Entrevista a Álvaro Salazar / Interview with Álvaro Salazar
2005/May/30
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Percurso Formativo: etapas e
pontos de viragem
É difícil responder porque na
maior parte das vezes, não temos a consciência perfeita de como as coisas
começaram. Principalmente no meu caso, porque embora a minha mãe tocasse bem
piano e fizesse os seus recitais caseiros que me deleitavam, eu não nasci numa
família de músicos profissionais. Isto foi possivelmente algo que, desde a
minha tenra infância, me começou a motivar e a desenvolver o meu interesse pela
música. Mas muito cedo (não assim tão cedo porque não fui um menino precoce) –
decidi que a minha vida ia ser de compositor, em primeiro lugar. E de algum
modo subordinei tudo à composição. Ou seja, estudei vários instrumentos mas não
cheguei a dominar nenhum: estudei guitarra clássica, piano, oboé, corne inglês,
estudei um bocadinho de contrabaixo… Mas tudo isso em função da direcção de
orquestra. De facto, inicialmente interessou-me manter as duas actividades
profissionalmente, a direcção de Orquestra e a composição. A certa altura, os
dois pratos da balança desequilibraram-se, e comecei a interessar-me muito mais
pela composição e de algum modo, a própria direcção foi feita em função da
composição. Eu explico melhor: a grande aula de composição que eu tive foi o
estudo das partituras, a análise das partituras de outros autores. E a direcção
deu-me de facto um meio excepcional de ter contacto com essas obras – e de
poder portanto analisá-las, estudá-las e dirigi-las ainda por cima. Hoje em dia
o meu interesse é a composição, até porque há uns anos para cá que a direcção
me está praticamente vedada por motivos visuais; tenho uma visão extremamente
deficiente e tenho a dificuldade de ler as partituras. Tive de cancelar até
concertos – infelizmente concertos importantes que me apareceram agora mais no
fim da vida, e que eu tive de cancelar, porque não tinha hipótese – não quer
dizer que eu não possa dirigir um concerto ou outro – mas posso dirigir com
duas condições – ou ser um programa bastante quadrado, digamos assim, que não levante
a complexidade rítmica e métrica que geralmente as obras contemporâneas têm – e
ser convidado para o concerto com uma antecedência bastante grande – que me
permita memorizar o mais possível, porque o trabalho baseado na leitura
propriamente está-me vedada.
Por isso mesmo, também
ultimamente tenho dado mais ênfase à composição, o que não quer dizer que os
meus problemas de visão não me tenham afectado também a composição, porque
tenho as maiores dificuldades em copiar as partituras, em escrevê-las, enfim –
de certo modo eu fiz na música o caminho que eu queria – não estou a dizer que
atingisse o nível que queria, que isso é outra história; mas fiz o caminho que
eu queria e não estou arrependido.
Eu iria um bocadinho atrás para
lhe explicitar algumas coisas da vida musical portuguesa do meu tempo ou de
quando era jovem… Nesse tempo, o ensino da composição no Conservatório era
muito deficiente. Praticamente não havia ensino de composição, havia sim ensino
de técnicas de composição do passado. Como sabe, no Conservatório Nacional, que
foi o Estabelecimento que eu frequentei mais, a composição era dada em certa
altura pelo professor Armando José Fernandes e pelo professor Croner de
Vasconcelos.
Ora nas aulas esses
professores, e com todo o respeito pela sua memória, não eram propriamente
adeptos das formas mais avançadas da música e portanto nem sequer se falava –
ou falava-se muito pela rama – das correntes mais prospectivas. Estamos a falar
dos anos 50, princípios de 60. Havia uma carência de informação… inclusivamente
aquilo que esses professores não gostavam como por exemplo a Escola de Viena
(globalmente)… eles não gostavam, mas também não a conheciam bem. E isso era um
problema. Da composição… dava-se a harmonia barroca clássica; dava-se
contraponto tonal, fuga e depois orquestração e Sonata. Isto consistia em fazer
um arremedo de Sonata ou estereótipo de Sonata – e que como sabemos, os grandes
compositores nunca praticaram. A Teorização sobre a forma sonata é uma
teorização tardia, do século XIX, meados do século XIX.
