Entrevista a João Rafael / Interview with João Rafael
2004/Aug/19
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No que diz respeito à minha formação, há muitos elementos
variados que foram importantes para mim. Por um lado, no que diz respeito à
minha formação estritamente musical, no início é uma formação autodidacta,
porque eu só comecei a estudar no conservatório com 19 anos, quando fui para
Lisboa, e também comecei a estudar paralelamente engenharia electrónica. Até aí
tive durante um ano ou dois – na idade de 12, 13 anos – aulas de piano com uma
professora particular e depois continuei efectivamente como auto-didacta, só
retomando os estudo a sério quando fui para o conservatório. A partir daí tive
uma formação mais normal, mais académica, se bem que bastante comprimida no
tempo, porque como já tinha um certo background não comecei no conservatório do 0
e comprimi – como aconteceu com muita gente -, obviamente. Paralelamente a
isso, para além dos estudos de engenharia electrónica tive montes de
actividades e tudo foi, de algum modo, importante. Por exemplo, joguei muito
xadrez, comecei também a fazer pintura quando tinha 11 anos, mais ou menos,
porque o meu pai também pintava, pintura a óleo. Quando estive em Lisboa fiz
também muita coisa, desde teatro - não só trabalhei como acompanhador na Escola
Superior de Teatro, no Conservatório, como também fiz mesmo teatro – aliás já
tinha começado antes a fazer teatro – num grupo de teatro amador durante vários
anos. Toquei também num grupo de música rock, frequentei aulas na Escola de
Jazz do Hot Club, portanto foi uma formação muito, muito variada. Tive também
,no domínio do ensino, experiências variadas, ensinei em vários sítios
diferentes ao mesmo tempo e tudo isso contribuiu para uma formação muito mista.
Primeiro, quando terminei o curso no Conservatório, fui para
Paris onde estive durante 3 anos a trabalhar com o Emmanuel Nunes e a estudar
com ele, portanto um pouco na Alemanha um pouco em Paris, e depois é que fui
para Freiburg onde estive a estudar na escola, no Instituto de Música
Contemporânea.
Método de trabalho e processo de composição
O facto, efectivamente, de eu ter um catálogo de obras
relativamente reduzido penso que se deve, sobretudo, ao facto de eu precisar de
muito tempo antes de começar a escrever uma obra. Muito tempo de preparação –
não vou dizer só de reflexão mas também de preparação de material, de anotar
ideias, desenvolver coisas. Eu normalmente demoro muito tempo antes de começar
a escrever a partitura. É claro que, mesmo que seja o caso da música
electrónica, uma pessoa tem que começar a escrever, de algum modo há um momento
que é o início da partitura e isso é um processo que normalmente, em mim
,demora muito tempo. E na maior parte das vezes eu desenvolvo até muito
material que depois não chego a utilizar. Portanto, quando chega ao momento de
concretizar as coisas na partitura e de começar a concretizar a obra mesmo,
acabo por ter que fazer uma grande redução e escolha entre tudo o que
desenvolvi até aí. E depois o processo de escrita - que sempre é minimamente
longo porque uma peça para orquestra, às vezes até mesmo para um ensemble,
acaba por demorar muito tempo a escrever - página a página a compor -, mas,
comparativamente, esse processo é muito mais rápido do que tudo o que esteve
antes de começar a peça em si, a sua concretização.
O processo de composição depende de cada obra e finalmente
acaba por ser uma mistura de muita coisa. Tanto ideias um pouco mais globais
podem aparecer primeiro - mas vão sempre aparecendo ideias sucessivamente, umas
vêm mais do material, mais do concreto, do específico musical e às vezes também
há outras ideias de um modo mais global. Mas em cada peça o processo é um
bocadinho diferente. Depende de cada peça e, efectivamente, de um modo geral o
processo começa mais talvez do material, se bem que também haja outro tipo de
ideias. O meu processo de composição não é como, por exemplo, no Nono – para dar
agora só um exemplo. Ele esboça logo a dramaturgia global da peça, faz logo um
esquema global, isto é assim, depois acontece assado, mais ou menos assim e
depois começa a realizar cada uma das coisas. Portanto a forma global da peça –
se bem que eu muitas vezes já tenho ideias um pouco mais concretas sobre o
carácter da peça, sobre a dramaturgia – se isto não for interpretado como
dramatismo talvez – acaba por ser sempre o processo de realização, e a forma
concreta que a peça vai ter acaba por ser um resultado do processo de
realização, deste vai-e-vem entre efectivamente o que se está a fazer e o que
se está a ver que resulta.
