Entrevista a Luís Bragança Gil / Interview with Luís Bragança Gil
2005/May/27
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A experiência de Direcção
Coral:
Influência nas opções técnico-artísticas
e a aproximação ao Teatro Musical
A minha experiência em Direcção Coral levou-me a compor
para música vocal e escrevi mesmo algumas coisas para coro. Mas digamos
que ganhei mas à-vontade e espaço com o nascimento da Cantata
sobre o Vulcão em 1995 quando fui convidado para participar num
simpósio de artes multimédia nos Açores. E enquanto lá
estive, trabalhei sempre imbuído do espírito de tentar apreender
o máximo do espaço onde estávamos, aliás como
todos no simpósio. Do ponto de vista interior, a experiência
da ida aos Capelinhos e das caminhadas que aí fiz, por exemplo, foram
uma revelação muito forte e apercebi-me de que teria de fazer
uma peça para aquele espaço. Assim, fiz uma peça electrónica,
baseada em algum arsenal electrónico doméstico que tinha levado
para lá. Durante o dia caminhava pela ilha “que nem um doido”
e à noite então trabalhava no quarto com esse material. Concretamente,
aproveitei para fazer muitas captações de várias coisas
e algumas manipulações dessas mesmas captações,
acrescentar outras coisas, etc.
Entretanto também me auto-propus ao Conservatório local, podendo
trabalhar com quem quisesse… houve portanto um pouco de arrojo da minha
parte em apresentar-me, dizendo:,“eu estou a fazer este trabalho, quem
quiser de alguma forma colaborar comigo e participar terei muito gosto nisso”.
Na altura também estava muito empenhado em termos de pesquisa, do ponto
de vista vocal, de outras sonoridades e de outras técnicas (estava
a trabalhar bastante nessa área sozinho) e com muita vontade de experimentar
isso com outras pessoas. Já tinha criado um grupo com o Paulo Brandão,
em que estávamos a fazer esse tipo de pesquisa, não só
peças do século XX, que era uma coisa que pouca gente fazia,
mas em termos de pesquisa da linguagem e em termos de técnica vocal.
Por acaso nessa altura tive a felicidade de que as pessoas que quiseram trabalhar
comigo eram essencialmente cantores – além dos cantores. só
houve um flautista que era a professora de flauta que lá estava. Todos
os dias dedicava uma hora e meia a duas horas a trabalhar com eles –
eles nunca tinham trabalhado nada do ponto de vista destas novas linguagens.
Aconteceu que uma das pessoas que lá estava a trabalhar temporariamente
connosco era a Luísa Costa Gomes. Na altura pediu-me para ir ver o
que é que eu estava a fazer com estes cantores e um dia aparece-me
com um texto, dizendo-me “Faz o que quiseres com este texto, fi-lo com
base no que me apercebi que estavas a fazer”. Eu estava aliás
muito próximo das datas de apresentação desse trabalho
que tinha de ser feita no fim do simpósio mas falei com a Luísa,
que não conhecia bem e fiz a proposta: “Olhe, gosto imenso do
texto, mas, se bem percebeu, o que eu estou a fazer em termos de trabalho
vocal é de desconstrução do texto. Portanto, o que vou
fazer é agarrar no seu texto e assassiná-lo. Posso?” Ela
disse-me que sim, que podia fazer o que quisesse – e no fundo foi o
que fizemos – agarrámos no texto e foi todo um trabalho de desmanchar
o texto, de sonorizar o texto de uma forma não narrativa.
Entretanto, uma das pessoas desse simpósio tinha feito uma filmagem
do trabalho – e a coisa nasceu tão simples quanto isto –
a Luísa Costa Gomes viu aquilo e disse: “Bom, e que tal agora
fazermos uma coisa que fosse narrativa, em que o texto tivesse outro tipo
de linguagem?” Nessa altura também me atrevi a dizer: “Ok,
então desta vez também me proponho fazer uma coisa em que as
vozes tenham um papel preponderante, em que toda a electrónica desapareça
e em que sejam realmente os instrumentos ali ao vivo de uma forma muito material.”
Isto também pode parecer um bocadinho novelesco para certas pessoas,
mas de facto esse lado físico, esse lado de ter os músicos ali,
de criar uma relação muito próxima com o público
era uma coisa que me estava a interessar muito.
E de facto a Cantata nasceu assim… nasceu de apropriar-me de
um texto que ainda teve várias versões. Aliás, ela chegou
a apresentar-me dois ou três modelos de textos completamente distintos
até que agarrei naquele texto. Foi então aí a primeira
vez que tentei casar tudo isto: a pesquisa vocal que estava a fazer até
ali, o trabalho Coral, se assim se pode dizer, e o à-vontade de escrita
ou de leitura ou de interpretação vocal que eu estava a ter.
E, por sua vez, tinha o desafio de agarrar na instrumentação
e trabalhá-la com o mesmo tipo de espírito e de liberdade com
que eu trabalhava a electrónica, mas sabendo que estou a escrever para
músicos. Talvez também pelo próprio texto ser uma tragédia
(se assim se pode chamar) que para mim, acabou por funcionar como uma tragicomédia,
houve neste processo uma leitura e uma vontade de trabalhar o género,
de brincar um pouco com o que é uma Cantata; A Luísa
Costa Gomes queria mesmo fazer uma cantata e eu acabei por agarrar no modelo
da cantata barroca, recitativo do ponto de vista formal, que justamente me
dizia muito enquanto intérprete e basicamente tentei ver o que era
possível fazer em termos da liberdade criativa dos dias de hoje.
