Entrevista a Carlos Caires / Interview with Carlos Caires
2005/Jun/01
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A minha chegada à composição… Bem, desde tenra
idade, sempre fui estimulado para a música. O meu pai era um melómano, tinha
muitos discos em casa, a minha mãe também procurava levar-me a concertos, às vezes
desde tenra idade, portanto fui desde muito cedo sensibilizado em relação à
música. Ainda durante o período do liceu,
procurava sempre actividades extra-curriculares ligadas à música – ou
eram aulas de flauta ou de guitarra. Pelos treze anos, ingressei no Instituto
Gregoriano de Lisboa e comecei a minha formação musical a estudar piano e mais
tarde a estudar harmonia, contraponto e uma disciplina que eram as técnicas do
Séc. XX. De certa maneira foi essa disciplina que me lançou um bocadinho para a
composição. Era dada pelo professor Bochman na altura – que aliás também foi
meu professor de harmonia e contraponto. Essa disciplina era um bocadinho
inovadora – dado o espírito da altura – e pôs-me em contacto com as primeiras
obras do século XX (Schoenberg, Webern, Stravinsky). Dado que era
matéria para um ano, conseguimos chegar até ao Boulez – não eram aulas de
composição propriamente ditas, era mais uma cadeira ao nível do “secundário”. Mas tinha um bocadinho
de análise, sempre complementado com um pouco de escrita ao estilo da altura.
Ao voltar a falar do professor Bochman porque de facto não foi só ele professor
desta cadeira mas eu, no Instituto Gregoriano de Lisboa, também frequentei uma
série chamada “audições comentadas” (extra-curricular), em que uma vez por mês
ele fazia uma sessão comentada – ou seja escolhia uma obra, somente uma obra do
Séc. XX, dava-a a ouvir e falava um bocadinho sobre a peça, compositor e
contexto. Na altura em que termino estudos de nível secundário – portanto
termino o liceu, o 12º ano e termino também o Instituto Gregoriano de Lisboa
(piano, harmonia, contraponto), surge aquela situação em que é preciso escolher
se vou para a universidade ou se vou para a música: é o eterno dilema de toda a
gente. Eu por acaso optei pela
música - também fui bastante
incentivado pelo meio familiar – e ingressei na Escola Superior de Música que
tinha aliás acabado de abrir, creio que foi o segundo ano de funcionamento.
Quanto ao gosto pela composição em si e para ser completamente honesto, não
posso dizer que quando entrei para a Escola Superior de Música já queria ser
compositor, embora entrasse para um curso de composição. Eu queria estudar
Música, queria estudar música ao nível mais alto que conseguisse, queria
aprender muito, queria estudar orquestração, mas realmente o gosto pela
composição foi mais ou menos amadurecendo ao longo do curso – é evidente que
quando estava a meio do curso, não sabia se ia ser compositor, mas que queria
fazer composição, isso sem dúvida nenhuma. A partir daí fui compondo e tentando
apresentar obras – toda a gente sabe como é que funciona, nem sempre é fácil –
conheci na altura o César Viana que dirigia uma orquestra que era a Sinfonia B que fez a
primeira estreia de uma obra minha, depois a seguir foi a Sinfonieta de Lisboa. Portanto, e a pouco e pouco
fui tendo algumas coisas tocadas. A seguir ao terminar o curso, entrei como
assistente na Escola Superior de Música – portanto de certa maneira mantive o
contacto com a composição, agora do outro lado, como professor, conhecendo
novos alunos, novas cabeças, pessoas mais jovens, algo que é sempre muito bom e estimulante.
De seguida, estive na Escola Superior de Música
entre dois e seis anos – e ao fim desses seis anos, quis complementar a minha
formação e estudar uma área específica que era a informática musical – ou
“Computer Music”, como se quiser. E foi nessa altura que decidi ir para Paris –
fui para Paris porque conheci um compositor cuja música me atraiu bastante. Não
só a música mas a maneira de pensar, os escritos dele sobre a música e que foi
o Horacio Vaggione. Decidi ir para Paris fazer
o percurso universitário com ele, tendo lá feito a licenciatura, que lá se
chama maitrise fiz o DEA (mestrado) e neste
momento estou a terminar o doutoramento sempre com ele, sempre relacionado com
esta área.
A seguir ao curso de composição – isto é uma coisa pessoal, mas eu posso
dizer perfeitamente coisas deste género – houve um período em que eu andei um
bocado, não desconfiado da composição, mas perdido em relação às referências.