Eu costumo dizer muitas vezes,
quando estou mais cáustico que a composição foi tempo perdido. Não direi que
foi totalmente perdido, mas foi em grande parte perdido. Por outro lado, no
mercado não havia facilidade de acesso nem a partituras, nem a discos de música
mais avançada. É claro que quando se podia, ia-se lá fora, comprava-se um
disco, uma partitura… mas a informação que nós tínhamos era muito inferior à
que se tem hoje. Por outro lado e também pelo que acabei de dizer, o programa era
muito atrofiado em relação ao que hoje se ensina, sobretudo a partir da criação
das Escolas Superiores do Porto, Lisboa, Aveiro, etc.
Portanto,
o acesso a uma informação mais actualizada… também não se fazia muito por
concertos porque os concertos apresentavam pouco Música Contemporânea (ou
apresentavam sempre de uma forma muito timorata)… só certas obras do
neo-classicismo ou do princípio do século, de vez em quando. Mas é evidente que
não havia o conhecimento prático dos autores mais interessantes, de estéticas
mais arejadas do que aquelas que eram as do ambiente musical português de
então. Hoje há outras possibilidades, há discos, partituras, e há outro tipo de
ensino, obviamente. Perante essas limitações, uma das formas de tomar contacto
com as correntes mais avançadas era de facto através do estudo de partituras –
aquelas que se conseguem encontrar… e foi isso que fiz. E, no meu caso, então
um jovem chefe de orquestra, o que fiz foi programar obras contemporâneas,
sempre que possível mas – o que ainda hoje não é assim tão fácil porque há
problemas de aluguer de materiais, por exemplo… tudo isso é muito caro. Para
além da resistência das orquestras e dos principais músicos das orquestras que
são geralmente, com raras excepções, bastante conservadores. Até porque dentro
de um conservadorismo conseguem ter um trabalho muito mais simplificado: se
para a semana vão tocar a 8ª de Beethoven, já a tocaram não sei quantas vezes e
já a têm praticamente de cor. Agora… se têm de ler uma partitura nova, absorver
o significado de certas notações… tudo isso é bastante complicado para os
espíritos conservadores. Isso é em toda a parte do mundo e em Portugal não é
excepção. Claro que há orquestras mais habituadas que outras, como a Orquestra
Gulbenkian que apresenta com alguma frequência… poderia ainda apresentar com
mais mas depois há toda a reacção do público: não é com certeza com música
contemporânea que se vai encher o Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. Os
“Encontros de Música Contemporânea de Fundação” provaram isso mesmo durante X
anos; a menos que assuma contornos de acontecimento social… Se vem cá o Boulez…
parece mal uma pessoa não ir… ou o Xenakis ou o Stockhausen… mas fora isso, as
pessoas não vão e os “Encontros” justificam a sua extinção com a fraca afluência
de público.
Voltando
à direcção… seja de orquestras Sinfónicas, seja de grupos de Câmara onde eu
podia incluir obras contemporâneas… deu-me um grande prazer de sair dos
caminhos demasiado percorridos e em segundo lugar ter o acesso a obras que me
interessavam como compositor estudar, analisar e ver como é que os outros
fizeram.
Eu acho que a minha grande
escola de composição foi essa. Foi aliás a disciplina de análise a minha grande
disciplina de composição e aprendi mesmo muito com esse trabalho. E essa era
também a opinião do Olivier Messiaen.
Poderia
dizer-se quase que é quase um capricho dizer-se que não há obras. Eu
explico-me… em relação às obras do princípio, das minhas primeiras tentativas
enquanto compositor: destruí-as todas! Falo de peças que foram tocadas em
público (e portanto não são uma imaginação minha), foram tiradas do catálogo e
foram destruídas. Algumas delas foram mesmo destruídas (fisicamente), outras no
sentido de que ninguém as poderá tocar, nem eu as mostro a ninguém e que estão
nos papéis velhos para um dia deitar fora.
