Texto da autoria de Sofia Sousa Vieira
Com a naturalidade de quem parte, tendo cumprido com a vida até ao fim, poder-se-á dizer que, na mão direita desse Deus que, como Antero de Quental, escutou, e não reconheceu, descansa agora o coração de Francine Benoît a franco-portuguesa que encontrou na música: o palácio encantado da ilusão. Como as flores mortais, com que se enfeita/A ignorância infantil nos versos do poeta emoldurou toda uma vida marcada por aquele ideal e paixão de quem nasceu para dar aos outros o que de mais humano foi nela a forma transitória e imperfeita na mulher; e na artista a criança que a mãe leva ao colo agasalhada. Coração liberto, atravessou selvas e mares sem se deixar vencer pelo desânimo com que o Estado Novo a premiou. Da lôbrega jornada ficou a obra com que, descendo a escada estreita mereceu subir até onde memória se consente.
Pedagoga, pianista, crítico musical e conferencista, Francine Benoît confirmou seriedade do pensamento e obra, bem como a sua conceção de arte e fenómeno musical. Com um estudo genealógico, escasso no que respeita aos primeiros anos, mas progressivamente enriquecidos, de acordo com a vasta documentação encontrada no seu espólio e disponível na imprensa, a sua vocação para a causa da música pode considerar-se inexcedível: pela irrefutabilidade dos conhecimentos de que dispunha e pela pertinência da consciência crítica que a si, e aos outros, exigia. A multidisciplinaridade revelada espelha, por um lado a natureza solitária, introvertida, e carácter reservado, de quem concebia a música como um exercício de liberdade, concorrente com estilos e tendências musicais de todas as épocas, de todos os compositores e intérpretes, com uma preferência explícita orientada (e lúcida), recetiva a tudo o que se relacionasse com Portugal e a velha (e nova) Europa.
No que se refere à intervenção pedagógica manifestou o maior interesse pelo ensino da música, em geral, e pela música portuguesa, em particular. Ensinar constituiu, no fundo o respeito que tinha pela lição dos mestres, num contexto histórico-cultural que, tanto o Estado Novo como a Primavera Marcelista, hostilizaram, não obstante ainda ter tido tempo para realizar o sonho da democratização do ensino musical nas escolas.
Ao contrário da lição socrática que tinha como prioridade a recusa de ensinar, Francine Benoît transformou a sua experiência docente num processo dinâmico e persuasivo sem paralelo entre nós. Nesse sentido, não admira que se tenha empenhado, ao ensino da música a sua vida e a sua alma, evitando transformar a música num: (…) presente para adornar umas quantas cerimónias e um objeto para desempenhar um papel secundário em não poucas diversões. Mas na sua essência é propriedade ou exteriorização da sociedade, o melhor de uma sociedade como nós a desejamos, não todos da mesma maneira[1].
Quanto à orientação musicológica, a Francine Benoît se deve a capacidade de zelar legados de músicos, compositores e investigadores, portugueses e estrangeiros, expoente de uma itinerância pedagógica persistente e liberta. A sua contribuição para o estudo do panorama musical português, para o ensino da música, para a investigação artística, foi o culminar de um aperfeiçoamento crítico do valor, intervenção e alcance em áreas pedagógicas diversas, próximas da partilha do conhecimento que a sociedade, coletividades e elites, em atualização constante reclamavam. Se dúvidas houvesse, tal personificam pensamento e ideias próprias, de origem duradoura e argumentação incontestáveis: Pretendo colaborar na expansão do gosto musical, pensando lealmente em transmitir a coragem necessária e a confiança a quem se lança na carreira musical. Se por acaso conseguir esclarecer ou ensinar com palavras simples, que o leitor comum possa entender, isso será para mim motivo de felicidade. Entendo que devo defender uma opinião em que é necessário um entendimento recíproco dos termos a utilizar e dos acontecimentos históricos, tento fortalecer-me na medida do possível; se sou capaz de levar a bom termo um ensaio sobre conceitos em que é necessária a tecnologia e a tomada de posição acerca de princípios estéticos, desenvolve-se em mim uma sensação de plenitude; mas nunca, nunca, vou tão longe como quereria[2].
Coerente com o seu ideário, optou pela ação sociopolítico alinhadas com a visão do homem novo, ou como se dizia na antiguidade: com a mesma determinação que leva o espírito humano a considerar que a verdade é para ser vivida, antes de ser ensinada. Fazendo jus ao filantropismo e dádiva que lhe eram peculiares reconhecerá: (…) tenho por espinha dorsal a mais esclarecida vontade do Povo, num Povo que está dividido em opressores e oprimidos[3]. Como insistentemente demonstrou, em artigos de opinião e conferências, a cultura musical é como a voz dos mestres: é património de todos, a todos deve chegar.