Depois dirigi um coro, passei um pouco pela direcção, fiz uns cursos de
direcção de orquestra (Espanha, França), dirigi a Juventude Musical Portuguesa
durante alguns anos. Fundei depois o coro Ricercare
com o Paulo Lourenço e o Vasco Azevedo, fiz muitos concertos de música coral,
alguns de orquestra, cheguei a estar inscrito na Orquestra Metropolitana de
Lisboa para frequentar o curso de direcção de orquestra – aqui, eu também
queria compor ao mesmo tempo, estava um bocado dividido. A decisão veio com a
peça “Al niente” porque eu queria fazer
a sua revisão e tinha em simultâneo, muita matéria para estudar para o curso de
direcção de orquestra (uma abertura de Mozart, uma sinfonia de Schubert…).Então
pensei, este é o momento da escolha, é agora, eu vou acabar a peça e compor. É
evidente que se calhar podia fazer
as duas coisas, mas é quase simbólico o que eu estou a dizer. Era uma decisão
que iria afectar o resto da minha vida – mesmo que resolvesse pontualmente a
questão, eu iria ter que lidar com a situação mais tarde e assim resolvi: vou
acabar a peça e vou dedicar-me à composição, largando a direcção de orquestra.
E assim, anulei a minha matrícula na orquestra metropolitana, deixei a direcção
do coro e a partir daí foi só, só,
só, composição. A peça “Al niente”
representou o meu reingresso, e reafirmação da minha verdadeira vocação.
Quando fiz a licenciatura, desenvolvi o meu primeiro trabalho de
fundo com música e computador, para ser mais genérico. O meu projecto constava de uma
peça, uma peça para piano e electrónica em tempo real - que já foi aliás
estreada no Música Viva, tocado pela Ana Telles Antunes
- e o meu projecto consistia não só na composição, mas também no
desenvolvimento do software que permitia a realização da electrónica em tempo
real bem como de toda a primeira a discussão sobre as implicações que isso
tinha na minha maneira de compor. Quando eu fui para Paris, não é que fosse um
compositor perfeitamente formado, mas já tinha um certo “métier” adquirido, e
obviamente que se me vejo confrontado com os meios electrónicos há um choque,
digamos. Não é um choque, é um confronto – e é preciso ver de que maneira a instrumentalidade na electrónica, o que é o
gesto instrumental na electrónica, sendo esse o aspecto que mais me tem
interessado ultimamente. Este é o aspecto que eu levei para o mestrado e que
estou a desenvolver no doutoramento. Concretamente, o doutoramento – é um bocado difícil resumi-lo - mas o meu
doutoramento utiliza todo o trabalho teórico e de reflexão em torno desta
problemática: as pontes entre o mundo instrumental, a composição instrumental,
e o que eu pretendo fazer com a electrónica.
É evidente que se eu utilizar um editor áudio
normal, Pro-tools ou o Digital Performer, o que quer seja, eu posso fazer isso,
só que a entidade que eu crio não é uma
entidade re-trabalhável facilmente – ou seja, não é uma edição estruturada do
som. Eu, por mais que corte bocadinhos e os cole (tenho uma sessão com vinte e
quatro pistas), eu posso perceptualmente identificar ao ouvido que estão ali
quatro objectos compostos e sobrepostos, eu posso tê-lo feito com essa
intenção, só que depois é-me extremamente difícil pegar um, noutro e noutro e
retrabalhá-los, introduzir o conceito de variação nesse objecto, por causa do próprio tipo de editor. Ora o
meu projecto de doutoramento tem sido essencialmente tentar propor um outro
tipo de editor de som e é nisto que eu estou a trabalhar, estou a fazer um
protótipo em Max/MSP, que já funciona razoavelmente bem e em que se consiga
fazer uma edição digamos estruturada da ideia de figura musical. Ou seja, eu
começo com entidades pequenas, vou acumulando – agrupo em figuras – e as
figuras podem-se acumular numa entidade superior que eu chamei de mezzo-estrutura; não interessa a
terminologia, interessa é o princípio, é uma edição estruturada onde eu guardo
na memória de trabalho do meu ambiente de programação todas as instruções
relativas ao que eu alterei naquele som.
Ou seja, eu posso sempre voltar para trás, e
guardando a mesma figura ou morfologia de base, introduzir pequenas variações
para criar novos objectos aparentados. É evidente que isto é um princípio
composicional altamente discutível, mas é o meu, é aquele que eu pretendo
implementar, por isso fiz este software.
