Entrevista a Luís Tinoco / Interview with Luís Tinoco
2003/Apr/13
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ENTREVISTA A LUÍS TINOCO (Versão
Integral)
Podemos começar por falar do teu ambiente familiar, e o que significou
para ti a influência de pelo menos duas figuras da tua família:
por um lado, a tua avó, e, por outro lado, o teu pai?
Começando pelo princípio, a minha avó era pianista e
professora de piano. Fez uma carreira como concertista a nível nacional,
com alguma notoriedade. Tinha sido aluna de Vianna da Motta – chamava-se
Maria Carlota Tinoco – e fez muitos recitais na Emissora Nacional. Juntamente
com o meu avô, fazia um casal muito interessante, porque davam uma série
de concertos e organizavam toda uma vida cultural e musical em Leiria –
o meu avô era o reitor do liceu local.
Foi nesse ambiente que o meu pai nasceu, em Leiria, e a formação
clássica e a música clássica em geral estava presente
através desta via familiar, não só por aquilo que a minha
avó era enquanto pianista – muito atenta a esta tradição
dos discípulos de Vianna da Motta, com um repertório centrado
principalmente em figuras como Liszt, Chopin, Grieg, etc. – mas também
pela vida musical que se vivia na casa dos meus avós, onde depois tudo
terminava com serões musicais e convívio com pessoas das várias
áreas das artes. Portanto, é nesse meio que o meu pai cresce,
inclusivamente com grandes figuras que passaram por lá – a Guilhermina
Suggia, etc. O meu pai, curiosamente, não tem uma formação
académica na área da música. Ele é um músico
autodidacta, com uma facilidade invulgar ao nível do ouvido, mas nunca
fez estudos convencionais – a área dele é a arquitectura
e as artes plásticas. No entanto, acabou também por seguir uma
carreira musical, essencialmente na área do jazz. Tocava piano e contrabaixo,
e fez parte do grupo que, nas décadas de 1950 e 1960, impulsionou a
primeira geração de músicos de jazz em Portugal, e que
depois mais tarde viria a abrir caminho a figuras como Rão Kyao, e
nas gerações seguintes a pessoas como os Moreiras, Mário
Laginha, Bernardo Sassetti, João Paulo Esteves da Silva, etc. Todas
essas músicas de certa forma tiveram a porta aberta através
do Hot Club, e, essencialmente, do trabalho de Luís Villas-Boas, mas
também dos músicos que andavam em torno dele.
As minhas primeiras memórias musicais estão relacionadas com
a minha avó, por um lado, e com o meu pai, por outro. Com a minha avó,
porque foi com ela que eu comecei a aprender piano - lembro-me bem disso,
pois cheguei a viver durante algum tempo em casa dela. Lembro-me de coisas
como dormir debaixo do piano enquanto ela tocava, e de estudar com ela. Ela
tinha, realmente, muita vontade que eu e o meu irmão estudássemos
piano e que tocássemos, talvez por termos uma relação
muito próxima. Acabámos por ser encaminhados para a Professora
Elisa Lamas, com quem continuei os meus estudos clássicos. Da parte
do meu pai, obviamente que houve uma influência fortíssima, e
não só a nível de aquilo que sou hoje, como ouvinte de
música. Foi com o meu pai que eu comecei também a experimentar
a improvisação. O meu pai tocava muito ao piano sequências
harmónicas, e eu e o meu irmão punhamo-nos ao colo dele, e depois
improvisávamos melodias que tocávamos com ele a três mãos
– ele duas e nós uma! Portanto, é aí que eu considero
que se começaram a formar as minhas capacidades de construção
musical. O meu universo harmónico parte daí, porque eu copiava
o que o meu pai fazia ao piano.
Muitas vezes eu estava a fazer as minhas coisas – não era propriamente
compor, andava mais à procura de sequências harmónicas
– e, muitas vezes, ele estava na sala ao lado. Quando havia uma passagem
de que eu me queria lembrar, de que tinha gostado mas já não
me lembrava o que tinha feito, e estava ali quinze minutos à procura,
ele entretanto dizia-me: “Olha, aquilo que tu fizeste foi isto”
– e sentava-se ao piano e tocava. Eu dizia “Ah, obrigado”
– e depois isso permitia-me continuar. Nesse sentido, foi realmente
um começo que eu considero privilegiado, porque tinha sempre ali uma
pessoa que me ajudava a ouvir e a desenvolver essa capacidade de cantar e
fazer música.
