Tiago Matos · “Oráculos e Ladainhas”
Foto: © André Santos
No passado dia 18 de setembro realizou-se a primeira edição do FIO – Festival Informal de Ópera. Este festival, organizado pela Associação Musical Sinfonietta de Braga, pretende “desafiar o conceito tradicional de ópera” e “criar espaços de diálogo entre criações, público e artistas”.
Às 11 horas, na Escola Artística do Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga, foram apresentados os trabalhos realizados nas oficinas “Vamos criar uma ópera” com alunos do nível básico. Uma hora depois, no mesmo espaço, decorreu uma interessante mesa redonda sobre o tema “Ópera para quê?” que contou com a participação de representantes da produção atual de ópera em Portugal, contemplando compositores, produtores e intérpretes. Ao longo da tarde foram estreadas quatro óperas de câmara, fruto do exemplar trabalho colaborativo de uma vasta equipa que envolveu, entre outros, libretistas, compositores, encenadores, intérpretes e desenhador de luz.
Distantes da grande produção operática pela curta duração (variando entre os 30 e os 60 minutos) e dispositivo vocal e instrumental reduzido, as quatro óperas foram concebidas especificamente para os quatro espaços onde foram representadas, assumindo-se como arte in situ (site-specific). O público, para além de assistir às óperas nos quatro espaços culturais da cidade – Gnration, Museu Nogueira da Silva, Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho e Museu dos Biscainhos – teve a oportunidade de calcorrear o itinerário entre os quatro locais, acompanhado pelo audiowalk “entre FIOs” da autoria de Tiago Schwäbl que propôs interpretações do espaço urbano envolvente, sugerindo leituras surrealistas.
A primeira ópera, “IN(opeRA)VEL”, aconteceu às 15h00 na Blackbox do Gnration (edifício distinguido em 2014 com o Prémio Nacional de Reabilitação Urbana). O libreto, também de Schwäbl, tirou partido de paralelismos biográficos entre o compositor Maurice Ravel (1875-1937) e a artista plástica Anne Adams (1940-2007), propondo uma sobreposição engenhosa de espaços e cronologias. A relação estabelece-se pelo facto de ambos terem sofrido de uma progressiva degeneração neurológica que conduziu à gradual perda de capacidades motoras e de expressão verbal. A conexão musical entre as duas personalidades é feita pelo famoso Boléro composto por Ravel alguns anos antes da manifestação da doença; Adams pintou o quadro Unravelling Ravel (inspirado no Boléro) poucos anos antes de começar a experimentar o mesmo tipo de sintomas. À semelhança das obras de Ravel e de Adams a música da compositora Sara Ross recorreu à repetição obsessiva de padrões melódicos e rítmicos, citando motivos da obra de Ravel num discurso que delineia um gradual decrescendo de densidade sonora (o inverso do Boléro), exprimindo deste modo um possível duplo sentido: a implacável evolução da doença e a resistência obstinada perante esta. A projeção visual da contagem decrescente dos compassos da partitura funcionou como um cronómetro musical, sublinhando a evolução escatológica da ópera. “IN(opeRA)VEL” resulta numa simbiose entre o discurso literário e o discurso musical conseguida com o auxílio de sonoplastia que, ao dobrar os instrumentos e as vozes em palco, produz uma sobreposição de planos, adequada à dramaturgia e possibilitando múltiplas leituras por parte do público. Por seu lado a encenação de Joana Providência e o desenho de luz de José Nuno Lima sugeriram distância e proximidade, entre personagens e situações, tornando o espaço cénico altamente significante.
