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Clarinete & electrónica:
obras/aventuras portuguesas para som e electricidade
ANTÓNIO FERREIRA

Nuno Pinto
portuguese music, clarinet & electronics
Miguel Azguime, João Pedro Oliveira, Ricardo Ribeiro,
Carlos Caires, Cândido Lima, Virgílio Melo
miso records (mcd025.11)

Entre 14 e 17 de Novembro (2011), com concertos de apresentação no Porto, Aveiro e Lisboa, a Miso Records lançou um CD dedicado à música portuguesa contemporânea para clarinete e electrónica, interpretada pelo clarinetista Nuno Pinto. Esta edição incluí-se numa campanha de divulgação/edição da música de compositores portugueses levada a cabo pela Miso Music Portugal. Nesta acção colaboram os vários solistas do Sond’Ar-te Electric Ensemble e é dado um especial destaque para a divulgação de peças que explorem a relação/interactividade entre instrumentação acústica e geração electrónica de sons. No presente CD são interpretadas obras de Miguel Azguime, João Pedro Oliveira, Ricardo Ribeiro, Carlos Caires, Cândido Lima e Virgílio Melo, representando várias gerações de compositores portugueses da actualidade.

As primeiras composições para clarinete e sons de origem electrónica, caso do “Duo for Clarinet and Tape” de William O. Smith, datam de 1960, sendo aqueles fixados, na época, sobre um suporte magnético. Ainda que um bom intérprete possa ultrapassar as limitações e rigidez de tal acompanhamento fixo, o compositor Pierre Boulez resumiu bem a situação ao afirmar que “como intérprete, ele encontra-se prisioneiro do suporte”.

Tal como escreveu o compositor Cort Lippe em 1996, oferecer aos intérpretes a possibilidade de exercerem algum controle sobre a parte electrónica seria um factor importante para o futuro da música interactiva. Esta possibilidade deveria ser baseada nas capacidades musicais e expressivas dos mesmos. Assim, foi crucial o intérprete poder ter algum controle sobre o fluir do tempo bem como sobre a dinâmica e timbres da composição.

Nas peças com instrumentação acústica/electrónica podemos distinguir dois extremos, no que respeita ao grau de interacção desejado: este pode ser “fraco” (pré-determinado, linear) ou “forte” (um sistema quase autónomo nas suas respostas). Muitas vezes seguem-se modelos inspirados da música “acústica”, efectuando-se uma combinação de fusão, conflito, continuidade e contraponto entre os vários campos sonoros. Os sons em si podem ser bastante distintos da música mais “tradicional” sendo em geral empregues processos e gestos composicionais tais como aceleração/desaceleração, crescendo/decrescendo e o aumento/diminuição da densidade das texturas geradas.

Se bem que quase todos os instrumentos acústicos tenham sido utilizados em peças com electrónica, o clarinetista/compositor F. Gerard Errante (autor de vários artigos sobre o clarinete e a electrónica) considera o clarinete como sendo particularmente bem adaptado para composições mistas devido à sua agilidade, flexibilidade e variedade de possibilidades sonoras.

Se a isto juntarmos a inegável mestria do clarinetista Nuno Pinto, o qual combina um grande domínio das técnicas clássicas e contemporâneas do instrumento com uma vontade de envolvimento na criação musical mais experimental, estarão reunidas as condições para uma excelente execução dos vários jogos entre o acústico e o electrónico propostos pelos compositores das obras aqui apresentadas.

A primeira peça, “No Oculto Profuso” (2009), da autoria de Miguel Azguime, é dedicada ao Nuno Pinto e foi escrita em estreita colaboração com este. Segundo as notas de programa, o material harmónico da peça foi construído a partir do espectro harmónico da nota ré e de facto esta série é melodicamente tocada pelo clarinete na pequena coda que fecha a composição. Esta estrutura-se no que parecem ser três secções gerais: um primeira parte, muito dramática, com notas e efeitos instrumentais rápidos/sustidos pontuados por sons electrónicos (que segundo as notas do programa têm origem em síntese de modulação de frequência,) articulando jogos de transposição e espacialização electrónica. Isto induz a percepção de um super-instrumento, fruto da expansão tímbrica do gesto instrumental, em que a agilidade e o virtuosismo do intérprete está em evidência. Uma densa interacção rímitca entre o clarinete e a electrónica, que se “desfaz” em pontos sonoros ritmados (a partir do minuto 6), introduz-nos gradualmente na segunda secção. Esta cria um contraste eficaz com as anteriores evoluções: o clarinete e a parte electrónica evoluem em longos estratos (in)harmónicos paralelos, com a sonoridade da síntese por modulação de frequência em evidência. A fusão tímbrica está muito bem conseguida e ao ouvido é quase electroacústica “pura”. Uma acentuação inharmonica intensa produzida pelo clarinete e a electrónica introduz-nos rapidamente na secção final em que as notas rapidamente articuladas ecoam num vasto espaço virtual. Este espaço é assim “tocado” pelo clarinete criando uma “poliritmia” complexa. A secção evolui para um conjunto de notas bem definidas que são transpostas e arpejadas electronicamente em arcos temporais decrescentes na suas intensidades. É uma peça exigente em termos de interpretação mas compositor e intérprete combinam-se para criar uma obra com uma dialéctica consistente entre os vários elementos a qual gera uma sucessão de secções bem focadas.