Ao mesmo tempo é importante referir a vida musical que se fazia em
casa dos meus pais – eu e o meu irmão éramos muito miúdos,
e, quando já devíamos estar na cama, muitas vezes estávamos
sentados nas escadas a olhar para músicos de jazz a fazer uma jam session
lá na sala de estar… Portanto, vivíamos nesse meio, ora
de músicos clássicos, ora de músicos de jazz, ou até
da área do fado – porque o meu pai durante algum tempo esteve
ligado à chamada música ligeira, nomeadamente escrevendo muita
música para o Carlos do Carmo, etc. Houve toda uma série de
músicos de várias áreas, desde a música tradicional,
da música popular portuguesa até à música jazz
e música clássica, que conviviam em serões em casa dos
meus pais. Portanto, eu acabei por absorver isso.
A música popular não deixou nenhuma influência
na tua música?
Não, isso de facto não… Mas a música popular brasileira
talvez, porque havia muitos músicos brasileiros que passavam por minha
casa, como o Ivan Lins… Quando eu era miúdo, entre os meus doze
e catorze anos, estas eram influências muito fortes para mim: Milton
Nascimento, Ivan Lins, etc.
Na tua música, há uma ligação muito natural
com a tradição. Tu tens a melodia, a harmonia e aqueles parâmetros
muito tradicionais: se calhar, vêm dessa convivência…
Sim, eu penso que, se me perguntasses, por exemplo, onde é que eu situava
no tempo o meu contacto com a música afro-americana ou com a música
erudita – porque eu muitas vezes leio biografias de pessoas que dizem
“eu comecei a ouvir jazz quando tinha catorze anos” ou “eu
comecei a ouvir Stravinsky…” – não conseguiria fazê-lo,
porque de facto desde sempre essas coisas estiveram lá. E isso foi
um privilégio. Do repertório erudito, lembro-me dos concertos
de Vianna da Motta, a que costumava assistir sempre com a minha avó.
Lembro-me de, a dada altura, ver várias vezes o Concerto nº 1
para piano e orquestra de Tchaikovsky, porque nesse ano foi a peça
final. Lembro-me ainda da emoção que aquilo me causava –
aquele concerto, aquele lirismo todo... E isso estava, obviamente, presente.
E são coisas que agora identificas na tua música?
Curiosamente, o Tchaikovsky, que não é, de maneira nenhuma,
um compositor que eu ponho no topo da lista dos meus compositores favoritos,
tem este concerto, que ainda hoje, quando o oiço, não consigo
deixar de sentir por ele uma grande empatia. Isto porque, de facto, fez parte
da minha formação musical enquanto ouvinte, num momento muito
especial.
Tiveste depois a passagem pela Escola Superior de Música de
Lisboa...
Sim, mas foi tardia. Foi tardia, porque eu andei muito dividido entre a música,
as artes visuais e o cinema. Andei realmente na dúvida sobre o que
é que havia de fazer: se queria seguir cinema, se queria seguir as
artes plásticas ou se queria seguir a música. Ainda andei alguns
anos a fazer um bocadinho de tudo, mas não fazia nada. Ia tendo aulas
particulares, por exemplo com a professora Elisa Lamas, e depois fiz dois
anos de piano jazz com o Mário Laginha. Andei a experimentar várias
situações até que, a dada altura, achei que faltava fôlego
à música que eu estava a fazer. Conseguia fazer muitos começos
de muitas músicas, de três ou quatro minutos, mas não
conseguia desenvolvê-las no tempo, não conseguia fazer um discurso
mais alongado. E senti que, se fizesse estudos convencionais de composição
e estudasse orquestração, se estudasse composição
de uma forma tradicional, isso talvez me trouxesse as ferramentas e o vocabulário
para depois desenvolver aquilo que eu andava ali a experimentar mas de que
ainda não tinha conseguido encontrar o caminho. Foi nesse período
que pedi admissão à Escola de Música. Penso que entrei
em 1991 ou 1992 – nessa altura, com a idade que tinha, já podia
ter perfeitamente acabado o curso… Foi aí que comecei a resolver
o problema da escrita. Não digo que tomei contacto com um determinado
tipo de coisas, porque, por exemplo, mesmo quando não fazia a mínima
ideia que iria seguir o curso de composição, ia todos os anos
aos Encontros da Música Contemporânea da Gulbenkian. Desde a
década de 1980 que ia, e umas vezes gostava mais, outras vezes gostava
menos, mas lembro-me perfeitamente de ter acompanhado os Encontros e continuava
a fazê-lo. Obviamente, nessa altura, os compositores que mais me influenciavam
eram aqueles que vinham dentro de uma linha que tinha a ver se calhar com
aquilo que ouvia mais quando era miúdo: Ravel, Stravinsky, Bartók,
etc. Mas depois começam a surgir os Ligeti, Lutoslawski, entre outros
– muito pela via de serem também compositores que herdaram essa
música que eu também ouvia. E, ao mesmo tempo, nunca deixei
de ouvir Keith Jarrett, Bill Evans ou Herbie Hancock. Portanto, foi uma congestão
de informação mais do que uma digestão. Estive sempre,
mesmo que involuntariamente, a absorver coisas de fontes muito variadas.
