Vertixe Sonora · Lisbon Ensemble 20/21
© APC_CROMA – Ciclo de Música Contemporânea de Oeiras
Entre os dias 2 e 10 de Outubro realizou-se o festival Croma, que se apresentou como um novo “ciclo de música contemporânea de Oeiras”, realizado em grande parte no Auditório Ruy de Carvalho, em Carnaxide, e iniciado no dia 2 de Outubro com um seminário sobre «Boas práticas em criação musical», no Salão Nobre do Palácio do Marquês de Pombal, na Câmara Municipal de Oeiras, com a presença de Esther Gottschalk, Marc du Moulin, Carlos Madureira, Pedro Pinto Figueiredo, Nuno Miguel Henriques e Jorge Barreto Xavier.
Aqui falamos em particular de dois dos espectáculos propostos neste novo Festival, cujo programa incluiu vários concertos dedicados à música da actualidade – nomeadamente, na interpretação do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, do Quarteto de Cordas de Matosinhos, de alunos de escolas do ensino secundário e um concerto exclusivamente de música electrónica; e ainda uma master class com o compositor Pierluigi Billone (na Escola de Música de Nossa Senhora do Cabo), conversas, mesas redondas e ensaios abertos. Este ciclo de música contemporânea foi proposto pela recentemente reactivada Associação Portuguesa de Compositores (APC), uma associação que tem como missão “fomentar e desenvolver as condições, meios e circunstâncias necessárias à possibilidade de criação musical contemporânea”. Um festival que mostrou ter pernas para andar e que promete ter uma segunda edição já em 2022.
No dia 9 de Outubro à noite houve um concerto extremamente interessante do ensemble Vertixe Sonora, um colectivo flexível (e de geometria variável) que integra solistas de música contemporânea de destaque da Galiza e de Portugal e que se tem afirmado como um ensemble ibérico de referência na música electroacústica. O concerto arrancou com um tutti, de rompante, que abre a peça «Strepito», de Ivan Ferrer-Orozco, compositor mexicano e performer de música electrónica. Peça ruidosa e estimulante, onde sobre um mar de graves do piano e percussão abundante, se vão escutando muitos timbres, entre soluços de saxofone, impulsos e respirações de flauta e rasgos de violino. A certa altura, um fio põe a vibrar uma corda do piano ininterruptamente (um piano não vive só de martelos), acalmando a maré e abrindo espaço para novas intervenções do sax até ao súbito final de uma peça com intensa personalidade, que mostrou logo de início a versatilidade e a cumplicidade dos músicos do Vertixe Sonora.
Veio depois «The threshing floor», de Mauricio Pauly, compositor da Costa Rica. O título pode ser traduzido simplesmente como “eira”, um terreno onde se realizam vários gestos e trabalhos de separação dos cereais. Boa analogia para uma “peça de trabalho” num terreno bem definido, para uma percussão muito simples, saxofone e electrónica, com uso de loops, e com espaço para silêncios onde, paulatinamente, se separa o trigo do joio... Saxofonista e percussionista, frente a frente, estabelecem um diálogo de trabalhos diferentes, com mútuo respeito e atenção aos gestos do outro, jogando com distorções e feed-back (o duo é amplificado do princípio ao fim) e instalando um clima aberto e bem contrastante com o quase-noise da primeira peça.
Seguiu-se uma peça recentíssima de Camilo Méndez, compositor colombiano que, em «Cartography of Liminal Spaces», para violino e ensemble, joga com a ideia de “timbres modificados”, até não se saber bem quem é quem neste mapa “liminar”. Como o título indica, a peça interessa-se pelos lugares difíceis de definir, no limite ou nos pontos de transição tímbricos entre instrumentos. Uma obra para violino e ensemble “preparados” que começa por revelar um cativante sentido lúdico no jogo entre instrumentos, para chegar a atingir um fremente sentido poético.
Também de poesia se faz a peça de Eduardo Patriarca «... só o silêncio que reluz é ouro...», a última peça do concerto, que ressoou nas sombras projectadas em palco de linhas confusamente entrelaçadas. Peça em que a ligação à poesia (o verso do título encontra-se mesmo num poema de Eucanaã Ferraz) leva música para caminhos interrogativos, quase meditativos, mas sempre inquietos. Algumas (poucas) palavras são mesmo ditas pelos músicos, nesta nova obra de Eduardo Patriarca que pode ser ouvida como uma meditação musical, com uma ponta de melancolia, sobre as possibilidades sempre renovadas da criação electroacústica, mesmo quando à beira do (precioso) silêncio.