Não quer dizer que não tenha
utilizado algumas coisas dessas obras– a série “Palimpsestos”, por
exemplo, é baseada ou informada, digamos assim, aqui e acolá por resquícios ou
“citações” de obras anteriores. Mas de facto, em 65 destruí todas as obras que
tinha apresentado até então. E depois, parti do zero.
O “Palimpsestos II”, que
é para flauta solo é de 65… e há um fragmento do “Palimpsestos I” que é
para piano solo, que data de 62 e apenas esse foi tocado em público. Os outros
números não são dessa altura, mas sim de 65 em diante.
Portanto, destruí, recomecei e
demorei a apresentar alguma coisa em público por uma razão muito simples: a
produção era tão escassa que não tinha sentido estrear-me como compositor a
apresentar uma peçazinha para flauta solo ou uma peçazinha para um instrumento
só, a não ser que tivesse umas dimensões e uma pretensão maiores do que tinham.
Depois meteram-se aquelas coisas que todos nós ou muitos de nós da minha
geração sofremos – serviços militares, quatro anos de serviço militar no meu
caso, problemas dessa natureza – e de facto, só depois é que comecei apresentar
mais sistematicamente as coisas.
Sou muito exigente… Como chefe
de Orquestra, por exemplo, eu nunca dirigi obras minhas. Por uma razão muito
simples: não me sinto com capacidade de exigência à orquestra em relação a uma
obra minha como a que tenho nos ensaios de uma obra de outro autor.
Sentir-me-ia mal às vezes, e infelizmente é preciso, ao ser um pouco ríspido,
um pouco áspero, um pouco exigente demais, pedir para se repetir uma
determinada passagem muitas vezes… Com a obra de outro autor não tenho o mínimo
problema – e faço – mas em relação a uma peça minha não gostaria de o fazer,
não me sinto capacitado.
Em relação a peças de câmara ou
de solista, fundei a “Oficina Musical” em 78 e nos primeiros anos não quis
apresentar obras minhas – não quis cair no pecado de transformar de algum modo
a “Oficina Musical” num grupo para a minha promoção pessoal. Por exemplo, a
própria actividade de edição de partituras que ainda é relativamente escassa na
“Oficina Musical”, não inclui qualquer edição de peças minhas porque entendi
que só depois de editar variadíssimos autores portugueses contemporâneos é que
eu teria o direito moral de apresentar também uma peça minha. E de facto, isso
vai acontecer mas em parceria com a “Oficina Musical”.
Em relação às obras que
destruí… e porque isto é importante… destruí-as por uma razão muito simples:
porque eram tentativas incipientes de composição, técnica e esteticamente
falando, pelos motivos que pude referir há bocado, ou seja, pelo atrasado de
décadas em relação ao que se fazia então na Europa, nos E.U.A. e noutras partes
do mundo.
Já agora deixe-me afirmar que
talvez as minhas obras não existam... e não é uma farsa… Por uma razão muito
simples: eu decidi, já há uns dois anos, que só sobrevivem as obras que forem
editadas sob a minha orientação (e espero que a família respeite esta vontade).
Todas as outras são obras que eu ainda gostaria de reformular aqui ou acolá, ou
pelo menos rever e verificar se precisam ou não dessas rectificações. Significa
que o que não for editado não existe.
Vivíamos
um atraso muito grande, como sabe, e de algum modo, foi a geração a que eu chamo a ”geração de 60” e que inclui
os compositores que começaram a apresentar obras por volta da viragem da década
de 50 para a década de 60 como o Jorge Peixinho, eu próprio, a Constança
Capdeville, etc. que, se outro mérito não tivesse, criou uma ruptura na Música
Portuguesa. É que independentemente do valor e da musicalidade de certos
autores, que não está agora em causa, de facto, a Música Portuguesa estava até
então, atrasada muitas décadas face ao que se fazia lá fora. Aliás, essa foi
sempre uma pecha da música portuguesa noutros séculos, com raríssimas ou muito
pontuais excepções.