Na ESML sentiste que os teus interesses eram muito diferentes dos
outros alunos, ou esse tipo de eclectismo era comum?
Penso que, hoje em dia, cada vez mais se encontram compositores na área
da chamada música erudita que vieram do rock, do jazz,
do garage, etc. Portanto, aquela ideia de só ser compositor
quem faz um estudo de um instrumento, que vem do conservatório e que
depois segue a genealogia que começa, se quisermos, em Bach e depois
passa por Brahms e Mahler, etc – essa genealogia, em mim, não
se aplicou ao nível dos estudos. Poderei tê-la seguido a nível
de escuta, mas não a nível do estudo convencional. Penso que
isso é uma tendência cada vez mais comum – nós começamos
a ver as biografias dos compositores e eles vêm dos sítios mais
inesperados, até muitas vezes de outras formas de arte que não
a música.
Nesse sentido, sim, será inesperado o facto de eu ter conseguido entrar
no curso… Devo até dizer que entrei com uma das piores notas,
não tenho vergonha nenhuma em dizer isso! Inclusivamente, a prova que
apresentei na admissão era uma prova muito mais influenciada por Keith
Jarrett do que por qualquer outro compositor da linha erudita. Mas é
preciso também esclarecer uma coisa: eu nunca fui, nem quis ser, um
músico de jazz. O jazz para mim é uma questão de digestão.
A partir do momento em que é uma música que eu oiço muito
regularmente, de vez em quando saem espontaneamente algumas coisas no meu
discurso, mas que nem sequer consigo identificar como sendo música
de jazz. Não acho que tenha essa validade, porque a música de
jazz é uma música que depende essencialmente da improvisação,
e eu sempre lidei com a composição numa perspectiva de escrita,
nunca com a espontaneidade que muito admiro nos verdadeiros músicos
de jazz – essa eu nunca a tive.
E a tua passagem por Londres? Imagino que foi uma experiência
interessante...
Penso que Londres surgiu por várias razões. Uma talvez por via
familiar, porque eu realmente fui educado numa família com influências
anglo-saxónicas a vários níveis. Depois, quando eu acabei
o curso em Lisboa – onde estudei com os professores Christopher Bochmann
e António Pinho Vargas, e também com um professor brasileiro
que entretanto saiu da Escola, José Carlos Bonaccorso – quis
continuar os meus estudos e queria ir para um país onde pudesse encontrar
um pluralismo, uma transversalidade, que tivesse a ver com aquilo que penso
que é a minha forma de sentir a criação artística,
não só o discurso musical. Obviamente que surgiram outras opções,
os Estados Unidos da América, a Holanda, a Inglaterra, mais até
do que eventualmente Paris ou Alemanha. Nesse sentido, acabei por pôr
várias hipóteses. Como os Estados Unidos eram muito longe, a
questão da separação para um espaço tão
longínquo custava-me um pouco, enquanto que da Holanda ou de Inglaterra,
uma pessoa está cá em duas horas – por isso, acabei por
optar pela Inglaterra.
Queria viver em Londres, portanto nem estava muito preocupado com o que ia
estudar ou para onde ia estudar. Concorri a vários sítios em
Inglaterra e depois acabei por aceitar um lugar no primeiro sítio que
mo ofereceu, que foi a Royal Academy. Fui lá, gostei muito do ambiente,
e achei que aquilo era fabuloso, relativamente ao acesso que eu iria ter à
música contemporânea e às diversas formas de expressão
dentro dessa música. Ia ser de facto privilegiado, e nesse sentido
acabei por aceitar o lugar que me ofereceram na Royal Academy. Foi lá
que depois acabei por fazer o mestrado.
O que é que achas que foi o mais importante dessa experiência
como compositor?
Por um lado, o sentido pragmático dos ingleses, nomeadamente doo meu
professor, Paul Patterson. Não posso dizer que, a nível da composição
ou inclusivamente a nível do meu posicionamento estético, ele
tenha sido uma influência grande, até porque nem me revejo muito
no idioma dele. No entanto, foi uma pessoa com quem gostei muito de trabalhar,
porque era extremamente pragmático na resolução de problemas
de escrita ou de notação. Nisso, ele era extremamente sensato,
porque não tentou nunca puxar-me para aquilo que seria a forma dele
resolver o problema num determinado momento da composição. Ele
percebia perfeitamente para onde eu queria ir, percebia muito bem quais é
que eram as minhas influências, quais é que eram as minhas referências,
e o trabalho dele foi exactamente no sentido de me ajudar a conseguir realizar
musicalmente isso.
