Entrevista a João Madureira / Interview with João Madureira
2004/Dec/22
|
|
Como
cheguei à composição? A resposta se calhar é um bocado presunçosa mas eu acho
que foi ela que veio ter comigo… Sei a primeira melodia que fiz… Nem sabia escrever bem música, portanto
aquilo era fazer uma sequência de notas e decorá-la e tocar muitas vezes
naquele dia e no dia seguinte. Depois… gravar num gravador. Mas nunca tive essa
noção…
Eu
sou filho de uma geração para quem a educação musical não foi assim tão
importante. Os meus pais são da geração que fez o 25 de Abril, portanto não
havia essa preocupação de conhecer profundamente Beethoven e com isso ser
realmente um homem feliz isso não, não havia. E portanto foi assim um bocado
por acaso. Depois quis ter uma guitarra, porque queria ter alguma coisa para tocar
e uma guitarra era o que facilmente se arranjava, não era um piano, porque era
muito mais caro.
Fui
conhecendo compositores… e ainda hoje ouço todo o tipo de música; não sou o
compositor contemporâneo que só ouve Mozart, Beethoven e depois ouve Schoenberg,
Emmanuel Nunes… Não acho que seja este o caminho melhor, acho que é só um
caminho possível, mas ouço todo o tipo de música e tocava todo o tipo de música
e a música para mim começou por ser uma forma de comunicação. Depois conheci
música contemporânea, o que me fascinou bastante e depois fui para a Escola
Superior de Música de Lisboa… Também estudei com o Donatoni em Siena, depois
disso, em Colónia e em Estrasburgo. E entretanto acabei os meus estudos porque
achava que já tinha estudos suficientes.
A
meio desse percurso todo foi ficando sempre uma nostalgia, uma coisa que tinha
perdido, que era a literatura. E tive uma grande indecisão na vida: ou seguia
composição ou seguia filosofia. Eu tinha boas notas a filosofia… e tinha uma
professora de filosofia que me dizia com alguma ironia, penso eu agora: “O João
é filósofo, o João pode ir.” E realmente deixei esse mundo da Filosofia pela
Música. Mas ficou sempre esse gosto pela expressão verbal, pelo texto e sinto
que isso também está na minha música, mesmo nas coisas que não têm texto; está
presente em ‘n’ coisas que faço porque para mim o texto é assim uma coisa
fundamental.
Texto
e composição: duas realidades para um mesmo espaço
Eu
acho que a música é essencialmente espaço… espaço mental. Não é, por exemplo,
na complexidade das alturas, na complexidade do ritmo, na complexidade do
timbre, na complexidade da dinâmica, na complexidade da textura ou de tudo o
que se queira inventar, que está a riqueza da música, mas sim na relação destas
coisas umas com as outras. E há 1001 parâmetros que a música pode ter… aquilo
que nos seduz, de uma forma muito intuitiva e que acho que é uma componente
importante do juízo estético, nunca é um parâmetro isoladamente. É que se eu
canto “Laaaa…”, eu estou a fazer
um timbre, a fazer uma dinâmica… estou a criar um espaço. Estou a cantar uma
nota mas estou a dizer um texto, uma vogal… e não posso dissociar estas coisas
porque elas criam imediatamente um espaço. É uma noção que até vem do podre e
velho estruturalismo francês. É quase banal… que um objecto se possa decompor
completamente! Acho mesmo que a riqueza da música tem a ver com a dimensão
deste espaço que se cria; texto e música põem isso muito facilmente em evidência. Tem a ver com as óperas que
eu vi… O próprio texto, para mim,
é sempre completamente dúplice. Eu agora estou a fazer música sobre uma série
de poemas do Rui Belo, uma colecção que se chama Boca Bilingue. Boca Bilingue é uma condição essencial
da linguagem; quando dizemos uma coisa, dizemos imediatamente com determinado
tom e de uma determinada forma. E essa forma até pode trair o significado
daquilo que nós aparentemente estamos a tentar dizer. E a partir daqui cria-se
um labirinto de significações que o texto tem; porque o texto é música. E isso
tem muito a ver com a poesia concreta e também com a música concreta… O
perceber esse lado muito dúplice da música. Por acaso, acho que os músicos
populares sabem isso ou alguns músicos populares sabem isso. Tem a ver com o
facto de achar que música é essencialmente texto e de achar que o texto tem,
essencialmente, a ver com música.