E
portanto, eu tive a consciência não só da insipiência técnica dessas obras
(talvez seja um exagero chamar-lhes obras) como também da sua inadequação
estética.
É
a partir daí, dessa viragem da década de 50 para 60, que eu tenho a plena
consciência desse atraso e dessa deficiência técnica. Depois seguiu-se um
período de tentativa de obtenção de grande informação. Li muitas partituras,
ouvi muita música… Em 65 não houve mais adiamento possíveis e estive
praticamente quatro anos a fazer o serviço militar.
Só depois disso, e de um
intervalo profissional fora da música por motivos de sobrevivência, é que pude
aproveitar uma bolsa da Fundação Gulbenkian e ir para Paris e etc., onde tive
de facto a possibilidade de uma informação muito maior e de trabalhar
Análise mais seriamente, muito virada para certas fases da
música ou para certos compositores.
Tive por exemplo, a
oportunidade de analisar toda a Escola de Viena com o Gilbert Amy que é só um
pouco mais velho do que eu (dois anos), mas que estava noutro estádio de
desenvolvimento e que foi uma pessoa extremamente generosa, prontificando a
dar-me essas aulas gratuitamente; e eu tirei muito partido dessa Análise com o
Gilbert Amy. Por outro lado,
e aproveitando estar em Paris,
também fiz o curso de Direcção. Eu
já tinha tido aulas de Direcção em Viena com o Swarowsky, precisamente nos anos
60 mas durante um período limitado porque tive que interromper a minha estada
em Viena (por ter sido chamado para o Serviço Militar).
Mas tirei a “License de
Concert” da “École Normale de Paris” com o Pierre Dervaux e estive no estúdio
do Pierre Schaeffer, no G.R.M. (Groupe de Recherches Musicales), que era um
centro virado para a Música Concreta. Foi de facto um período importante para
mim e depois regressei a Portugal e continuei no Conservatório como professor,
onde já tinha ingressado antes. já tinha antes de ir ingressado no
Conservatório como professor, e depois continuei.
Às vezes, uma informação
relativamente tardia traz as suas vantagens. Por exemplo, no meu catálogo não
há nenhuma obra dodecafónica – ao contrário de que muita gente pensa de que sou
uma espécie de dodecafonista português. Conheço bastante bem a Escola de Viena,
analisei as obras fundamentais, mas não tenho nenhuma obra dodecafónica nem
serialista integral no meu catálogo. Se tivesse começado um bocadinho mais cedo
tinha, com certeza. A Escola de Viena foi mesmo a primeira abertura para mim.
Também há, curiosamente, um autor que ainda hoje me diz muito: Varèse. Suponho
que a crítica nunca fala de uma certa presença de Varèse nas minhas peças, pela
simples razão de que não conhece Varèse e isso já é um problema deles!
Depois, certas tendências
minhas revelam-se muito cedo, a partir desse período. E acredito que o facto de
essas tendências terem surgido cedo, e simultaneamente a minha quase obsessão
de voltar a obras anteriores, corrigi-las e refazê-las, tenha feito com que
aquilo que escrevi tenha uma certa unidade. Com um bocadinho de pretensão
poderia talvez dizer que tenho um estilo na medida em que ao ouvir-se uma peça,
pode reconhecer-se o autor. Claro que isto não é negar a influência de outros
autores! Há leituras, literatura, ensaios, filosofia, etc. Há leituras que nos
marcaram profundamente e muitas vezes nós não percebemos em que medida isso se
reflecte na própria produção, mas há autores a que eu gosto sempre de fazer
referência, porque mesmo que não se notem traços deles nas minhas peças, podem
ter tido uma grande influência em mim, em aspectos talvez menos audíveis, menos
visíveis.
Na Escola de Viena… obviamente
Webern, pela sua economia de meios, o seu rigor, influenciou-me ou talvez o meu
temperamento já seja de molde Weberniano… Foi mais nesse rigor construtivo, no rigor de
pensamento, na utilização do silêncio, a que hei-de voltar porque o silêncio
tem um papel importante naquilo que faço… Se é que o silêncio existe… (se o
Cage aqui estivesse, diria que não).