Por outro lado, eu vinha de Lisboa. Penso que, ao nível de uma preparação
de técnica e de rigor de escrita, o professor Bochmann foi fabuloso,
porque ele me ajudou um pouco… Eu vinha realmente daquela vida um pouco
caótica a que já fiz referência – de andar um pouco
por todo o lado e de não andar em lado nenhum – e o professor
Bochmann foi extraordinário por me pôr um pouco a cabeça
no lugar e organizar as ideias, até inclusivamente a incutir–me
métodos de trabalho. Depois, apanhei o professor António Pinho
Vargas, que, sob o ponto de vista da poética da música e do
discurso, foi fabuloso. Portanto, eu tinha, ao nível mais poético
e ao nível mais técnico, dois professores formidáveis,
com quem penso que aprendi muito. Acho que a grande riqueza, durante a minha
estadia de dois anos em Londres, foi o poder escrever com uma grande regularidade
e poder ouvir a minha música tocada belissimamente. De repente, tinha
entrado numa dimensão mais profissional da música. Na Escola
Superior de Música, tudo tinha ficado num plano mais teórico:
escrevia as peças e ela iam ficando arrumadas na gaveta, enquanto que
em Londres, tudo o que eu escrevia…
Isso também é relativo, não é? Porque
antes de Londres, escreveste o Quarteto de Cordas, não foi?
Isso foi um acidente de percurso. O Quarteto de Cordas é,
em termos de percurso e em termos de catálogo, o opus 1 - aliás,
nem é a primeira, é a segunda obra. A primeira foi um quinteto
que nunca foi tocado, porque o considero ainda bastante incipiente. O Quarteto
de Cordas é talvez a primeira peça que faço num
contexto académico, que eu considero que já tem um discurso,
e onde já se percebe para onde é que eu estou a ir – inclusivamente
existe algum domínio técnico de escrita. O Quarteto de Cordas
surge porque nesse ano eu estava a trabalhar com o professor Bochmann. Ele
perguntou-me o que é que queria escrever e eu optei por um quarteto
de cordas. Quando acabei de escrever essa peça, que foi a que levei
ao exame no meu segundo ano do curso de composição, surgiu entretanto
o Prémio Lopes-Graça de Composição, que tinha,
e tem, a grande qualidade de permitir a audição da obra premiada
– ao contrário de muitos prémios de composição
que dão um diploma e pouco mais. Nesse ano, tive sorte. Já que
tinha feito o Quarteto de Cordas, enviei-o, e tive depois a feliz
notícia de que tinha sido o vencedor do prémio. Graças
a isso, tive a possibilidade de ouvir essa música tocada – mas
não o devo à Escola Superior de Música, devo-o antes
ao Prémio Lopes-Graça.
Estás a dizer que essa obra já dá indícios
do caminho que querias seguir? Quais é que são esses indícios?
Penso que, ouvindo essa obra, se percebe perfeitamente uma das minhas grandes
influências, que é o Ligeti. Ligeti é, dos compositores
vivos, talvez o compositor que eu teria que pôr em primeiro lugar. Não
gosto de fazer estas hierarquias, porque é sempre injusto e reduz sempre
um bocadinho. É muito restrito, mas tenho de assumir que ele foi, e
é, uma influência muito forte na minha forma de entender a música.
Eu só posso ter escrito esse Quarteto porque analisei, por exemplo,
o 2º Quarteto de Cordas de Ligeti. Ouvia, de facto, muita música
dele.
Há aspectos nesse quarteto – ao nível da textura, da notação,
do ritmo e da descoberta do timbre – que têm muito a ver com experiências
que eu depois fiz mais à frente. Há uma certa forma de organizar
o meu discurso através de painéis, que tem muito a ver com a
forma visual e narrativa de eu entender a minha música. Nesse quarteto,
já se encontra perfeitamente essa tendência em agrupar o discurso
naquilo que depois se pode entender como um políptico de situações,
que eu pretendo que sejam bastante visuais e narrativas – que tenham
uma linha, um ponto de partida, uma evolução e um ponto de chegada.
Nesse sentido, é curioso que algumas das minhas peças mais recentes,
principalmente pelo facto de eu ter reintegrado no meu discurso a pulsação
regular, tenham, aparentemente, um distanciamento em relação
ao Quarteto de Cordas. No entanto, eu reconheço o seu ADN,
sei muito bem qual é o seu código genético, sei que ali
estão em embrião muitas das coisas que eu estou a fazer hoje
em dia. Numa primeira observação, poder-se-á dizer que
aquilo que fiz em 1995 e aquilo que estou a fazer hoje é de dois compositores
diferentes. Mas seguindo esta ideia dos painéis, cada obra cumpriu
o seu painel dentro deste políptico. Aquilo que estou hoje a fazer
provavelmente será um embrião daquilo que estarei a fazer daqui
a dez anos. Penso que isso é a evolução natural das coisas.Ou
não, porque há compositores para os quais, antes pelo contrário,
uma obra e a seguinte têm coisas completamente diferentes.