De repente, passei a confrontar-me com outra problemática: “Ok,
mas então o que é exactamente isto de ter músicos e nomeadamente
cantores ao vivo? O que é esta relação física
com o espectador, com o público e também entre eles, claro?
Aí comecei a interessar-me muito pelo Teatro. Quer dizer, comecei a
fazer algum trabalho de música para teatro e nasceu um novo e grande
interesse – compreender como é que se monta uma peça de
teatro e todo o lado da encenação; ou como é que um actor
veste uma personagem e a constrói. No fundo, comecei a relacioná-lo
com o meu mundo e com a música. Sendo assim, não é por
acaso que a partir daí começou a ser mais ou menos determinante
para mim haver sempre uma relação com o teatro musical, o que
implicou resolver algo que funcionava como uma problemática minha:
de facto, sempre fugi a recitais de canto e piano e a sessões de leitura
de poesia porque não tinha paciência (ainda que seja um grande
amante de poesia). Para que se perceba o trabalho que talvez tenha sido mais
significativo, em 1999 acabei por fazer o Elegantíssimo, assumidamente
um recital de teatro musical. O Elegantíssimo nasceu justamente
deste ponto de partida: “Como é que eu posso começar a
gostar?” Uma outra problemática está ligada ao facto de
eu querer perceber como é que um actor chega a determinado “sítio”
e como é que um músico lá chega… perceber finalmente
que são verdadeiramente mundos e abordagens quase antagónicas…
e descobrir como é que eu poderia confrontá-las.
E mais uma vez fi-lo de uma forma que começa a ser bem recorrente em
mim e que é introduzir algum humor nesse processo. Daí que muitas
vezes pus actores a ter um papel muitíssimo musical, fazendo uma abordagem
completamente musical e, ao mesmo tempo, pôr os cantores a ter uma abordagem
teatral, o que é normalmente um problema. Ou seja, os cantores são
técnicos do ponto de vista vocal e têm uma má relação
com o palco, com a experiência “ao vivo”, precisam da segurança
que a leitura do que está escrito e tende a ser repetido e igual ao
espectáculo anterior, lhes dá. Os actores, pelo contrário,
querem essa insegurança, querem justamente que a coisa viva no momento.
E no fundo, também eu nunca abandonei completamente a improvisação…
Ou seja, a improvisação sempre foi para mim um motor para começar
a escrever. O que eu tentei então foi que tornasse possível
este diálogo, pegando em poetas surrealistas e poetas satíricos
que, em termos de inspiração, me ajudaram muito a pôr
isso tudo em ordem.
A Voz como elemento de definição
de Linguagens e a relação com a Electrónica
Eu assumo perfeitamente a tonalidade e a harmonia e é óbvio
que existe essa relação entre as minhas opções
e o trabalho com a voz; se de alguma forma enquanto director coral, esse é
um mundo que me fascina, assumo sem problema nenhum essa opção
que sei que está ligada a uma certa tradição e não
a vanguardas. O que é de facto, verdade é que a pesquisa da
voz e do que é possível fazer em termos vocais sempre me fascinou.
Há todo um mundo de sonoridades por descobrir e está na nossa
mão (ou do cantor, neste caso) descobrir tudo que se pode fazer em
termos de voz… tímbrico… físico… é
sempre possível. E embora não me assuma como cantor, assumo-me
como pesquisador de todos esses meios.
Eu procuro de alguma forma misturar as coisas, mas também não
me faz confusão nenhuma fazê-lo… um certo experimentalismo
vocal ou mais ou menos alheado da tonalidade… E isso está presente
em certas peças…, se calhar muito mais em termos estruturais
do que em termos sonoros. É provável que não se dê
por isso mas esses novos mundos sonoros deram-me ideias e liberdade para a
escrita da peça, e mesmo do ponto de vista da estrutura da peça,
permite não haver qualquer necessidade harmónica de suster a
peça ou de a estruturar. E eu assumo-me de facto como um auto-didacta,
uma pessoa que tem vindo a tentar a aprender alguma coisa por si. Claro que
com todas as falhas e todos os problemas que isso traz, mas também
ao mesmo tempo traz uma certa ingenuidade - atirar-me para coisas um bocado
sem estar demasiado assustado com o que isso pode representar em termos de
passado histórico-musical ou qualquer coisa desse tipo.
Relativamente ao uso da electrónica, para mim, ela é mesmo um
espaço de liberdade quase plástica… é uma coisa
muito sensorial, também, se se preferir e, à partida, nunca
vou pegar em opções formais. Parte realmente muito do som, da
vivência com o som, exactamente como um pintor provavelmente fará
com a pose ou fará com a cor. É portanto uma coisa muito abstracta…
é de facto uma coisa altamente dialogante… E se eu acho que é
muito bom quando se está a escrever uma obra, sentir perfeitamente
que a obra toma conta de mim e que às tantas já não sei
muito bem se sou eu que estou a escrever ou se é a obra que me “escreve”
e que há esse “tomar conta” um do outro…(o que felizmente
já me aconteceu algumas vezes), com a electrónica isso é
perfeitamente evidente porque é uma relação em que tu
tens um feedback imediato. E sobretudo no meu caso, porque nunca
me pus e não me ponho com grandes questões realmente formais;
a electrónica o lado em que eu me divirto, por um lado, ou em que me
envolvo por outro. É de facto uma coisa de envolvimento… e saboreio-a
de uma forma muito plástica.