O que eu estou a tentar fazer com estes meios
electrónicos é algo que na música instrumental sempre funcionou desta maneira.
Aliás a própria noção de partitura implica isto um bocado e embora se saiba
qual é o gesto que se quer no final, há, de facto, a necessidade de o
concretizar, tocando uma nota, e depois outra, e depois outra. Ao passo que se
eu pegar numa ferramenta genérica de granulação e de repente introduzo numa
série de parâmetros, eu tenho um som que pode durar cinco segundos no qual eu
não tenho o controlo sobre cada grão, com um gesto só composicional, criei uma
textura inteira. Se eu quisesse fazer a mesma coisa instrumentalmente teria
forçosamente de explicitar cada nota para cada instrumento.
É um bocado isso que eu estou a tentar a implementar
no meu ambiente de programação e de facto o HoracioVaggione
tem também de facto esta maneira de pensar, mas eu acho que foi um encontro
curioso, por alguma razão me interessou obviamente ir estudar com ele, não foi
propriamente por acaso.
Há obras só instrumentais, há obras só
electrónicas…
bem, ainda não há, mas estou neste
momento a terminar uma – e há obras mistas, sendo a obra mista a que mais me
está a cativar neste momento. Obras mistas, tenho uma de clarinete e
electrónica, tenho uma de flauta/electrónica, tenho a de piano/electrónica, e
recentemente em Janeiro passado, estreei uma peça para quatro percussionistas e
electrónica em tempo real, em Itália. Portanto tenho trabalhado um pouco a
mistura dos meios. Na electrónica em
concreto, tenho-me interessado na tal questão – o que é o “gesto
instrumental” na electrónica, como é que se consegue o mesmo tipo de frase, de
morfologia se quisermos ou de figura – tenho trabalhado nisso e tenho
desenvolvido ferramentas, digamos informáticas, para trabalhar precisamente
nesse conceito, no conceito da figura musical, como é que se trabalha a figura
com o auxílio do computador.
É sobretudo um problema de concepção da própria
coisa, ou seja, todas as abordagens que eu tinha feito à música electrónica,
eram sempre perspectivas. Tínhamos uma grande ideia de uma massa sonora que
depois íamos de certa maneira – ou por acumulação, ou por justaposição, seja
porque processo for – íamos criando uma maior complexidade por camadas. Quando
se fala em “tratamentos” de som, não gosto nada da palavra tratamento, porque
acho que é mais fácil e até mais bonito falar em composição, compor, inventar
um som é compô-lo – trabalha-se geralmente com parâmetros muito globais, -
geralmente, aliás o próprio “interface” do computador , a metáfora do “plug-in” é uma coisa global que se
aplica a um som de maneira global. Agora, é evidente que também se pode
trabalhar instrumentalmente da mesma maneira, há sempre essas duas maneiras de
compor, top-down e bottom-up – quer dizer o começar debaixo e ir para cima e
vice-versa. Aliás temos na música instrumental dois exemplos paradigmáticos,: o
Pierre Boulez que trabalha bottom up, começa de pequenino e vai
acumulando e o Karlheinz Stockhausen que se calhar já sabe qual é a globalidade
e depois vai esmiuçando. Agora, pela minha maneira de ser, na minha
perspectiva, eu sou mais também de definir detalhe e a partir da acumulação de
detalhes, construir a trama final – embora eu saiba, ou tenha ideia, ou
convenha que tenha ideia de qual é a trama final onde quero chegar. Obviamente
não é assim tão simples, mas a metodologia é como eu acabei de explicar. Agora,
concretamente, é assim: quando eu trabalho na electrónica ou com som gravado
seja do que for, vamos supor que eu quero compor uma figura – e vou talvez
lançar uma palavra que é montagem, ou micro-montagem, porque é a maneira como
eu gosto de trabalhar, uma figura complexa feita por muitos sons que forma uma
determinada morfologia. Quase que podemos chamar um tema, se quisermos, um tema
que pode demorar um segundo, meio segundo, dois ou cinco segundos, não
interessa. Mas cria uma entidade.
É evidente que ao ter uma figura composta através de
micro-montagem, em que pode
incluir sons que duram cinquenta milisegundos, eu estou numa escala de trabalho
que não é a mesma da música instrumental. Digamos que a ideia é um bocado
perceber – é uma ideia de facto do Vaggione – que os problemas que se colocam
na composição, são um pouco os mesmos, quer na música instrumental, quer na
música electrónica. Tudo depende da escala através da qual se olha para o som:
o som tem de ser composto. Se eu escrevo um dó numa partitura, eu sei que tenho
que colocar uma dinâmica, tenho que dizer qual é o instrumento, tenho que saber
qual é a articulação, e tudo isso compõe o som que finalmente vai ser ouvido.