O que estás a dizer é que há uma série
de questões, que se mantêm, e que são trabalhados de obra
para obra.
Sim, se eu olhar para trás, e se procurar grandes contrastes, as únicas
situações em que penso que, de uma peça para outra, tenho
um corte muito bruto, devem-se sobretudo a questões de natureza profiláctica.
Se, por uma questão de descontracção, eu quiser experimentar
uma coisa completamente diferente… Vou dar um exemplo: quando fiz o
Canto para Timor Leste para Orquestra de Cordas, que tinha um tema
bastante intenso e que me cansou muito escrever, logo a seguir fiz uma peça
chamada Sundance Sequence, que não tem nada a ver com a anterior
– nem na ideia, nem no tema, nem no resultado estético final.
Fi-la, porque precisei de “limpar a onda”. Quando terminei o Canto
para Timor, precisei de fazer uma coisa que fosse muito contrastante,
que estivesse nos antípodas daquilo que tinha feito anteriormente.
Mas isso são casos pontuais. Talvez o tenha feito mais por questões
físicas do que estéticas.
Ficou uma espécie de obra isolada no teu catálogo...
Essa obra tem a característica de o texto e de o programa que está
por trás ser intencionalmente humorístico. Na altura, era também
um tubo de ensaio para um projecto de uma ópera infantil. Portanto,
numa primeira leitura, aquilo é uma obra provocatória. Numa
segunda leitura, era também um trabalho de preparação
para um projecto de ópera infantil, que era para ter sido escrita no
ano seguinte, mas que depois não se consumou.
Independentemente do aspecto a que estás a fazer referência –
que é o humor – enquanto tal, não voltei a trabalhar noutra
peça assim tão desconcertante. Há bastantes aspectos
que estão nesta obra que depois voltaram a surgir nas obras seguintes.
Embora existam diferenças ao nível do ritmo, da mancha e dos
campos harmónicos que se encadeiam uns nos outros, há alguns
pontos de contacto com compositores como Frank Zappa – não só
pelo humor, mas também por questões harmónicas e melódicas.
Até na peça para orquestra Round Time, há coisas
que têm influências de música vinda de um área completamente
diferente, como é o caso de Zappa.
Portanto, acho que o Sundance Sequence não é assim
uma coisa tão marginal quanto isso e foi também um embrião
para outras coisas que aconteceram a seguir. Nada me garante que, de um dia
para outro, não me apeteça fazer outra vez uma peça desconcertante.
Mas aquela foi importante, porque estava em Londres quando a escrevi, e surge
num contexto de uma encomenda para um concurso de jovens compositores.
Nessa altura, eu sentia que o meio musical, e aquilo que surge neste tipo
de concertos, está, de certa forma, estagnado num determinado tipo
de soluções composicionais. Não quero com isso estar
aqui a fazer um discurso crítico, mas, na realidade, e pondo-me do
lado de fora, principalmente depois de ter ido para Londres, é a essa
conclusão que chego. Quando nos afastamos do nosso meio, de certa forma
ficamos com um sentido mais crítico, talvez porque estamos mais afastados.
Senti que precisava de compor uma peça que chocalhasse um bocadinho,
que não fosse uma peça convencional ou tradicional, que é
normalmente o que se espera de um jovem compositor. Aquela atitude que eu
acho que apresento no Sundance Sequence, penso que não trouxe
nada de novo, tendo em conta aquilo que eu já conhecia de outras coisas
estrangeiras, nomeadamente de Inglaterra.
Se calhar podemos falar de forma mais pormenorizada da linguagem musical
da tua última obra para orquestra. Esta obra pode ser também
um exemplo da importância que a literatura tem para ti?
Neste caso particular, a ideia de Round Time (Tempo Redondo) –
apesar do título ser retirado do título de um livro –
não é, de forma nenhuma, influenciada pelo conteúdo do
livro propriamente dito. Penso que, muitas vezes, vou buscar ideias a textos
poéticos, mas depois a música em si não tem uma relação
directa com os textos. Posso dar um ou dois exemplos: o caso do Verde
Secreto, para piano e saxofone, surge do poema de Alexandre O’Neill
em que ele diz: “A meu ver eu tenho verde secreto nos teus olhos”.