Composição indissociável da instrumentação
De
um modo geral, o ponto de partida para a composição de uma peça implica,
efectivamente, uma relação relativamente íntima entre a instrumentação – os
instrumentos para os quais vai ser escrito e a própria ideia da peça - não só a
ideia mais global como depois a própria ideia do material. Isso é válido para
quase todas as minhas peças. Há muitos exemplos - obviamente o Occasus, que tem uma formação relativamente convencional, em
que temos violino/violoncelo, flauta/clarinete (obviamente a flauta também toca
flauta-baixo e o clarinete também toca clarinete-baixo, não é assim tão
simples) e, para além disso, o piano completamente preparado, uma marimba,
bongos e uma guitarra. Todos os outros instrumentos, criei para eles um certo
tipo de modos de jogo, mas sobretudo a maneira como compus a peça destinava-se
a criar um som especial para a peça toda, por um lado utilizando o piano
preparado (que também, segundo a preparação do piano, se obtinham sons que se
aproximavam dos outros modos de tocar os outros instrumentos, isso deu um som
muito especial à peça) – pode-se ouvir isso – e isso fazia parte da ideia
inicial da peça. No caso do duo para eufónio e clarinete-baixo a mesma coisa,
porque ambos os instrumentos utilizam durante praticamente toda a peça – enfim
salvo raras excepções – sempre voz e som, cantado, dentro do instrumento. Som
do instrumento e som cantado que cria aquela mistura, aquele timbre muito
especial, quase de modulação em anel. Portanto o processo de composição da peça
teve a ver com isso, isso foi logo o ponto de partida. No caso do quarteto de
cordas - apesar de ser para um quarteto de cordas, que é uma formação à partida
convencional - a ideia da peça era
justamente escrever uma peça para cordas (neste caso quarteto de cordas, onde
eu utilizaria só os sons harmónicos naturais – em que também não fui até muito
longe, fui só até ao harmónico 6, harmónico de 3ª menor) e cordas soltas, e
cada um dos instrumentos tinha também um pouco de scordatura. Portanto a coisa
é indissociável, uma coisa da outra.
É
claro que, por exemplo, no caso da Ode, acabo por dar um carácter
um bocadinho pessoal à orquestra, não só na maneira como escrevo – que já é um
elemento importantíssimo – mas também relativamente à maneira como disponho os
instrumentos e como escolho os instrumentos para a orquestra. E a orquestra
quanto ao efectivo na pessoa, há um certo standard mas no meu caso, por
exemplo, eu tinha 4 clarinetes e 4 trompas – fora do normal porque tudo o resto
dos sopros era praticamente a 2 – o que dá logo um carácter especial. Depois
também tem a ver como a peça foi escrita, relativamente a esses 4 clarinetes e
às 4 trompas, e, no que diz respeito às cordas, que também é um dos aspectos
interessantes hoje em dia na escrita para orquestra porque, se considerarmos a
parte dos sopros, tanto madeiras como metais, numa orquestra que não é muito
grande, nos sopros temos praticamente a mesma coisa que temos num grande
ensemble, portanto não há, à partida, do ponto de vista do peso da
instrumentação grande diferença entre grande orquestra e grande ensemble.
Grande
diferenciação processa-se nas cordas, em que num grande ensemble temos 3
violinos, ou 4, ou 2, duas ou três violas, e na orquestra temos 12 violinos,
enfim 12 + 12 por exemplo. Portanto é no tratamento das cordas que se manifesta
a grande diferença entre escrita para grande ensemble e escrita para orquestra.