Eu estou a falar um bocado nisto, porque às vezes há uma perspectiva que talvez
seja um bocadinho ultrapassada, talvez pelo ensino, pela escola, não sei, em
que se dá muita importância às notas enquanto símbolo de uma partitura – só que
uma nota não é apenas um símbolo de uma partitura, uma nota é, finalmente, um
som… ela está lá para ser ouvida. Vou só dar um exemplo que talvez ilustre onde
é que eu quero chegar com isto. É um bocado influenciado pela música serial dos
anos cinquenta, enfim já passaram mais de cinquenta anos mas, o ensino que
fomos tendo, até mesmo nos anos oitenta ainda estava marcado por isso,
Obviamente, não é que seja errado mas acho que é um facto, e quando numa aula
de análise, seja de que professor for – e eu já fui professor e se calhar fiz a
mesma coisa – pega-se na obra de Webern, por exemplo, e vamos ver onde é que
estão as séries. E em Boulez a mesma coisa. E às vezes há questões que não digo
que não sejam abordadas, mas se calhar não têm, não ganham tanto peso como esta
aproximação, das notas, que são questões fulcrais de facto, porque é isso, em
última análise – não é só isso, mas estão as duas coisas ligadas uma com a
outra. A questão de timbre, dinâmica, o som em si mesmo – uma coisa é a nota,
outra coisa é o som – e foi preciso eu trabalhar de facto com os meios
electrónicos e electroacústicos
para realmente interiorizar e amadurecer essa ideia que é mais ou menos
aceite por toda a gente, mas que no meu caso não era uma segunda natureza ainda. Não sei se já é, não
sei se alguma vez será, mas é aí que eu quero chegar e que, de facto, mesmo
quando escrevo música instrumental agora penso que a minha atitude mudou um
bocadinho em relação ao que era há dez anos, atrás. Claro está que tem toda a
teoria, jogos com notas, etc., mas de facto, acho que não coloco uma dinâmica
com tanta impunidade como fazia por exemplo há dez anos atrás. E eu estou a
falar contra mim, mas paciência.
Ora bem, em relação ás obras propriamente ditas,
enfim, não vou falar de todas. “Al niente” foi a minha primeira peça a ser tocada em público,
mas não na versão final. Digamos que esta peça teve uma primeira versão (eu sou
uma pessoa que, em geral, faço revisões das peças) que foi estreada pela Sinfonia B dirigida pelo César Viana, há tanto
tempo. E foi de facto a primeira vez que me ouvi em público e isso teve um
impacto brutal. Lá está, uma pessoa compõe na partitura, conscientemente sabe o
que lá está, sabe o que está a pôr mas há qualquer coisa na execução que
transcende tudo o que possas esperar quando estamos a compor a peça. Bem sei
que existe um grande número de pessoas que dizem que sabem como vai soar a
partir do que está escrito mas há sempre inúmeros imponderáveis. E quanto mais
não seja pela questão do tempo. O tempo passa, e o tempo passa de uma maneira
completamente diferente quando estamos a ouvir. Este é o eterno dilema,
controlar o tempo quando se está a compor. Uma página que demora um dia a
escrever vai ser ouvida num segundo, é uma enorme desproporção e isto é o
controle constante do compositor – o tempo, o tempo, tempo. E esta peça quando
foi tocada foi uma experiência extraordinária; uma semana depois, estava a
pegar na peça e a fazer revisões – houve muita coisa de que me apercebi nos
ensaios, não tendo eu como o Mahler uma orquestra à disposição para fazer
mudanças durante os ensaios - mas
fiz uma revisão profunda. Digamos que o essencial continua lá: é a mesma peça
para todos os factos, mas ao mesmo tempo não é, e isto porque mudei secções,
outras desapareceram, outras foram incluídas, trocadas de ordem ou esticadas
porque vi a tal questão do tempo, precisava de mais tempo; outras encurtei. Foi
como uma matéria plástica em ajustes mas o resultado final por um lado
afastava-se de tal modo do original que até mudei o título da peça, passou a
chamar-se “Al niente”, porque passou a
ter um instrumento solista que é o clarinete, e o título até vem do último
gesto do clarinete, que é uma nota que fica até desaparecer, dando a indicação
que está a chegar “Al niente”, que foi o que deu o título à peça. Foi com esta
peça que ganhei o 1º Concurso de Composição da Câmara
Municipal de Lisboa em 1995 e o facto de re-ouvir
uma peça que foi tocada mais tarde, depois de ter sido revista, relançou-me um
pouco no caminho da composição.