A minha peça não tem nada a ver com esse texto, mas eu gostei
muito da imagem que ele evoca. O que eu fiz foi descontextualizar o verde
secreto dos olhos da personagem a quem O’Neill se refere. Noutro caso,
no A Way to Silence, peguei num título de um livro de poemas
de Yvette Centeno – o livro chama-se Entre Silêncios
– e fiz uma obra que não depende em nada do texto dela, mas exploro
a ideia do silêncio e as coisas que acontecem entre os silêncios.
São eventos musicais que acontecem entre silêncios, a partir
do título sugerido pela peça de Yvette.
Voltando a Round Time, o que me atraiu bastante foi a ideia de um
tempo redondo, de uma circularidade no tempo – que tem muito a ver com
o meu fascínio por culturas orientais. Eu não digo que tenha
um conhecimento profundo, ou que tenha uma forma de abordar pensamentos filosóficos
através do Oriente, porque não tenho, mas fascina-me uma certa
serenidade e tranquilidade que os orientais têm. Esta noção
de ciclos que se repetem, e a nossa passagem efémera dentro destes
ciclos, porque tudo é contínuo – esse tipo de posicionamento
contemplativo, que tem a ver com os fenómenos da natureza, dos ciclos
que se renovam, etc. – tudo isso me fascina. Fascina-me visualmente
e, se quisermos, até caligraficamente. Há toda uma série
de elementos visuais em culturas como a japonesa, a chinesa, etc, que me atraem
bastante. Quando pego no título Tempo Redondo - Round Time
- estou, de facto, a fazer uma peça cheia de processos circulares,
em que os pontos de partida voltam outra vez a ser recuperados e passam a
ser pontos de chegada. Portanto, aquilo que despoleta o fenómeno é
também a consequência do processo, no sentido em que ponho algo
em movimento a partir de um determinado ponto – que é, ao mesmo
tempo, ciclicamente também o ponto de chegada, e que funciona como
um ponto de referência. Como ouvintes, nós não temos a
percepção que eles lá estão. Eles vão funcionar,
nem que seja subliminarmente como alicerces, como andaimes, como a estrutura
que ajuda a que o discurso tenha essas chegadas. Ao mesmo tempo, é
uma noção de tempo longo, de contínuo. Por exemplo, tenho
uma outra peça, Ends Meet, para marimba e quarteto de cordas,
em que a ideia é que o último andamento comece com um ligeiro
crescendo partindo de um pianissimo, como se de repente a música já
lá estivesse. Ou seja, esse andamento nem sequer tem começo
– de repente, a música já lá está. Portanto,
isso é uma ideia que me fascina, a música poder começar
como se já lá estivesse. Nessa peça, a minha relação
mais recente com o Oriente está lá também a nível
do timbre e da cor. Sinto-me, de facto, fascinado por isso – inclusivamente,
o poder trabalhar com uma orquestra é para mim uma grande felicidade,
porque é, talvez, o meu “instrumento” favorito.
A orquestração é talvez dos aspectos que mais prazer
me dá. A composição é extremamente cansativa,
é algo de aborrecido, e que eu evito ao máximo até à
altura em que o prazo de entrega da partitura da peça se começa
a aproximar perigosamente. Depois de já lá estar dentro, não
há saída possível, e, ao ter de resolver o problema,
aquilo que me entretém bastante é realmente a cor. Nisso acho
que o Oriente tem lições. Aliás, o Debussy já
dizia na sala da Exposição Universal de Paris que a música
do gamelão punha completamente a ridículo a percussão
ocidental.
E agora, qual é o problema que não conseguiste evitar?
Estás a trabalhar em quê agora?
Curiosamente, numa peça onde a fonte não tem nada a ver com
o Oriente. Trata-se de uma encomenda da Culturgest, em que vou pegar, por
solicitação do próprio projecto, num bailado que Jean
Cocteau idealizou, Le Jeune Homme et la Mort. Vai ser um espectáculo
de homenagem a Jean Cocteau. Nesse espectáculo, decidi utilizar cinco
percussionistas e um cantor-narrador barítono, que vai, de certa forma,
contar a acção do bailado – portanto, vai ser um bailado
imaginário, não coreografado. A própria opção
pela percussão tem a ver com o facto deste ser talvez o naipe mais
coreográfico de todos. O que me fascina precisamente nesse naipe é
encontrar timbres, ambientes e, se quisermos, paisagens sonoras que me deixam
perfeitamente excitado, como uma criança a mexer em brinquedos. Portanto,
aquilo que eu vou fazer ao nível da percussão é muito
influenciado por esta forma de sentir o timbre e que, neste momento em que
falamos, deve muito ao naipe da percussão.
Disseste várias coisas que me despertaram dúvidas. Uma
delas é a questão da peça começar como se a música
já lá estivesse. Isso tem algo a ver com a criação
no espaço, como se fosse uma exposição – vais ver
umas pinturas e elas já lá estão, não é?