E no meu caso o que eu fiz foi, não só separar os grupos de cordas um pouco no
espaço, com organizei as cordas por grupos de 4, por exemplo, para 12 violinos
tinha 3 grupos de 4 e separei-os no espaço, portanto não pus os 4 + 4 + 4
juntos, e a mesma coisa, para as violas, os violoncelos, etc,
Mesmo
Transitions, que é uma peça, pode-se dizer,
para clarinete solo, a gente sempre pode adaptar para mais 3 ou 4 ou 5
instrumentos diferentes. Mas eu quando compus a peça já foi especificamente a
pensar no clarinete, no som do clarinete, o próprio título da peça Transitions que pode ser entendido de muitas
maneiras diferentes, tem, entre outros significados, também a ver com a maneira como no clarinete se faz
a transição de uma nota para a outra e que tem um som especificamente próprio
ao clarinete e diferente da flauta ou do oboé. Isso possivelmente terá a ver
com o ponto de vista acústico, do facto do clarinete só ter os harmónicos
ímpares, enfim, sobretudo, e de ser um tubo que se comporta como tubo fechado,
mas que para mim tinha a ver com o tipo de som. Eu se tivesse pensado escrever
para oboé não poderia ter escrito assim, não vou dizer só do ponto de vista
técnico, das dedilhações e tudo isso, mas do ponto de vista puramente sonoro. É
claro que eu também fiz a versão para clarinete baixo, mas clarinete baixo
ainda é um clarinete e gostaria de fazer uma versão também para saxofone que é
um instrumento, apesar de tudo, um bocadinho próximo, mas de qualquer maneira a
concepção foi mesmo para clarinete.
Portanto o elemento da reiteração de elementos – quer seja
de altura, rítmicos ou mais complexos reconhecíveis – é uma coisa que, para
mim, tem muita importância se bem que nem em todas as peças isso apareça como
elemento mais importante, mas em muitas peças sim. Para mim a reiteração não
significa a repetição mas sim a recorrência de certo tipo de elementos, e isso
é uma coisa que dá forma ao discurso musical. Na música clássica é a mesma
coisa - não só os motivos como também as harmonias, o desenvolvimento mais
rápido ou mais lento do discurso musical não tem só a ver com os ritmos, não
tem só a ver o tempo e os acontecimentos que estão a
acontecer. Se uma pessoa está um compasso na tónica ou se está 10 compassos na
tónica e depois muda para a dominante 2 compassos e para sub-dominante… - o
chamado ritmo harmónico - isso também dá uma forma ao desenvolvimento temporal
mesmo que não sejam ritmos, portanto há muitos parâmetros que já na música
clássica também têm obviamente a ver com formação do discurso musical. Isso na
música contemporânea continua a ser obviamente importante. Não é só o débito
rápido de ritmos e de notas, ou débito lento, que muda a velocidade do
discurso. Pode até criar situações paradoxais em que resulta o contrário e a
recorrência de elementos mais ou menos reconhecíveis permite efectivamente
muita importância. E a própria variação desse tipo de recorrência - mais
próxima, mais afastada, muito mais repetição, nenhuma repetição - consoante as peças, isso pode ser um
dos elementos principais que dá forma ao desenvolvimento do discurso temporal
da peça. Por exemplo, no Octeto isso é uma coisa que está dentro da
construção da peça e, no Octeto, há muito pouco reconhecimento de coisas
que voltam a acontecer, ou de aparecimento de notas ou de timbres. Mas de um
modo um bocadinho mais global, há sempre partes na peça em que há muito mais recorrência
e repetição de elementos, e partes em que há muito menos, em que há um
renovamento do material ou desenvolvimento permanente do material - há portanto
um pouco um jogo com isso. Noutras peças o jogo é sempre feito de uma maneira
diferente, por exemplo na Transitions, na primeira parte da peça há, pode-se
dizer até a repetição de uma melodia, que são 24 notas mas que não são 12 + 12.