Mais
obras…existem obras que no fundo se incluem neste período, digamos assim,
apresentam o mesmo tipo de preocupações musicais e composicionais, a peça Wordpainting, a peça Lebhaft para flauta. A peça Melodrama é uma peça um bocadinho diferente,
é um melodrama, ou seja, música com texto recitado. Foi baseada num sermão do
Padre António Vieira bem como noutros textos, mas o corpo principal é o sermão
do Padre António Vieira. Era uma peça que tinha um conteúdo programático um
pouco diferente ao que eu estava habituado a compor na altura, mas é uma peça
que também hei-de rever, isto porque embora tenha resultado, eu acho que há ali
coisas que neste momento posso retrabalhar, nomeadamente a parte electrónica.
Tinha uma secção central só com piano que depois encadeava com uma pequena
secção com electrónica. Foi também por altura desta peça que comecei a piscar o
olho à electrónica e comecei a ouvir, interessar-me e a explorar o computador e
as ferramentas disponíveis. Já nesta altura surgiu esta peça – em 1997 – e por
alguma razão em 1998 eu segui para Paris. Existem mais peças, pelo menos há a Clepsidra, para orquestra de cordas
e escrita para a Sinfonieta de Lisboa, que
também pertence um bocado a este período, época com mais preocupações rítmicas
enquanto a peça “Al niente” tem preocupações estritamente harmónicas. Depois
compus em Paris o Tríptico, quarteto para viola, harpa e dois percussionistas. Existe
ainda a tal peça que referi à pouco, para piano e electrónica, há uma versão da
peça de flauta com electrónica, há a peça Linear, para clarinete e
electrónica…Pouco a pouco estava a entrar num mundo onde a electrónica é cada
vez mais presente, nomeadamente com esta peça, Linear, que não é para clarinete
e electrónica, parece absurdo dizê-lo, mas é que a primeira parte – a peça tem
cerca de oito minutos – é só banda, cerca de quatro minutos e tal. O clarinete
só entra na segunda metade da peça. Isto deve-se em parte ao facto de eu ainda
estar à procura de como é que o mundo instrumental se ligaria à electrónica.
Acho que isto é uma eterna questão que se coloca a todos os que trabalham com
estes meios – como é que os dois mundos, que são aparentemente tão diferentes
mas com muita coisa em comum – se podem realmente unir de uma maneira
consistente e bonita, porque é isso que é importante. Assim, essa peça reflecte
ainda a minha procura e daí a solução, essa artimanha – a primeira parte só com
electrónica com um tipo de
elaboração que pouco a pouco vai introduzindo o clarinete, ou seja
através de pequenos gestos melódicos, o clarinete é introduzido pela
electrónica mas não chegam a estar completamente em conjunto. Há electrónica na
segunda parte, obviamente mas é muito menos presente; há clarinete na primeira
parte, porque esta utiliza muito sons de clarinete gravados, trabalhados e
misturados, mas os dois mundos não chegam a estar realmente em conjunto. A peça
seguinte, é a peça para quatro percussionistas e electrónica em tempo real e
que foi uma encomenda da RAI para o grupo de percussão da Orquestra Sinfónica
da RAI. Foi estreada em Janeiro de 2005 em
Turim, dirigida pelo maestro Valade. A parte electrónica foi feita por mim e
continuada no estúdio do centro “Tempo Reale”.
É uma peça onde já procuro uma maior fusão entre a electrónica e os
instrumentos.