Isso é importante para ti? Por outro lado, falaste várias vezes
em discurso. Gostaria de explorar isso, porque falaste nos vários elementos
do discurso, mais concretamente no que diz respeito à visualidade,
como forma de criar aquilo que envolve o ouvinte – mais uma vez, referimo-nos
ao espaço, à paisagem. E depois, uma questão de pormenor
– o lado coreográfico, que já foi explorado numa peça
prévia, Mind the Gap.
Mind the Gap, por exemplo, é uma peça para marimba
solo em que exploro exactamente a coreografia do intérprete na marimba,
porque o primeiro andamento chama-se Keep Left, e é para ser
tocado todo no lado esquerdo da marimba. O último andamento é
Keep Right, e é para ser todo tocado no lado direito da marimba.
Next Train Approaching, o segundo andamento, é muito visual.
como se fosse uma viagem nocturna de comboio, e o terceiro andamento é
Currently Out of Order, que é bastante caótico. Aí,
o intérprete anda de um lado para outro da marimba de uma forma quase
desordenada e entramos numa questão do espaço físico,
que só é possível perceber através da observação.
Justamente, aí é mesmo explícito – o intérprete
está a intervir no espaço como uma escultura, ou…
Absolutamente.
E continua a ter este elemento consciente. Digamos que, para ti, é
uma coisa bastante importante.
Claro que é. A outra é a dimensão no espaço do
tempo, e isso talvez nos leve ao discurso, como dizias. É também
bastante importante no sentido em que podemos separar dois níveis.
Um é o facto de realmente termos um discurso que se situa no tempo,
que ocupa um espaço no tempo, e ao qual não conseguimos fugir,
porque essa é a essência do próprio discurso musical.
Mas também no sentido em que hoje os compositores têm a possibilidade
de integrar no seu discurso espaços e tempos diferentes, quer sejam
mais ou menos contemporâneos do seu próprio espaço ou
do seu próprio tempo.
Por exemplo, nessa peça, Round Time, tenho claras referências
a espaços geográficos onde nunca estive, mas que, por causa
do tempo em que vivo hoje, me entram com toda a facilidade pelos olhos –
através da televisão, da rádio, dos registos fonográficos,
da internet ou através de outros meios. Isto ao nível de um
certo lado mais urbano, que eu penso que por vezes existe na minha música.
Mais uma vez, isso tem a ver com o espaço e o tempo em que vivo, que
é um tempo em que na televisão se anunciam coisas como o primeiro
ser humano clonado estar para nascer. Portanto, isso acaba também por
ter um reflexo directo no discurso musical, inclusivamente, de uma certa intranquilidade,
agitação ou até mesmo de uma dimensão mecânica.
Este é o tempo em que vivo. Embora goste muito do campo, não
é lá que vivo, Gosto muito da contemplação da
paisagem, mas tenho uma forma de viver que é 98% urbana. Portanto,
isso tem uma consequência imediata naquilo que eu produzo.
Voltando ainda à questão do tempo poder
ser mais ou menos contemporâneo – a possibilidade de se recuperar
aspectos ou inclusivamente tempos, que já não sejam o meu –
isso já é mais delicado. Obviamente que é preciso ter
bastante cuidado, porque não me interessa absolutamente nada recuperar
elementos de tempos que não sejam o meu, a menos que eu lhes possa
injectar qualquer elemento subversivo e que lhe dê um cunho do meu tempo
– algo que faça com que aquilo só pudesse ter sido feito
na última década do século que passou ou agora na primeira
década deste século. Não me interessa absolutamente nada
recuperar coisas do passado numa atitude de citação ou mero
pastiche sem que eu consiga de alguma forma reinventar isso, ou recontextualizar
isso à luz de um tempo presente, que é o meu.
A questão da comunicação com o público
é algo que condiciona o teu trabalho de composição?
Não me parece que seja difícil perceber aquilo que faço.
Contudo, não me interessa a comunicação a todo o custo,
também é preciso ver sempre os prós e os contras. Mas,
dentro dessa perspectiva de comunicação, penso que a solução
que eu encontrei é agora uma dimensão extremamente narrativa.
As pessoas são assim guiadas através de uma narrativa musical
que poderá ter ou não qualquer elemento programático.
Por exemplo, na peça Invenção sobre Paisagem,
chego a dizer nas notas de programa que procuro que a audição
crie uma percepção de um espaço visual imaginado e que
prentendo que esse mesmo espaço seja reinventado ou recriado através
da audição. Portanto, tento que a música seja sugestiva
o suficiente para estimular essa relação, essa comunicação,
para que haja uma participação mais criativa do ponto de vista
da escuta. Mas não gosto de sobrecarregar aquilo que faço com
elementos demasiadamente definidos, ao ponto de condicionar demasiadamente
essa percepção que eu tento que se estabeleça.