O
Varèse… creio que foi determinante sobretudo na exploração dos registos
extremos dos conjuntos instrumentais. Estou a referir-me a conjuntos
instrumentais porque o que me toca mais em Varèse não são as obras de
orquestra, mas sim as obras de formação relativamente limitada – as “Integrais”, a “Octandre”, “Hyperprism”… E aí, por exemplo, a
exploração dos metais no extremo agudo, no extremo grave – sabemos muito bem que
a nota ali pode não sair com precisão, seja no aspecto da afinação, seja no
aspecto da emissão, mas isso foi voluntário da parte dele… Isso também me tocou
bastante, para além das polifonias dinâmicas.
No
princípio dos anos 70 eu fui muito tocado por um autor italiano que é o
Donatoni. Assisti a vários Festivais de Royen, onde ouvi algumas coisas que me
interessaram e ainda interessam, pela sua textura filiforme, pelo seu ping-pong
sonoro. Ainda em Itália, também o Luigi Nona da última fase me interessou e me
influenciou mas já numa fase mais tardia.
Voltando ao silêncio e a algo
importante: o espaço não temperado ou o micro-cromatismo generalizado ao espaço
não temperado… o silêncio toca-me
muito… Há curiosamente um autor que muito me marcou e que estranhamente
continua a marcar e que é o Morton Feldman. Ele de certo modo inverte as
funções do som e do silêncio. O silêncio esculpe o som. Interessa muito a
poética, o gesto composicional de algumas obras do Feldman. Depois
há aquelas influências mais recentes… ou amores mais recentes. Autores como
Lutoslawski são casos muito interessantes e mesmo a démarche técnico/teórica do
Lutoslawski me interessa…
E
eu suponho que certas coordenadas podem sair daqui… O gosto por texturas pouco
densas, a utilização do silêncio… e depois uma série de coisas que seriam
impensáveis por mim sem a influência da música electroacústica. Há certas
coisas que resultam do meu estudo da música electroacústica. Dou um exemplo de
um aspecto técnico que utilizo com frequência – e cujo símile temos na música
electroacústica quando
somamos ataque de um som à
ressonância de outro, e que nos meus tempos de pré-história de aparelhagem
electroacústica se obtinha por cortes de tesoura na fita e por colar dois cm
(no máximo) – que é o ataque, de um tan-tan com a ressonância de uma trompete,
por exemplo.
O
que faço muitas vezes é usar uma técnica no plano harmónico: imaginemos o
ataque de um determinado acorde em forte, fortíssimo, ou stacatíssimo e simultaneamente outros
instrumentos atacam uma harmonia “tenuta” em pianíssimo. O que nós ouvimos é de
facto uma harmonia e uma ressonância de outra – e não daquela… Isso utilizo
muitas vezes. Tem implicações para além do aspecto meramente acústico, tem
implicações também no campo formal da micro-forma, que não são desinteressantes
de todo.
Ora bem, “ciclos” talvez seja
uma palavra exagerada para a realidade desses três conjuntos de obras…
Um palimpsesto é um pergaminho
em que esteve escrito um determinado texto que foi apagado e sobre o qual se
escreve um segundo texto, normalmente por poupança de material (na Idade Média,
chegavam a escrever um terceiro texto); hoje, através de processos
laboratoriais já é possível descobrir os antecedentes. Eu chamei “Palimpsestos” a
essas três obras porque apesar de não ter usado processos laboratoriais ou
processos analíticos, sei (como qualquer autor) em que momentos se encontram os
fragmentos por baixo de outro texto… esses fragmentos dizem respeito a algumas
das tais obras tiradas do catálogo ou destruídas, que aparecem como uma espécie
de “auto-citação”, de que só eu dou conta. O material é tirado de obras
diversas e os três “Palimpsestos” não têm praticamente nada em
comum.
Nada transita em termos
temáticos e de material, de um “Palimpsesto” para outro…
são totalmente diferentes e independentes uns dos outros.