Essa própria melodia já tem uma construção em que há alturas que aparecem mais
vezes, alturas que aparecem menos vezes, mas isso depende da maneira como a
melodia está construída, e essa melodia aparece sucessivamente com formas muito
diferentes mas que tem a ver com os processos de desenvolvimento de outros
parâmetros, como a própria posição das notas no registo, como os próprios
elementos rítmicos que têm outro tipo de desenvolvimento e portanto há um
explorar a fundo, ou quase até ao máximo possível, de um certo tipo de dimensão
que, neste caso, é a repetição e a reformulação da melodia (que não se ouve mas
se vir na partitura a gente pode ver onde é que isso acontece). Partindo do
princípio que já se ouviu muitas vezes esta melodia, – mesmo quando as notas
saltam muito no registo, de algum modo passado um certo tempo reconhece-se que
há ali qualquer coisa que é semelhante–, na segunda parte da peça passei a
fazer um desenvolvimento doutros elementos, doutras características da melodia,
que não era as alturas mas sim cada figura de intervalos. Se uma pessoas tinha
uma segunda menor, terceira maior, segunda menor, passei a considerar que isso
é que era importante, que isso, após já se ter ouvido tudo o que veio antes, já
era um elemento que de algum modo tinha uma função ou tinha uma certa força, e
comecei então a desenvolver estes pequenos grupos de figuras intervalares,
independentemente das alturas. Portanto, em cada parte de peça há uma dimensão
diferente que é desenvolvida, mas que tem sempre a ver depois com a recorrência
desses elementos.
Como, por exemplo, na própria construção da melodia em que
havia o que eu chamei os grupos simétricos – portanto grupos de intervalos,
como neste caso segunda menor, terceira maior, segunda menor, portanto 4 notas
3 intervalos – que reaparecia 2 ou 3 ou 4 vezes ao longo desta melodia de 24
notas, com outras alturas diferentes. Portanto isso já tem a ver também, apesar
de já serem outras alturas - na melodia de 24 notas há uma recorrência de cada
altura, de cada nota, e ao mesmo tempo uma recorrência deste modelo intervalar
simétrico, que já não tem nada a ver com as alturas, que aparece aqui, depois
ali e depois ali. Várias figuras aparecem afastadas, mais próximas… portanto
tudo isso é importante insinuar, na construção musical e no próprio
dodecafonismo, no próprio serialismo -
a construção da peça, portanto as formas, as estruturas que estão dentro
da série sempre foram importantes.
O problema da percepção é importante, mas é sempre uma faca
de 2 gumes. É sempre um problema um bocadinho delicado e frágil, a maneira como
se considera a peça e o modo como ela vai ser percepcionada pelo ouvinte. Como
se sabe é um problema muito delicado porque se pode chegar facilmente aos
domínios da música ligeira, em que se fazem coisas de uma certa dimensão só
para serem facilmente percepcionadas pelo público, ou aceites pelo público. De
qualquer maneira, uma peça tem a ver com determinados elementos musicais, que
existem, que vivem e que se desenvolvem de determinado tipo de modo. E o
desenvolvimento global do discurso, de um certo modo, tem a ver com a maneira como
se dá a reconhecer mais ou menos esses elementos, portanto há momentos – isso é
a mesma coisa que na música clássica, por exemplo Wagner ou Mahler – de uma
densidade tal, que uma pessoa já só é impressionada pelo todo, mas se formos
ver aquilo já é uma mistura de muitos elementos e da sobreposição da interacção
de vários elementos. No caso do Wagner - leitmotiv ,e depois há
outros momentos em que há muito mais clareza, e em que se percebe melhor quais
são os outros elementos.
No caso da música contemporânea é um pouco mais complexo, a
maior parte das vezes, mas acaba por haver esse mesmo tipo de jogo de
reconhecimento ou não-reconhecimento. Por exemplo, no caso da Transitions do ponto
de vista rítmico, há uma sobreposição de 2 desenvolvimentos rítmicos que são
ambos baseados num género de retardando rítmico - isto tinha a ver com a concepção da peça e com o carácter
da peça em si, portanto não é só
uma questão de escrever proporções numéricas e depois aplicar – há portanto
retardantes rítmicos que se repetem, e desfasados uns dos outros. E é óbvio
que, se uma pessoa ouve um, uma pessoa reconhece, mas quando eles se começam a
sobrepor a pessoa não reconhece mas há uma emanência e, de algum modo, isso
sente-se, às vezes mais outras vezes menos, - depende também da maneira como é realizado - ,mas sente-se
sempre esta irrupção de ritmos que depois vão ralentando.