Para
mim, a composição passa por pensar de que forma é que uma peça de música pode
ser metafórica de outra, pode ter uma figura de estilo deste género, ou de que
forma é que eu, musicalmente tenho uma paráfrase, tenho uma sinédoque ou tenho
uma metonímia… aquelas coisas que aprendíamos no liceu…
Em
relação aos aspectos fonéticos, por exemplo: uma pessoa pode pegar num aspecto
fonéticos mas ele imediatamente vai ter significado. Vai ser portador de
sentido; não é possível pôr uma pessoa a fazer “ai, ai, ai” e pensar que a
pessoa não está a gemer em português mas que está a fazer o fonema A e o fonema
I! Não é possível! E portanto essa contradição está sempre presente. Mas eu
acho que há uma traição… acho que quando juntamos a música ao texto estamos a
trair o texto, estamos a dar a nossa leitura, sendo que também a nossa leitura
já é uma traição. É que, no fundo, temos de estar conscientes de que nenhum de
nós lê o mesmo Camões ou o mesmo Fernando Pessoa… nenhum de nós! E a música
talvez explicite mais isso. (Também não ouvimos o mesmo Beethoven nem ouvimos o
mesmo Mahler… ) Não direi que isto é contraditório, mas é altamente subjectivo!
Essa é a fraqueza e é também o valor também da coisa, não é? O ser muito
subjectivo…
O
Espectralismo e o respeito pela Harmonia
Eu
acho que o espectralismo tem 2 lados; um que é um lado de liberação em relação
à escrita que é óbvio, à escrita da música dodecafónica e serial e em relação à
academia. E tem outro lado muito positivo que é o desenvolvimento de uma série
de ferramentas que nos permitem perceber a música. Mas este último lado, também
positivo, pode fazer com que a gente comece a avaliar toda a música sob um
único olhar. E acho que é mau, haver essa tendência… é sempre mau quando uma
pessoa importa critérios de uma determinada corrente estética para avaliar
todas as outras. Mas eu acho sinceramente que o espectralismo foi uma bênção!
Assino em baixo muita coisa do espectralismo porque acabou com aqueles
interditos terríveis, ou aqueles sine qua non do… da música serial. Voltou a
haver oitavas, acordes maiores… tinha é que se saber o que é que se estava a
fazer, lá está! Integrou coisas físicas como a respiração…
Esse
respeito pelo lado físico dos homens e também essa honestidade de haver maior
harmonicidade e menor harmonicidade… creio que tudo isso são coisas chave, são
conceitos base da música muito importantes. O que é curioso é que essa música
não se fechou completamente. Há muitos exemplos disso mas essa música não se
fechou a conviver com músicas quer tonais, quer músicas do Pierre Boulez ou a
música a que hoje em dia, chamamos de atonalismo clássico. Porque há de facto,
uma etiqueta para essa música.. aquilo é o serialismo e o serialismo já teve
muitas evoluções… Mas quem ouça o Répons e conheça os músicos espectrais e
tenha a partitura e veja como é que aquilo foi desenvolvido e como é que os
sons puramente electrónicos surgem ali… enfim, eles têm uma raiz espectral e um
desenvolvimento enorme. Uma linguagem que não se isola das outras, mas que se
mantém em convívio que pode ser amistoso ou conflituoso. Mas isso parece-me
muito importante e nós hoje em dia estamos numa fase talvez pós-espectral…
Uma
das coisas em que penso muito relativamente à música é que, de facto, acho
imensa piada a este fenómeno de uma música que é capaz de falar de outras. O que tem a ver com o facto
de que toda a linguagem é metalinguagem! Na música moderna, tivemos um
interdito ou uma má experiência com uma forma de metalinguagem que é a música
de Stravinsky. É maravilhosa!.. Mas a música de Stravinsky em muitos casos era
metalinguagem de uma música tonal e aparentemente era um enfeite ou uma
consequência última dessa música tonal, obedecendo às mesmas raízes, etc. Isto
é uma forma muito limitada de ver a música de Stravinsky mas criou-se um pouco
esse anátema como também se criou um bocadinho em relação ao Alban Berg. Porque
no fundo, o Wozzeck é levar o tonalismo até às últimas consequências mas a
raiz dele é tonal e portanto seria sempre uma espécie de música “decadente”…
Mas daqui acho que passámos para uma música que, por vezes, não consegue falar
de outras músicas do passado, como a música tonal falou da música modal. Há
fugas de Bach em que, se não soubermos que é um cravo, se virmos aquilo escrito
como voz e como duas vozes e estivermos perante os 5 compassos iniciais dessa
música, não podemos dizer que não é renascentista. E eu acho que a música
serial típica deixou de conseguir falar de outras músicas. Bach tinha falado de
outras músicas e eu acho que toda a linguagem se impõe ou se dá a conhecer
através da sua capacidade de aceitação do outro e acho que a música espectral
teve isso, teve esse lado.