A série do “Ludi
Officinales” já é uma obra para conjunto de câmara em que há três
percursos possíveis: um percurso para três cordas, um percurso para piano e
percussão, e um percurso para flauta e clarinete. Aí de facto, o material de
cada um desses percursos é integralmente tirado da obra-mãe, embora com
desenvolvimentos diferentes; não é uma cópia, e aí podemos de facto falar de um
ciclo.
Os “Intermezzi”, que
até ao momento são cinco, são obras que foram escritas com a intenção ou de
explorar aspectos técnicos que para mim eram novos, que pude ou tencionara
utilizar mais tarde (nalguns casos pude, noutros apenas tencionara) em obras de
outro fôlego ou então porque são, digamos assim, ruminações intelectuais sobre
coisas que já tinha feito noutras obras. Na verdade, os “Intermezzi” são independentes uns
dos outros e a ideia de os agrupar em I, II, III, IV, V, surge só pelo facto de
terem algo em comum.
“Glosa e Fanfarra sobre uma Fantasia de
António Carreira”
Para mim, há uma obra que tem
de facto importância para mim, no plano de Orquestra. Chama-se “Glosa e
Fanfarra sobre uma Fantasia de António Carreira.” E é uma obra
com um percurso acidentado. Foi escrita em 75 mas só foi estreada no século XXI
em 2002 ou 2003 e, se não me engano, foi estreada em Madrid. Já tinha sido
parcialmente tocada na Roménia mas integralmente… a primeira audição foi de
facto em Madrid. Depois, no ano seguinte (ou no mesmo ano, não tenho a
certeza), a Fundação Gulbenkian programou a obra em dois concertos. Foi uma
espécie de filho que nunca mais nascia… passaram os nove meses, os dezoito
meses, os dez anos e não nascia. Finalmente nasceu e teve bom acolhimento.
No aspecto da composição, é uma
obra que tem também uma citação tirada da própria obra do António Carreira, e
levantou-me alguns problemas: o problema da grande forma! Porque é uma peça que
dura 23 minutos sem paragens e do domínio da grande orquestra, porque é uma
grande orquestra! Por outro lado foi uma obra paradigmática da demonstração das
vicissitudes da música portuguesa. Foi escrita em 75 para muitas percussões e
muitos percussionistas e para muitos metais.
É claro que praticamente logo
depois de a ter escrito, tive consciência (que deveria ter tido antes) de que
uma obra desta natureza não poderia ser tocada em Portugal. Nessa altura não
havia nem percussionistas nem instrumentos de percussão em número suficiente
para uma obra destas e também não havia metais, a menos que se juntassem…
A obra ficou na gaveta… E
depois disso eu senti a necessidade de introduzir outros instrumentos na obra e
senti mesmo a falta de cordas como uma necessidade estética. Em certas
situações os metais resolviam mal, ou resolviam menos bem certas passagens do
que introduzindo cordas. E acabou por transformar-se numa obra para grande
orquestra. Se olharmos para o passado – que já não é assim tão recente –, vemos
que isso coincide com o momento de degradação das orquestras que então existiam
em Portugal.
Um
dia, em conversa com um amigo espanhol bem conhecido do meio musical português,
o Ramon Encinar, que estava a dirigir a Orquestra Nacional em Lisboa, diz-me:
“Olha, eu queria apresentar uma coisa tua, o que é que tens para orquestra?”…
“Olha, há uma obra que está feita há muitos anos… pode querer fazer-lhe uma
revisão rápida, mas de facto está feita, está pronta, há vinte e tal anos.” Ele
diz: “Traz lá a obra.” Eu trouxe a obra… ele esteve a folheá-la… O manuscrito até
estava praticamente ilegível, porque nunca tinha sofrido uma cópia de limpeza;
e evidentemente que não havia materiais de orquestra… E disse-me: “Então prepara isso!”. Isto passou-se em 99. fiz
uma revisão à obra nessa altura e logo a seguir dei-a a uma copista para
estabelecer uma partitura passada em computador e tirar os materiais, que foi
processo relativamente moroso, porque há muitos sinais não convencionais; é preciso um trabalho aturado com o
computador e com os softwares disponíveis para a cópia musical. Entretanto o
Encinar abandonou Lisboa. Mas é homem de palavra, disse que estreava a obra, e
de facto telefonou-me e disse: “Olha, já não estou aí, mas posso estreá-la com
a Sinfónica de Madrid.”. Eu disse: “Óptimo!” Mandei-lhe a obra e foi estreada
lá… tocada e bem tocada!