João Pedro Oliveira é bem conhecido (pelo menos por um público mais especializado) como um dos compositores mais activos no campo quer da electroacústica quer da música mista, tendo composto um importante conjunto de peças para instrumentos solo e electrónica. É também muito crítico em relação ao “fetichismo da tecnologia” que resulta numa mera manipulação habilidosa das ferramentas informáticas/digitais ao dispor. O objectivo seria a ultrapassagem da sedução fácil e a criação de uma linguagem própria do compositor. Escutando a segunda peça do presente CD, “Time Spell” (2004) da sua autoria, podemos facilmente concordar que tal objectivo é conseguido. Esta peça apresenta uma característica comum a outras peças mistas do mesmo compositor: uma sincronização precisa entre os eventos sonoros do clarinete e a parte electrónica, com uma profusão de pequenos gestos electroacústicos em constante movimento espacial. Mas o resultado é fluído, com uma sensação constante da “inevitabilidade” de cada gesto sucessivo. Ao longo de toda a peça, clarinete e electrónica exploram toda uma gama de possíveis interacções: acelerações/desacelerações, ressonâncias/decaimentos, flutuações temporais, fusões em vários registos sonoros, etc. A parte electroacústica está muitas vezes em contraste, em termos tímbricos, com o clarinete, sendo que a interacção entre o instrumento e os sons electrónicos é mais efectuada por meio da transferência recíproca de gestos similares, semelhanças morfológicas, e interacção espectrais. Tudo isto cria uma continuidade, sempre renovada, entre a parte electrónica e os gestos acústicos do clarinete, garantindo uma forte consistência musical a toda a peça. O clarinetista Nuno Pinto exibe aqui a sua mestria de várias técnicas de interpretação, realizando a ”libertação” do clarinete do encantamento do tempo, evocativo do titulo da peça, por meio de uma incessante renovação tímbrica.

Com cerca de 6 minutos de duração, a terceira peça, “Intensités” (2001-2009) da autoria de Ricardo Ribeiro, é a mais compacta de todas as peças do presente CD. De acordo com as notas de programa, a electrónica em tempo real aumenta o instrumento acústico “sem nunca o ocultar”. De facto, é uma peça algo melódica com a electrónica a pontuar irregularmente os gestos do clarinete. A electrónica actua, na maior parte do tempo, com a mesma morfologia do instrumento, mas com uma tímbrica distinta. Ao minuto 2:25, um estrato electrónico de baixa frequência é introduzido abruptamente, efectuando uma transição para uma escrita do clarinete (ao minuto 4:15) de maior intensidade, com trillos abundantes e explorando a riqueza da geração tímbrica do clarinete quando sujeito a maior intensidade do sopro. Apropriadamente, a electrónica aqui torna-se mais passiva, criando um vasto e ressonante espaço virtual que amplia as acentuações criadas. Tal como é dito nas notas de programa, a peça termina reintroduzindo o jogo inicial entre a electrónica e o clarinete. Em comparação com as anteriores peças, a interacção do clarinete com a electrónica é relativamente simples e as sonoridades resultantes talvez não sejam tão ricas. Mas a peça, para a sua duração, funciona bem.

