O Festival Música Viva, organizado pela Miso Music Portugal e realizado entre 6 e 13 de Novembro deste ano, estendeu-se a mais dois concertos, realizados nos passados dias 9 e 10 de Dezembro, no O'Culto da Ajuda. Escrevemos aqui sobre o primeiro concerto desta “Extensão Emergência”, como foi designado pelo Festival, referindo-se ao Estado de Emergência que obrigou ao adiamento de alguns dos concertos antes previstos.
O programa proposto pelo concerto do Lisbon Ensemble XX/ XXI cruzava obras de Emmanuel Nunes e Jorge Peixinho com peças de jovens compositores contemporâneos, começando com uma composição recente (2018) de Gonçalo Gato. Mais do que uma obra em três partes, ou andamentos, ela deve ser ouvida como uma sequência de três peças diferentes, numa diversidade interna que não impede que ali detectemos uma linguagem própria. Ou antes, uma descoberta própria, como se Gonçalo Gato se lançasse ao desafio de, com um piano apenas, procurar três formas diferentes de pensar o presente. A primeira peça designa-se Aporia, e é o primeiro passo para enfrentar o “impasse”, a “dificuldade” ou o “paradoxo” inultrapassável que a palavra de origem grega do título sugere. Apesar da incerteza, a peça lança-se numa afirmação possível do que pode fazer um piano e um pianista, na esteira do que fizeram alguns pianistas e compositores do início do século XX, como se fosse possível resgatar alguns dos gestos do simbolismo. Mas na segunda peça, intitulada As we turn into machines, as coisas complicam-se, a linguagem muda e reflecte-se agora sobre como pode um ser humano tornar-se máquina. O pianista Paulo Pacheco parece ter compreendido bem o carácter da peça de Gonçalo Gato, e fez-se “máquina inteligente”, embora de gestos refreados, como se estivesse em causa a liberdade humana e uma nova sensibilidade em cada transição harmónica. Now State desemboca numa terceira peça, homenagem de certo modo “minimalista” a Steve Reich, mas num desenvolvimento próprio em que o piano se quer tornar “sintetizador” e o “digital” do seu título se clarifica, referindo-se tanto aos dedos do pianista e à sua sensibilidade, como à numerização digital do mundo. É interessante notar como as reflexões musicais de Gonçalo Gato colocam desafios à (sua) composição e levantam questões formais, ao mesmo tempo que pretendem pensar (quase filosoficamente) o mundo em seu redor.
De seguida, Marina Camponês enfrentou com coragem uma das mais desafiantes peças para flauta de Emmanuel Nunes. Neste caso para flauta baixo, que Marina Camponês tocou com ímpeto e confiança. Ludi Concertati n.º 1 é uma peça de 1985, e surge na sequência de algumas experiências importantes com flauta por parte de Emmanuel Nunes (Grund e Aura, para flauta solo, em colaboração com o flautista Pierre-Yves Artaud). O compositor dizia, numa entrevista de 2002, que um bom intérprete era «alguém que não toca só para o público e que mostra que coisas estão na partitura, tudo o que lá está escrito». Marina Camponês fez isso mesmo e entrou, à sua maneira e com muita personalidade, na partitura de Ludi Concertati n.º 1.
A recentíssima peça de Hugo Vasco Reis, Colors Seen in Silence II, para flauta e piano, juntou Paulo e Pacheco e Marina Camponês numa viva interpretação duma peça que sucede a outro dueto, para clarinete e piano, de 2019 (Colors Seen in Silence I). Hugo Vasco Reis tem tido uma actividade intensa nos últimos anos, revelando um compositor interessado em mergulhar nas qualidades sonoras dos instrumentos (por vezes usando metáforas visuais como estas “cores vistas no silêncio”) e propondo-nos que viajemos com ele no interior dos sons.
Seguiu-se Ametista e Obsidiana de Jaime Reis, duas das peças de Sangue Inverso, tocadas aqui de forma isolada (pois elas constituem partes da obra maior que é Sangue Inverso – Inverso Sangue), com a participação da flauta e do piano, e depois também do clarinete de Filipe Dias. Obras de escrita rigorosa e cativante, com uma grande proximidade dos instrumentos, em ataques decididos, simultaneidades e suspensões, jogando com ressonâncias pianísticas depois de gestos musicais rápidos e, por vezes, quase “obsessivos”.
O concerto prosseguiu com Canto da Sibila (de 1976, refeita depois como Novo Canto da Sibila em 1981), uma obra de Jorge Peixinho, numa interpretação muito estimulante do Ensemble 20/21, com a entrada de Marco Fernandes na percussão. Uma percussão descontínua, que Jorge Peixinho designou como uma “anti-percussão”, no sentido em que ela não se deixa “instalar” nem desenrolar, mas antes lança timbres e sonoridades soltas, numa atitude lúdica que quase “comenta” as vozes do piano e do clarinete, cruzando-se com elas. Uma peça onde só faltou seguir a sugestão de Jorge Peixinho de a acompanhar “com luzes e perfumes”. Pode ficar para quando o público puder tirar a máscara...
Para terminar, ouvimos na percussão Marco Fernandes e vimos dançar a bailarina Teresa Doblinger numa curiosa peça do compositor João Quinteiro. Aqui a percussão, quase no oposto da peça de Peixinho, parece ter vontade de se tornar “orquestral”. Euridice, sete da manhã (assim se chama a peça) pertence a um ciclo operático, chamado Regresso (de que faz parte, por exemplo, a peça para acordeão espacializado Sísifo, cinco da tarde e outras com títulos que puxam figuras míticas para um quotidiano). Ao mesmo tempo a dança de Teresa Doblinger, por um lado autónoma, mas por outro respondendo a impulsos percussivos em diversas ocasiões, criava as suas próprias “fronteiras”, através de um dispositivo muito simples, recorrendo a um conjunto de copos de plástico no chão, onde a bailarina não toca por milímetros, durante grande parte do tempo, e depois desfazendo a “última fronteira” na parte final da peça em que os copos eram ostensivamente pisados e eles próprios tornados instrumentos de percussão. Uma proposta bem interessante de cruzamento de música e dança, duas artes próximas desde sempre, que se autonomizaram mas nunca deixaram, afinal, de ser irmãs.
O espectáculo desta quarta-feira, dia 9 às 19h00, no O'culto da Ajuda, em Lisboa, teve a sala praticamente cheia (dentro dos lugares disponíveis, que são menos do que é habitual nesta sala), e a presença dos compositores, que subiram ao palco para agradecer, ao lado dos intérpretes, no fim de cada peça.
Uma “Extensão de Emergência” do Festival Música Viva que valeu bem a pena, com um concerto do Lisbon Ensemble 20/21 que mostrou, mais uma vez, a riqueza da nova música que se faz em Portugal, cruzando-a com compositores de referência, como Peixinho e Nunes, e revelando que, das suas heranças (e de outros pontos do infinito universo da música), muitas vozes diversas e inventivas estão bem despertas na música da actualidade.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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