trazer consigo desafios, prevejo que nesse contexto a música e arte se revelem como «armas» 
ainda mais poderosas na sua inegável capacidade para sensibilizar, para educar, para reflectir e porventura para curar as feridas que possam, ou não, surgir pelo caminho. Dizia Stephen Hawking, «While there is life there is hope» («Enquanto hover vida, hverá esperança»), e eu sinto que enquanto houver vida haverá sempre música e haverá sempre arte uma vez que são parte basilar da 
nossa essência e não teremos como renunciar a algo tão identitário. Na busca pela beleza, sempre.

Pedro Lima, Julho-Agosto de 2024
© MIC.PT
O autor não aplica o Acordo Ortográfico de 1990.


Pedro Lima · Playlist

 
Pedro Lima · Once Again – Eternal Goodbyes (2015)
Jovem Orquestra Portuguesa, Pedro Carneiro (maestro)
Konzerthaus Berlin, Alemanha, 12 de agosto de 2015
  Pedro Lima · Sopro do Côncavo (2015)
Orquestra de Sopros da Escola Superior de Música de Lisboa, Alberto Roque (maestro)
Festival Jovens Músicos, Grande Auditório, Fundação Calouste Gulbenkian, outubro de 2017
 
Pedro Lima · (...) e tu , de mim voaste (2016)
Orquestra Gulbenkian, Osvaldo Ferreira (maestro)
Festival Jovens Músicos, Grande Auditório, Fundação Calouste Gulbenkian, 25 de setembro de 2016
  Pedro Lima · Talkin(g) (A)bout My Generation (2019)
Remix Ensemble Casa da Música, Peter Rundel (maestro)
Sala Suggia, Casa da Música, Porto, novembro de 2019
 
Pedro Lima · Como Se Fosse Um Filho (2023)
Sond’Ar-te Trio: Elsa Silva (piano), Vìtor Vieira (violino), Filipe Quaresma (violoncelo)
Festival Música Viva 2023, O'culto da Ajuda, Lisboa, 13 de maio de 2023
  Pedro Lima · Dance Suite (2023) [excerto _ DANCE V. (funky house grooves wtf?_)]
Orquestra Filarmonia das Beiras, Martim Sousa Tavares (maestro)
Teatro Aveirense, janeiro de 2024
· Pedro Lima · “eleven” (2019) · MAAT Saxophone Quartet · gravação: Casa da Música, Porto, outubro de 2019 ·
 
· Pedro Lima · “Que estás a fazer aqui?” do projeto “Ópera na Prisão – O TEMPO (Somos Nós)” (2022) · gravação: Grande Auditório, Fundação Calouste Gulbenkian, junho de 2022 ·
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