Clara Saleiro, na flauta, Pablo Coello, no saxofone, Roberto Alonso, no violino, David Durán no piano, Diego Ventoso na percussão e Iván Ferrer nos meios electrónicos deram um belíssimo exemplo do que pode ser a interpretação entusiasta da própria diversidade estética da música actual, revelando propostas muito variadas mas todas elas com uma personalidade própria e uma atitude sonoramente rebelde, isto é: nunca dogmática e nunca amorfa, numa busca incessante de novas possibilidades, com peças que exigem intérpretes inteligentes e inconformistas.
No dia seguinte, domingo, dia 10 de Outubro o concerto do Lisbon Ensemble 20/21 deu vistas largas à criação actual. A peça de Ka’mi que abriu o concerto, apesar do rigor da sua construção, desilude por excesso de estreitamento sonoro. Gestos e ligações muito interessantes (particulares) parecem ficar presos à estrutura geral e levam «Sonderart des Kreisens» (assim se chama a peça, que poderia ser traduzida por “particularidades do círculo”) a uma timidez que acaba por não ser desafiante para os ouvidos. Seria preciso, talvez, uma outra ousadia interpretativa para arrancar à composição uma atitude mais radical? Mas, responderia o ensemble… também não se pode fazer “outro” a partir do que lá não está…
Mais apelativa e aberta foi a proposta do jovem compositor Luís Neto Costa, com o seu «Chamariz de Liceia», uma obra que parte à procura de timbres inauditos a partir de pequenos sons, com uma variedade dinâmica bem cativante e com uma percussão partilhada por vários instrumentistas (com pedrinhas que vários tocam). O ensemble de flauta, clarinete, violoncelo, piano e violino ficou aqui sem piano, mas acrescentou-se de viola de arco e percussão. Uma peça cheia de encanto em que o apelo do prazer dos sons é um verdadeiro “motor de busca”.
Também no caminho da procura de novas ligações se encontra a peça de João Quinteiro, não por acaso intitulada «Eros». É mesmo disso que se trata: como se de uma erótica generalizada entre instrumentos conduzisse à descoberta de novas e intensas relações – e transformações. Os arcos tocam nas suas estantes, e a tuba deixa o clarinete meter-se por ela adentro. É mesmo de erotismo entre os instrumentos que estamos a falar. Ou entre as suas partes, porque também pode haver o erótico consigo mesmo.... Mas o que importa não é tanto o que se vê, mas o que se ouve. E aí o princípio do prazer musical instala-se, nesta curiosa peça de João Quinteiro que põe os instrumentos a namorar, mesmo se por vezes “à distância”.
O concerto terminou com «Omens II», uma peça de 1975 de Emmanuel Nunes, escrita na sequência de uma reflexão sobre os problemas interpretativos de «Omens I». A peça foi escrita para flauta, clarinete, trompete, trombone, vibrafone, celesta, viola, violino e harpa. O Lisbon Ensemble 20/21 (aqui alargado) fez uma interpretação muito viva da obra, com a excelente direcção de Pedro Pinto Figueiredo garantindo a essencial unidade dinâmica de uma peça em que os pequenos gestos fazem grandes diferenças. Aplausos calorosos para uma sala bem composta no auditório de Carnaxide, não só pela qualidade e entrega dos músicos (em todo o concerto), mas talvez também porque a obra de Emmanuel Nunes seja uma referência fundamental para a nova música portuguesa e, nesse sentido, ganhe ainda hoje o valor de manifesto pela criação contemporânea.
“Croma”, em grego antigo, significa simplesmente “cor”. Nestes dois estimulantes concertos de dois agrupamentos de grande qualidade foram de facto as cores do som que constantemente emergiram, na diversidade entusiasmante da criação actual que encontra, felizmente, excelentes intérpretes comprometidos com as descobertas da música de hoje. Esperemos que se mantenha este Croma e que venham (ainda) mais timbres.
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