A composição “Limiar” (2004) de Carlos Caíres tem uma componente invisível e inaudível: de facto, resultou de uma encomenda do CCB para uma peça de dança com clarinete e electrónica. Tal facto talvez tenha informado a construção formal da peça, com uma separação clara entre clarinete e electrónica, o que contrasta com as outras peças do CD. De facto e segundo as notas de programa “não se quis integrar o plano instrumental e o electrónico” mas propor “uma transformação lenta de um para o outro”. Assim, a peça “é um caminho entre dois extremos” sonoros: ruídos de sopro e chaves do clarinete tratados por processos de micromontagem, criando uma nuvem de grãos sonoros que evoluem na primeira metade da peça; e notas/gestos melódicos do clarinete que são introduzidos na segunda parte, os quais sobem gradualmente no registo sonoro até à nota aguda sustida (em fá) que termina a composição. Os grãos sonoros são tratados electronicamente por meio de ressoadores, ganhando uma qualidade sonora de tubos metálicos ou pequenos objectos de vidro percutidos. Assim tratados, estes estabelecem um jogo de texturas granulares contrastantes com os grãos “ruidosos” do clarinete. Até à introdução da primeira nota do clarinete sobre um estrato electrónico inharmonico no mesmo tom, a peça soa a electroacústica quase “pura” sendo difícil distinguir os sons provenientes do clarinete. A partir deste instante (minuto 4:15), a presença da electrónica torna-se mais pontual e cada vez mais esparsa. Seria interessante escutar a obra na situação performativa para que foi pensada. É provável que aí ela ganhe outras características. No entanto, o contraste deliberado entre o clarinete e a electrónica cria uma grande frescura sonora, fazendo com que a audição desta realização seja musicalmente frutuosa.

Cândido Lima criou, com a sua peça “Ñcáãncôa” (1995), um verdadeiro tributo evocativo “às vozes imaginarias, ao tempo e ambiente” das figuras paleolíticas descobertas nas margens do rio Côa. Lembrando o dito de William Faulkner “o Passado não passou”, o compositor utilizou para esta realização da obra uma implementação digital de um sistema de captura e reprodução dos vários gestos do clarinete. Este sistema reproduz o sinal captado com um atraso de alguns segundos em alternância nos canais estéreo e sem outros processamentos de qualquer espécie. O processo é conceptualmente simples (uma espécie de cânone imitativo) e é facilmente apreendido por quem escuta a peça que assim entra no “jogo”. Mas simples não quer dizer simplista pois a interessante escrita do compositor cria um rico caleidoscópio de texturas, explorando a agilidade e gama dinâmica do clarinete bem como o virtuosismo do intérprete. São especialmente evocativas as notas sustidas, muitas vezes com recurso a multifónicos/harmónicos, que utilizam o sistema electrónico para criar estratos sonoros ricos em inflexões e fusões espectrais subtis. Por sua vez, estes estratos articulam-se com secções de notas curtas, criando contrapontos rápidos com as repetições do sistema digital. Como resultado do encadeamento formal irregular entre as várias secções e da homogeneidade tímbrica conseguida, a presença do próprio processo electrónico tende a “desaparecer”, acabando a peça por fluir de um modo orgânico. O conjunto de tensões harmónicas/espectrais sucessivas assim criado mantêm vivo o interesse musical nesta peça de quase 17 minutos de duração.

A última peça no CD, “Upon a Ground II” é da autoria de Virgílio Melo e também apresenta uma certa homogeneidade tímbrica. Segundo as notas de programa, a parte electrónica é derivada de transformações aplicadas a fragmentos pré-gravados do clarinete, efectuados pelo próprio Nuno Pinto. Estas transformações (não especificadas) criam uma sonoridade metálica/sintética, relacionada com o clarinete mas bem distinta deste. A peça articula-se em torno de pequenas secções onde o par clarinete/electrónica efectuam vários “arabescos espacializados”, segundo o compositor. Estas secções estão separadas por pequenos silêncios que vão gradualmente desaparecendo, fundindo-se em secções cada vez mais extensas, até criarem um único conjunto denso que evolui durante os 5 minutos finais da peça. Este forte gesto composicional (do mais esparso para o mais denso), unifica formalmente a obra embora esta talvez ganhasse ainda mais com uma utilização mais audaciosa da espacialização da parte electrónica.

A partir das gravações deste CD, torna-se óbvio que Nuno Pinto é um clarinetista de primeira água, sendo as composições executadas com grande mestria e segurança. A qualidade da captação sonora é excelente bem como o equilíbrio geral entre a parte acústica e a electrónica. Para um público mais especializado, seria talvez interessante apresentar mais alguns detalhes sobre a implementação da parte electrónica, em especial no que respeita às estratégias de interacção com o clarinete.

Mas tal não é importante ou indispensável para uma audição frutuosa deste CD “clarinet & electronics”. Este perfilha-se como mais uma importante contribuição da Miso Records quer para a internacionalização da música portuguesa contemporânea quer como prova da vitalidade da criação musical portuguesa, apesar de todas as dificuldades sobejamente conhecidas.

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