Enquanto mulher, nunca voltou costas à necessidade de mudança, da emancipação da mulher à responsabilidade educativa, atitudes que lhe permitiram fazer da compreensão uma interpretação continuada, fomentando um círculo de cultura musical de recorte feminista e que a seu tempo denotou o aparecimento de uma nova linha de pensamento musical e crítico, diria mesmo de foro musicológico. Para a vida não se cansou de exaltar princípios que sempre defendeu: (…) Não trabalho em busca de fortuna, nem de glória, nem de prestígio (embora não me desagradasse que alguns desses três encantadores irmãos viessem ao meu encontro)[4], apesar de reconhecer que o caminho a percorrer seria longo e longe ficava ainda o propósito de: conhecer todas as manifestações de arte que existem; mas aquelas que conhecemos despertam em nós um verdadeiro sentido de gratidão, de que compartilham os seus intérpretes (…)[5]. Assim sendo, é grande a insatisfação com que se revê em conceitos, muito em voga, como os de forma arte total ou do pensamento em devir, antes se preocupando com a receção da obra, insurgindo-se contra o desconhecimento do facto da humanidade, por vezes, não se dar conta do culto do paradoxo, responsável pela negação do absoluto que sacrificam a evolução e transformação do ser e do homem. Para autora, cada indivíduo funciona como elo social, uma vez que: (…) cada geração de humanos forma, na sua maioria, um gigantesco nivelamento, em que parte da minoria ficou desnivelada, faz bossas, formando-se em aleijões (…)[6], impeditivos, segundo George Steiner, da realização do sonho com que: o contexto temporal e histórico do sentido, das formas de expressão e de realização, se tornem integrantes da capacidade de receção e resposta[7].
Conforme pensa, vivia-se uma época em que o indivíduo continua a ser portador de emoções, sensações e poder de transmissão de modo a que sejam procuradas no contacto físico, dentro da sociedade: Pois há quem ignore, ou, levado pela sua sofreguidão de Ideal, esqueça que a bela visão em que a nossa alma se abisma foi modelada por mãos em que circula sangue idêntico ao nosso, - por ventura mais vivo e até mais quente apensa[8].
Francine Benoît utilizou a palavra como método e meio de ação geradores de socialização, realizando reconstituições das práticas sociais através das gerações projetando o passado no presente e futuro por meio da linguagem[9]. De acordo com Anthony Giddens a palavra falada é um meio, um vestígio, cuja evanescência no tempo e no espaço é compatível com a preservação do sentido graças à distanciação espácio-temporal e à consequente elevação do domínio humano[10].
Foram muitos e vários os locais onde pronunciou as suas conferências: homenagens, programas radiofónicos, conferências-concerto, sessões fonográficas, cursos, palestras na Universidade Popular Portuguesa, no Asilo-Escola António Feliciano de Castilho, na Academia de Amadores de Música de Lisboa, na Voz do Operário, no Instituto de Música de Coimbra, na Faculdade de Letras de Coimbra, no Salão do Conservatório Nacional de Música de Lisboa, no Museu João de Deus, na Emissora Nacional.
O carácter das suas dissertações vai desde o filosófico e religioso ao espírito crítico; da oração intimista ao conteúdo dialético. O processo comunicativo utilizado baseia-se, por sua vez, numa dialética que oscila entre intelectualidade e música. Apesar do carácter simplista, a exposição de ideias, e linha de pensamento, são inovadoras, como se, para Francine Benoît, o ensino da arte dos sons fosse uma “missão” em que o objetivo primordial seria humanizar através da música. Para isso, serve-se dos aspetos técnicos da obra que vai ser analisada auditivamente, tendo em vista interpretar e transmitir ao ouvinte a beleza emotiva e a descodificação lógica das obras comunicadas pelos investigadores, o que reverte, com efeito, a favor das preocupações que a cidadã e a mulher coloca na utilização das palavras para expressar os modelos ideológicos e captar a atenção do ouvinte através de momentos musicais.