Trabalho
a electrónica essencialmente segundo os princípios que acabei de explicitar à
pouco – a partir de pequenas figuras, com as mesmas figuras de outra escala
também a serem tocadas. Digamos que a electrónica funciona aqui como um quinto
percussionista, só que é um percussionista muito virtuoso, consegue tocar muito
rápido e com notas com valores muito pequenos – é um bocado surrealista, mas é
assim. Há também mais efeito de causa-consequência entre instrumentos e
electrónica, não é apenas uma subversão, mas tento que haja uma maior
complementaridade. Aliás a electrónica é toda exclusivamente baseada em sons
gravados de instrumentos de percussão, que depois são retrabalhados,
misturados, cortados, colados, etc.…A electrónica, eu digo que é em tempo real,
mas não há, digamos, processamento de sinal em tempo real. Existe algum, mas é
muito pouco – uns filtros ressonantes – mas o principal trabalho em tempo real
é o controlo e “trigger” das várias figuras e que é feito por mim. No fundo, o
outro percussionista era eu. Dispunha, assim, de um interface, por um lado as
figuras previamente compostas ou antes, tinha a descrição das figuras
armazenadas informaticamente sob o formato de texto e por outro o teclado do
computador com um módulo de potenciómetros Midi, bem com uma mesa (Tablet) gráfica com uma caneta digital, com a qual
eu controlava o modo como a figura ia ser composta. Controlava, assim, a
selecção de amostras, que eram lidas de acordo com o posicionamento da caneta
na mesa gráfica, sendo a pressão da caneta utilizado para controlar diversos
tipos de parâmetros. E pronto, no fundo, o tempo real é mais em termos de
interpretação do que propriamente de tratamento.
Não é o tratamento que me interessa
em última análise. O tratamento faz parte do acto de composição, eu não o vejo
como um efeito (como ás vezes se diz: “acrescentar um efeito”), não é efeito
porque quando se assume a responsabilidade, está-se a compor ao abrir aquele plug-in, etc… e tem que se encarar
isto e tirar as conclusões desse acto compositivo. Por isso é importante, para
mim, voltar para trás, em relação ao que já falei, o meu ambiente, de modo a
poder descompor o que compus, para recompor de outra maneira. Se um efeito é de
facto um acto de composição, tem para mim, essa implicação, a saber, como é que
vou desenvolver isto que acabei de fazer. E no que respeita à peça de piano,
era um pouco a mesma coisa: havia um programa, o Max,
que funcionava em tempo real mas que não era propriamente um tratamento de
sinal em tempo real, era mais uma reorganização das figuras do material que
estava escrito. De facto, eu vejo o meu programa Max como uma partitura, um pouco na óptica do
Philippe Manoury, a partitura virtual; aquilo é uma partitura, uma descrição de
um determinado tipo de texto musical. Não são notas, mas sejam algoritmos ou
seja lá o que for, existem ali figuras, ritmos, existe tudo o que está numa
partitura convencional. A minha atitude é de não fixar os elementos entre si.
Tenho, por exemplo, um desenho ascendente, outro desenho composto por quatro
acordes ou quatro impulsos, outro ainda composto por uma melodia que faz
determinado contorno…Agora, cada um destes elementos que compõem esta figura
podem ser trabalhados individualmente – por ex. A figura que é ascendente pode
ser variada em termos de velocidade de subida ou nos acordes eu posso jogar com
a deformação no registo (mais condensados, mais apertados), etc. E o meu
trabalho reparte-se um pouco pelo tempo real e pelo tempo diferido, ao variar
estes parâmetros que compõem a figura geral, ou seja, a figura resultante do
retrabalhar dos parâmetros – que não se torna numa figura nova. O ouvido
reconhece-a como uma mesma forma, a mesma “Gestalt”, digamos, e isso é um
aspecto, para mim, muito importante. Voltando a uma questão que já mencionei, a
granulação, temos uma nuvem de grãos de som, produzidos por um algoritmo ao
qual se apresenta um “input” , fornecemos os parâmetros ou seja a duração, a
panorâmica e pronto, ele gera. No ambiente que eu realizei em programação, uma
das ferramentas é obviamente um granulador que permite fazer isso, só que
depois, através do interface, eu consigo visualizar cada um dos grãos. Às vezes
pode ser um preciosismo, o estar a observar cada um dos grãos, mas eu posso
retrabalhar pequenas modificações nesta nuvem de grãos, modificando um
parâmetro - por ex. uma filtragem no início, a meio e no fim. Quero dizer com
isto que tu reconheces a mesma morfologia de base, mas agora com uma pequena
nuance no parâmetro da filtragem ou no parâmetro da velocidade de leitura de
cada som ou até, pegar numa nuvem e introduzir nela novas partículas de som que
provenham de outro lado – e pouco a pouco, transformar uma nuvem de grãos de um som numa outra coisa e
isto porque é importante gerar-se algo de um gesto só. Existe uma ideia global
que define um objecto musical que só ganha sentido do ponto de vista da
composição se pudermos depois trabalhar as pequenas singularidades que lá estão
- a nossa vontade como compositor. Isto representa um pouco a filosofia de
trabalho que actualmente, me orienta.