Mas também é criativa, como disseste?
Exactamente. É como criar uma cumplicidade. É engraçado,
porque depois todos nós temos essa experiência de várias
pessoas dizerem que encontram isto e aquilo e muitas vezes encontram coisas
que nunca me passaram pela cabeça que pudessem lá estar, mas
para mim é extremamente divertido observar isso. Muitas das vezes é
perfeitamente pertinente, apesar de isso me ser relativamente indiferente.
O António Pinho Vargas colocou justamente a questão
do processo – ele concebe a composição como um processo
no qual se insere. Depois, vão aparecendo objectos, que ele escolhe
em detrimento de outros. Falaste da tua preocupação, já
na Escola Superior de Música, com a construção de um
discurso – o lado narrativo das tuas obras é uma parte do discurso,
depois tens o lado do material. Mas tu também não gostas de
falar de receitas de cozinha… Como é que cozinhas? É que
há compositores que detestam falar disso.
Não, eu não detesto, às vezes tenho é uma péssima
memória. Não sei se é uma defesa qualquer que eu criei,
mas, normalmente, quando acabo uma peça, uma semana depois já
estou relativamente esquecido do que fiz. A barra dupla tem a capacidade de
eliminar o próprio conhecimento do meu trabalho. Não é
por má vontade, ou por qualquer tipo de antipatia, mas às vezes
fazem-me perguntas às quais eu já não sei responder.
Tirando isso, e vendo de uma forma mais geral, penso que a minha escolha dos
materiais se faz sempre a partir da escuta. Faço frequentemente as
minhas peças num gesto de continuidade. São raríssimos
os casos em que comecei uma peça a partir do meio e depois a reordenei,
quase sempre comecei no primeiro compasso e terminei no último. Na
maioria das situações, tenho uma ideia, que é a força
motora da peça, mas nunca tenho uma estrutura pré-composta ao
ponto de não me poder libertar dessa ideia prévia e de ir parar
a um sítio completamente diferente. Portanto, é, ao fim e ao
cabo, como se eu apanhasse um autocarro sem saber muito bem qual é
o destino… Depois, se a meio do caminho não gostar do sítio
onde estou, saio e apanho outro autocarro.
Mas é diferente numa peça em termos de objectos, ou…
Sim, mas acho que a ideia de objectos em música é uma ideia
que de certa forma se banalizou, mas que sempre esteve presente. Quero dizer,
acho que sim, que muita da música que tenho escrito parte de materiais
iniciais que são o embrião daquilo que vai ser o resto da obra.
Isso foi uma das coisas que eu realmente quis desenvolver quando fui estudar
composição. Interessa-me muito a ideia de uma música
que no começo tem a potência para aquilo que vai acontecer a
seguir, como se uma forma sinóptica estivesse ali para implodir o gesto
musical. Quando eu disse que os meus materiais partem muito da escuta, se
calhar vou cair na resposta que outras pessoas já deram. Vou procurar
campos harmónicos e ideias melódicas, ou parto apenas da escuta
de um timbre. Há quem pense: “vais escrever um acorde, vais escolher
uma melodia” – não, isso é uma coisa perfeitamente
distante daquilo que é o processo. Às vezes são cores.
Poderei trabalhar um tipo de intervalo combinado com outro, ou achar que um
certo timbre é fabuloso para conseguir a partir dali desenvolver uma
ideia musical. Mas tudo isto é experimentado, dentro da medida do possível,
através da escuta. Por exemplo, ainda ontem – falámos
há pouco da peça que vou fazer com percussão –
estive no Porto com alguns músicos do Drumming, a experimentar coisas
nos instrumentos de percussão, para agora poder construir um edifício
a partir dessas ideias que surgiram. Se calhar, só num esforço
de abstracção solitária é que conseguiria obter
esses resultados. Isto é válido para o timbre, para uma ideia
rítmica, para uma ideia melódica ou para uma ideia de um campo
harmónico. Mas há sempre uma grande experimentação,
e compor – isto também é uma banalidade – é
também eliminar. Penso que a parte mais difícil é ter
coragem de deitar fora aquilo que nós achamos que são boas ideias,
mas temos de nos restringir ao que é essencial, ou seja, ao discurso
que queremos construir. Depois, há sempre o compromisso, ou, se quisermos,
um equilíbrio entre o tactear e depois organizar e ordenar as coisas
no papel. Para isso, é absolutamente essencial a escrita. Essa é
a razão pela qual eu nunca poderia ser um músico de jazz, porque
não tenho a capacidade de desenvolver a minha composição
sem passar por essa espécie de esforço de racionalização
e de organização que é a escrita.