Mesmo quando estão sobrepostos e a duração longa, já não se
vai ver como longa porque entretanto apareceu mais qualquer coisa pelo meio,
mas isso tem a ver com a peça e ouve-se também.
Tratamento e composição do timbre
No caso das peças mistas, com instrumentos e electrónica,
sobretudo o que me interessa, neste momento, são os elementos da espacialização
sonora e também de tratamento de timbre, se bem que são elementos muito
delicados como se sabe, e foi na realidade o que eu utilizei até agora. Ainda
não utilizei muito a fundo processos muito sofisticados de tratamento de timbre
ou de processamento complexo em termos do timbre, do mesmo modo que, nas peças
puramente electrónicas, ainda não cheguei ao ponto de trabalhar a síntese
sonora a sério. Por exemplo, o Ombres Croisées que é uma peça
puramente electrónica, e que se pode dizer que tem um timbre muito especial, -
a realidade é que todos os parâmetros musicais estão interligados uns com os
outros e, no caso do Ombres Croisées é a mesma coisa. Apesar de eu não ter
trabalhado a síntese do ponto de vista clássico, pode-se dizer, com programas
de síntese como o C-Sound, ou qualquer outro em que uma pessoa trabalha mesmo
os espectros, só para trabalhar e modelar o timbre, a realidade é que o timbre
especial da peça vem da maneira como ela está construída. Os próprios timbres,
obviamente que também têm uma certa construção de elementos parciais, que têm a
ver com a própria estrutura da peça aos outros níveis - ao nível rítmico, ao
nível melódico, ao nível espacial mesmo. Portanto, por um lado, o próprio
tratamento de timbre, que não é muito avançado no caso do Ombres Croisées, é associado
sobretudo ao tratamento das alturas e às estruturas de alturas, que são
organização de escalas micro-interválicas, portanto não temperadas - quase que
se poderia falar em modos, mas enfim, é mais complexo do que isso - e a maneira
como isso é utilizado é que dá esse timbre muito especial à peça. Para mim, de
uma maneira geral, não considero que para atingir uma dimensão especial dentro
de um parâmetro se possa trabalhar só esse parâmetro para chegar aí. Como no
caso do Occasus, que
também tem um timbre e uma maneira de tocar muito especial, para além de haver
um certo tratamento de timbre - não é só o tratamento de timbre que lhe dá isso
- é a maneira como eu escrevi, inter-relacionando os vários instrumentos do
ponto de vista de altura e do ritmo, é isso depois que dá o timbre global.
Portanto o resultado global de uma peça, dentro de um determinado parâmetro, é
o resultado da maneira de construir vários parâmetros.
Por exemplo à L’air de l’air, fita também, portanto uma peça
puramente electrónica - novamente é um bocadinho difícil estar a descrever o
que é o som desta peça - mas tem efectivamente uma sonoridade muito especial,
um modo de vida puramente acústica muito especial e, do ponto de vista da
electrónica, tem processos tecnicamente simples. O que eu queria dizer com tudo
isto é que não é o facto de ser simples ou complexo que faz chegar resultados
simples ou complexos, depende da maneira como se trabalha. Por exemplo, no caso
do L’air de
l’air poder-se-ia dizer que os processos utilizados são processos
ainda dos anos 50, que praticamente o Várese podia ter escrito essa peça – com
muito trabalho, mas podia – porque, apesar de ter sido escrita nos anos 90 ou
fim dos anos 80, não tem qualquer tipo de utilização de novos programas de
tratamento ou síntese sonora. Neste caso, utiliza exclusivamente sons gravados,
que eu próprio gravei, sons de instrumentos de percussão e sons um pouco
inabituais. E, através da transposição pura, – como no caso de uma fita
magnética, em que a transposição implica mudança no tempo -, a maneira como eu
construí a peça, em termos de organização das durações e da organização de
alturas, provocou que houvesse uma relação muito especial entre cada som e a
maneira como ele existe, no tempo, porque o que eu queria era utilizar sons que
tivessem vida – por assim dizer – natural. Quando uma pessoa toca um som, o
som, desde que começa até que
acaba, é de uma maneira natural (se isso se pode dizer, não quero dizer
ecológica mas pronto, é um processo que não é artificial) e se eu transponho
esse som para o grave vou ter uma duração maior, vou ter uma frequência mais
grave, mas a maneira como esse som existe continua a ser – numa visão
microscópica do som – uma existência como o som é mesmo. Foi isso que eu quis
fazer nessa peça, e todos os sons que estão lá não têm qualquer outro tipo de
manipulação além desta.