O processo de composição, bem como a sua pouco destacada afirmação neste domínio, devem ser entendidos no contexto músico estilístico e cultural do século XX. Os processos artísticos em Francine Benoît estão associados a momentos de pura incompatibilidade ideológica e estética, culminando em gramáticas musicais ambíguas e pouco claras. Verificam-se influências românticas inspiradas na obra de Chopin e Strauss (obras pianísticas), bem como preferência por acordes arpejados e linhas de contraponto motívico com referências a compositores do passado - Partitia (1938). A tendência para a mudança está intimamente ligada à herança recebida pelos seus mestres, sendo por isso materializada como um desafio. A postura adotada, no repertório para voz, centra o discurso musical em conceções poéticas, associado a uma estrutura de lied e à geração dos românticos salvaguardando, capacidades imaginativas relevantes, com frequente recurso à harpa, destacando-se certa familiaridade com Cláudio Carneyro e Lopes-Graça entre outros: Nocturne (1917), >Deus na Planície (1917), Sant’Ana (1928), Três Canções Tristes (1930).
Já no que respeita às obras infantis, escritas de forma prolífica nos primeiros anos da sua atividade pedagógica, ganha vantagem uma tendência formal para os processos tonais correlacionados com sonoridades e referências académicas aproximando a melodia às canções de Mozart, Beethoven – Para a Juventude Cantar e pular (1926).
Na realidade, grande parte do repertório musical da primeira metade do século XX assentou nas obras de Antero de Quental (traduzido por Francine)[11] e a redescoberta de Afonso Lopes Vieira. Francine Benoît cultivou tendências do saudosismo português, próximas da geração de poetas do neorrealismo - Cinco Canções portuguesas (1944). As suas obras revelam claramente o uso de dissonâncias não preparadas proporcionando sonoridades estranhas pela sua combinação, provocando verdadeiras antíteses musicais. As cores expressionistas ficam a descoberto, nomeadamente quando se mostram inspiradas e dominadas por momentos particulares da sua vida, onde o culto interior desesperado constitui na sua obra musical um processo de catarse, baseado na mediação do culto interior e exterior.
Do repertório para piano conhecem-se algumas formas musicais dentro da estrutura formal estilizada: Ámen (1930, balada), Variações sobre um tema original (1930), Sonatina (1944) e uma série de peças Nove peças infantis (1939), inspiradas em Schumann. O virtuosismo e a conciliação técnica surgem tardiamente, após os anos quarenta – Concerto para piano e orquestra (1940-42) e Concertino para mão esquerda (1981).
Já da obra Fantasía-Suite (1966), premiada em concurso pela Fundação Calouste Gulbenkian, assistimos a procedimentos de teor neoclássico com influência da linguagem bartokiana, próxima da harmonia axial. A obra foi pensada partir da relação tonal/modal e os procedimentos neoclássicos utilizados na estrutura melódico/harmónica.
Numa das suas obras de eleição Cantata Infantil (1967) verificam-se influências de caráter diverso, desde o modalismo ao cromatismo, por um lado o uso de elementos modais, por outro frequentes cromatismos com fragmentos da escala hexáfona, intervalos diminutos e aumentados. Estamos perante uma obra que combina elementos de transição de um romantismo tardio com música moderna do século XX.
Pautada por conceitos de natureza lógica e filosófica, a sua tese confirma fórmulas de raciocínio íntegro e prático, o que a levava admitir que: os génios são os operários das artes – no sentido em que a arte é um fruto do trabalho –, que conseguem captar a harmonia do universo, para quem se torna evidente a necessidade de criação de condições específicas: não há vitória sem luta.
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1 BENOÎT, Francine - Alguns dados biográficos, 1970, p. 2; Arquivo particular da escritora Madalena Gomes
2 Ibidem, pp.1-2
3 BENOÎT, Francine - A propósito do 25 de Abril, 1984, pp. 2 – 3; Arquivo particular da escritora Madalena Gomes
4 BENOÎT, Francine - Algumas Palavras, Lisboa: Sociedade Gráfica Editorial, 1930, p. 2
5 BENOÎT, Francine - O génio artístico e as suas manifestações. Lisboa: Livraria Aillaud & Bertrand, p. 8
6 Ibidem, p.11
7 STEINER, George, Presenças Reais. Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp. 150 – 153
8 Ibidem, pp.15-16
9 LÉVI-STRAUSS, Claude, Structural Anthropology. Vol. II. Chicago: University of Chicago Press, 1983 (trad. Mónica Layton)
10 GIDDENS, Anthony, Modernidade e identidade Pessoal. Oeiras: Celta Editora, 1997, p. 21
11 Carta autógrafa de Eduardo Libório a Francine, 12 outubro de 1924, P-Ln- N33/1012