Há
uma peça de um italiano, que penso que já morreu, que se chama “Professor
Bad Trip”
em que ele critica uma certa posição que às vezes o “professorzinho”, ali da
paróquia… o professor de música que está a explicar que agora o dodecafonismo é
que é bom e que se nós formos bons rapazes vamos fazer música dodecafónica. E
de facto, parece-me que a música espectral tirou, tirou completamente esse lado
“professoreco”, um bocado idiota da música. Mas cá a Portugal não chegou
completamente.
Problemáticas
estéticas e técnicas na composição: etapas na construção de uma linguagem
A
primeira peça em que eu senti essa vertigem de texto e música, de duas coisas
que correm uma com a outra e que realmente estabelecem um contraponto de
linguagens foi com a canção que eu fiz:
“O Sono Que Desce Sobre Mim”.
E
depois com o ciclo de poemas, ou melhor, com o ciclo de peças do “Poemúsica” sobre vários poemas do
Herberto Hélder. Nessa altura estudava na Alemanha e aqueles poemas foram muito
importantes para mim. Eram uma espécie de Portugal na Alemanha, uma espécie de
dignidade portuguesa na Alemanha…
é uma coisa que acontece quando nós saímos e vamos para a Alemanha ou vamos
para França: de repente, tudo o que fazia parte do nosso mundo fica mais
pequeno.
Nessa
altura, tinha aulas com um alemão que é o York Holler, com quem estudava todas
as hipóteses da relação música e texto. Há várias peças que são importantes
para mim… O “Encontro” para flauta e piano tem uma certa importância mas eu acho
que a peça “Glosa”… até gostava mais tarde de desenvolver com o Pedro
Carneiro… É sobretudo a partir dessa peça que começo a ter uma linguagem mais
influenciada pelo espectralismo. Acho que na música, as alturas ou notas é o
elemento mais importante… porque é aquele elemento em que a mudança é mais
sensível. E parece-me que a mudança pode ser também feita com mais subtileza;
mas não há elemento musical que tenha esta possibilidade de modulação do tempo.
Para
falar de momentos muito marcantes, os “Três Momentos para Ana Hatherly”… Foi um momento muito
específico em que eu sentia que tinha o domínio de uma série de artifícios que
sempre quis ter, tinha atingido um domínio razoável desses artifícios e em que
comecei a pensar novamente na música como metalinguagem, como uma música que se
insere num todo cultural. Para
mim, neste momento, isso é fundamental. Nada nos garante que sejamos ouvidos
apesar de querermos estar completamente inseridos na sociedade.
É só eu saber que não estou apenas a fazer umas continhas de somar
e a pôr aquilo de forma harmoniosa quando faço música. Que a minha música consegue
ter uma visão pessoal e individual do todo.
E nos últimos tempo é que comecei a ter consciência de que tinha
qualquer coisa pessoal, porque antes não tinha essa consciência.
Em relação à peça “Glosa”, por exemplo, toda ela
é um caminho para uma maior dissonância, mas é num caminho muito gradual e de
forma muito prática; aquilo que eu
fiz foi passar de uma sobreposição mais banal, de uma sobreposição mais
consonante de espectros (sobreposição à quinta, etc.) para uma sobreposição de
espectros. Depois da quinta vai à terceira, por aí a fora. Até que cheguei à
sobreposição de segunda menor e quarta aumentada… Era uma base muito simples.
Nessa
peça, até a disposição do espectro é constante e há portanto alturas fixas ou
cada nota está num registo fixo. Nessa peça isso passou-se assim, mas hoje em
dia trabalho de formas completamente diferentes. Eu posso ter a manutenção de
uma mesma sobreposição de espectros e ter uma ideia de registo cada vez mais
dissonante. Tecnicamente, como na frase do Tristan Murail, há sempre esta ideia
de que é bom que uma pessoa que
está num avião, a meio da viagem, saiba e sinta que alguém o está a guiar… de
que o avião está a ir para algum sítio. Pode haver uma surpresa mas musicalmente
é bom que se constituam aqueles famosos vectores. Isso inspira-me sempre, mesmo
que seja para depois fugir a eles.