Espacialização
O aspecto da espacialização é mais um aspecto que fica
intimamente ligado a cada peça. Cada peça tem uma maneira de trabalhar também o
aspecto espacial dentro das várias peças que utilizam essa dimensão.
Efectivamente, há os dois elementos a distinguir - a espacialização com electrónica, pura ou mista, e a
espacialização só puramente instrumental. Obviamente, pelo seu resultado são
mundos completamente diferentes. Por outro lado, também o tipo de escrita
relativamente ao espaço permite,
ou exige, um tratamento virtuosístico maior ou menor. Portanto, obviamente com
electrónica permite, como se sabe, muito mais. No caso da utilização de uma
disposição espacial dos instrumentos acústicos, permite muito menos, depende do
espaço e depende de outros parâmetros. Isso condiciona logo a escrita musical.
Quando a pessoa concebe a peça já tem que pensar para quê, não é só que essa
condicionante exterior condicione a escrita musical mas a peça já tem que ser
concebida para isso, obviamente. Isso tem que fazer parte da concepção.
No caso das peças com electrónica - por exemplo o caso do Ombres Croisées - tem um
tratamento espacial que é completamente diferente do Schattenspiel, por exemplo, ou
do L’air de
l’air. Por exemplo, no caso do Ombres Croisées é
puramente pontual, em cada um dos 8 pontos dos 8 altifalantes, que estão
colocados à volta do público, não há qualquer tratamento coerente de som, entre
um altifalante e outro. Cada um dos 8 pontos é completamente estanque e há uma
relação, muito intima, entre o material rítmico de alturas e micro-intervalar e
cada ponto no espaço. Isso ouve-se bem quando se ouve a peça no espaço,
portanto há uma relação muito íntima entre o material nas várias dimensões. No
caso do L’air
de l’air já é completamente diferente, e no caso do Schattenspiel também,
porque trata-se de espacialização dos instrumentos e as durações e a forma dos
movimentos está, digamos, construída - não é só uma questão puramente intuitiva
de fazer agora assim e depois fazer assado. Portanto há uma construção de tudo
isso.
No caso do Kreuzgang, obviamente que não escrevi para os
instrumentos - e por isso agora
vão para ali …- mas em cada
momento em que estive a escrever já sabia que os instrumentos, nesse momento,
estão aqui e ali. A composição tinha a ver justamente com o espaço, até porque
a parte mais importante do Kreuzgang é o ensemble, portanto os instrumentos
que estão à volta e não a orquestra.
Nalguns momentos, se calhar, o processo de espacialização é
um bocadinho mais intuitivo, noutras partes é mais construído e aí pode haver
processos muito diferentes ou de “movimento” – terá que ser lento, obviamente –
de sons no espaço, que pode estar relacionado a cada altura ou às harmonias,
aos timbres. Há todo um leque muito variado de processos de composição de
construção.