Devo dizer que a obra teve
certa ressonância pública e da crítica local, o que chegou aos ouvidos da
Fundação Gulbenkian. Então repetiu-se aquilo que é comum em Portugal: se queres
que te toquem ou que te leiam, vais primeiro ao estrangeiro fazer qualquer
habilidadezinha e depois és de facto reconhecido. E no ano seguinte a
Gulbenkian programou duas vezes a obra.
As “Intradas” são
obras… particularmente entre a “Intradas I – A” e a “Intradas
I - B” há mais do que influências, há quase uma
re-instrumentação. A “Intradas A” foi-me encomendada pelo
Festival de Cagliari, na Sardenha para três instrumentos, para trompete, trompa
e trombone. É evidente que três instrumentos nos levantam alguns problemas no
campo harmónico: ficamos limitados a três vozes. A obra teria de ter uma
duração curta, mais ou menos no estilo “Fanfarra”. Mas sempre tive vontade de a
transformar, duplicando os instrumentos: duas trompetes, duas trompas, dois
trombones. A “Intradas B” tem em relação à “Intradas A” esta
característica instrumental de ter o dobro dos instrumentos; mas o material é
praticamente o mesmo, ligeiramente mais desenvolvido e dura mais um minuto e
tal do que a versão A. A “Intradas II” não tem nada
a ver com a I-A ou a I-B, é uma obra totalmente diferente para um grupo grande
de metais.
Não tem portanto ligação
nenhuma, a não ser o título, por ser uma “Intrada”, algo que
inicia ou pode iniciar festivamente, espero eu, um espectáculo. Há duas coisas
que também queria referir… quando há pouco tentei fazer uma “radiografia
estilística” e falei de tendência para o silêncio… e estruturas pouco densas e
uma aproximação cada vez maior aos campos não temperados. Sempre disse,
demonstrei e afirmei a minha incapacidade de distinguir entre som musical e
ruído. Um objecto sonoro, um ruído branco no meio de uma Sonata de Mozart, é
obviamente um ruído… Por exemplo… numa obra do Emmanuel Nunes, de repente uma
sequência de acordes perfeitos é um ruído do pior possível. De qualquer modo a
minha tendência é esbater essa fronteira, entre som e ruído, tendência para os
espaços não temperados.
Eu diria que a nota temperada
ou uma sequência de notas temperadas cria campos harmónicos, que vêm a
incomodar-me de certo modo desde há algum tempo. Eu preciso de introduzir ali
algo que distorça aquele sistema planetário – como se desfocasse uma
determinada imagem. O que tenho feito é uma espécie de “esfumatura” (sfumatto) dos
contornos através da utilização de notas, que não é aquela mas sim a que está
ligeiramente acima ou ligeiramente abaixo. É evidente que quando se usa uma
escrita convencional e se introduz quartos de tom, por exemplo, corre-se o
risco de o resultado ser apenas algo desafinado. E o nosso ouvido não está
preparado para isso e talvez passem muitas centenas de anos de evolução para
que possamos chegar a essa diferenciação desse modo. A minha ideia é mais uma
“esfumatura” dos contornos… e um enriquecimento de um acorde que seja um
agregado complexo, que fica muito mais complexo introduzindo-lhe a repetição de
algumas notas, mas ligeiramente destemperadas em relação às outras.
Suponho que a tendência para o
silêncio continua muito viva em mim. E eu costumo dizer muitas vezes, o que
talvez não seja para levar muito a sério, que o ideal talvez fosse eu escrever
uma obra que fosse um muito complexo objecto sonoro, precedido e seguido de um
silêncio infinito. Uma espécie de mundo perdido.