“Réitérations”
No que diz respeito à peça para piano, na realidade foi –
pode-se dizer – a primeira peça que eu compus. Nunca mais compus para piano
solo e neste momento também não saberia o que fazer para piano solo, pois como
se sabe, devido a toda a história, efectivamente é difícil – pelo menos eu
considero isso – escrever, hoje em dia, para piano. Na altura, apesar de tudo,
houve 2 coisas essenciais que me interessaram, por um lado – daí vem também o
nome da peça Réitérations – criar
um processo de desenvolvimento de alturas que estivesse de algum modo
relacionado com os processos seriais – só das alturas, não do resto – mas que
estivesse subvertido na sua própria construção digamos, na construção dos
elementos de base. Que já contivesse em si justamente o contrário daquilo que
são os princípios dodecafónicos ou seriais, que é o princípio da renovação e da
variação permanente. Por um lado eu utilizei um grupo de notas, um grupo de
alturas que já continha em si mesmo repetição - não eram 12 notas, eram por
exemplo 7, às vezes eram 5, às vezes eram 4, que já continham uma repetição
logo no interior desse grupo - e a repetição de uma das alturas e depois o
processo, como fui desenvolvendo e transpondo, criava ainda mais repetições.
Portanto não só não tinha um processo de renovação permanente, como tinha um
processo de reiteração muito próximas, em termos de alturas, e não só uma mais
uma e depois a próxima aparecia proximamente mas também sempre em contextos
diferentes. Havia, portanto, uma mistura de processos um pouco seriais no
desenvolvimento de alturas mas com um resultado que não tem nada a ver com o serialismo.
Essa foi uma das primeiras ideias essenciais para a
peça de piano, este tratamento das alturas. Queria, no desenrolar da peça, sempre uma maior ou menor
densificação de reiterações próximas que, como digo, é uma coisa que como
resultado não tem nada a ver com o serialismo. Talvez no Webern, às vezes, haja
uma coisa parecida mas, apesar de tudo, é muito diferente. Mas lá está, Webern,
efectivamente, já procura jogar um bocadinho com estas proximidades entre
elementos reconhecíveis.
Depois, por outro lado, interessou-me, na peça para
piano, também trabalhar as ressonâncias. Utilizei muitos tipos diferente de
ressonância, desde a ressonância mais normal e mais bruta, digamos, que é o
pedal direito - tudo a ressoar, até chegar depois a nada - e, entre as duas
coisas, criei muitos tipos de situações como ficarem só algumas notas tenutas, com os dedos, enquanto que
outras são tocadas staccato ou, por outro lado, ficarem só algumas notas tenutas com o pedal sostenuto. Quer essas notas sejam
tocadas ou não, dá também aquele tipo de ressonância especial - no caso de
serem tocadas ficam efectivamente essas notas a soar, simultaneamente com
outras que soam seco, portanto sem ressonância. Isso misturado com a manutenção
– novamente pelos dedos – mantendo certas notas tenutas, mas só por determinado
tipo de tempo, começa a haver um certo jogo de notas que ficam tenutas mais longas, outras menos
e outras não. Criei, portanto, toda uma escala de tipos diferentes de
sonoridade de ressonâncias.
“Kreuzgang”
O caso do Kreuzgang, por exemplo, do ponto de vista da
construção puramente musical, é um dos exemplos em que procurei desenvolver, e
levar muito mais longe, um certo tipo de ideia que já tinha aparecido, por
exemplo na Transitions, que era
o desenvolvimento das figuras simétricas. Figuras de intervalo simétricos que
na segunda parte de Transitions teve algum desenvolvimento, mas que estava
condicionado ao próprio material. Tinha a ver com aquela melodia que servia de
base à peça e não, logo à partida, com essas figuras simétricas - isso foi uma
dimensão da melodia que depois foi desenvolvido, concretamente, num certo
sítio. No caso do Kreuzgang, eu tomei isso como ponto de partida. Não tinha nada
a ver agora com as notas de Transitions, nem com a melodia de 24 notas, em que
procurei desenvolver, de modo sistemático e extremo, todos os tipos possíveis
de figuras simétricas de 3 intervalos portanto 1-2-1, seja qual for o
intervalo. Isso foi um dos pontos de partida de Kreuzgang e que,
obviamente, não tem absolutamente nada a ver com Transitions. Foi só um
processo de composição, que de algum modo foi despoletado por algo que eu tinha
feito numa peça. Depois peguei só nisso para desenvolver muito, numa outra
peça, com objectivos completamente diferentes.