A segunda ópera, “O Concílio Celeste” (estreada às 17h00, com segunda récita às 18:00), propôs uma dramaturgia distinta, de narrativa linear e com recurso a elementos cómicos, porém abordando preocupações atuais e urgentes: o risco de destruição do planeta Terra e, consequentemente, da própria humanidade. Concebida para o Museu Nogueira da Silva, a ópera dividiu-se em duas partes que foram apresentadas em espaço interior e exterior: o Salão Nobre e o Jardim. O público, conduzido por um personagem cicerone, foi convidado a assistir a uma reunião entre pássaros que defendem a extinção dos seres humanos. Junta-se à discussão a Deusa e Mefistófeles que, já na segunda parte, chegam à conclusão que a espécie humana é um caso perdido, havendo assuntos mais importantes a tratar. A música de Fátima Fonte e o libreto de Patrícia Portela exploram a interação cénica e musical de dois pares de personagens interpretados por Ana Maria Pinto e Miguel Maduro-Dias: Pomba Branca e Pavão, Deusa e Mefistófeles. As melodias vocais, silábicas e próximas do recitativo, veiculam o texto de modo inteligível reforçando a importância dos diálogos e da contracena, bem interpretados pelos dois cantores.
Às 21 horas foi apresentada a ópera “Oráculos & Ladainhas” com a interessante encenação de António Torres em estreito diálogo com outro libreto de Tiago Schwäbl, com a música de Sofia Sousa Rocha e explorando oportunamente a espacialização dos intérpretes e do som no longo e amplo Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho. A partitura recorreu a dois elementos principais: um gesto instrumental – glissando realizado pela harpa – que serve de base ao tema melódico entoado pela soprano (arioso que remete para música francesa do início do século XX) e o recitativo do barítono, cuja austeridade ressoa o espaço arquitetónico medieval. A iluminação e os figurinos criaram um ambiente frio e distante, sem tempo nem lugar definidos, reforçado pela postura estática dos intérpretes durante grande parte da ópera. O desafio interpretativo resultante da espacialização dos cantores e instrumentistas foi bem resolvido pelos intérpretes, em particular pelos cantores Nataliya Stepanska e Tiago Matos, coordenados, afinados e muito expressivos na sua interpretação cénica e musical.
Uma hora depois foi estreada a última ópera do festival, “Maria Magola”, no claustro do Museu dos Biscainhos. Estruturado em quatro cenas, o libreto de Marta Pais de Oliveira explora um conjunto de oposições que constituem o enredo: medo e fascínio, doçura e brutidão, prisão e liberdade, loucura e sanidade. A ação, protagonizada por um aldeão e por uma mulher louca (Maria Magola), baseia-se na sua relação que, iniciando-se pelo medo e pela aversão, evolui até à atração mútua, num desenlace trágico que mistura sedução e morte. O compositor Francisco Fontes subdividiu as cenas em quadros musicais contrastantes baseados nas emoções opostas dos personagens, propondo texturas e andamentos distintos, como se de uma suite se tratasse. O sentido dramático do libreto de Marta Pais de Oliveira foi sublinhado por uma escrita vocal expressiva e pela intensa interação dos personagens que a encenadora Daniela Cruz soube potenciar através da movimentação cénica muito dinâmica e de uma boa utilização do espaço, em particular o lago e o alpendre do claustro.
De um modo geral as quatro partituras apresentaram uma tendência comum: todas conciliavam diferentes elementos sonoros e linguagens musicais, não se vinculando a nenhuma forma específica de escrita, libertas de fórmulas técnicas e estilísticas. A conceção musico-dramática, em todas as óperas, inspira frescura e inovação e é reveladora da maturidade artística das quatro equipas criativas, pelo estreito diálogo de linguagens e pelo equilíbrio conseguido. Linguagens musicais sem preconceitos, aliando elementos de natureza diversa, eficazmente conjugados e ao serviço de uma dramaturgia coletiva.
Os cantores Ana Maria Pinto, Nataliya Stepanska e Tiago Matos revelaram elevada qualidade na interpretação vocal assim como grande desenvoltura cénica. Destaco o desempenho do baixo Miguel Maduro-Dias, cujo timbre, projeção vocal, dicção e movimentação foram notáveis, com um sentido cénico-musical fora do comum. O maestro Jan Wierzba revelou uma profunda compreensão das quatro partituras e respetivas dramaturgias, interpretando-as com o rigor e a autenticidade que habitualmente marcam a sua direção. Este rigor verificou-se também na performance dos dois ensembles instrumentais que interpretaram alternadamente as quatro óperas, patenteando a enorme qualidade dos jovens músicos que os integram. Destacamos ainda o envolvimento do maestro e dos instrumentistas com a cena, caracterizados com adereços alusivos a cada ópera e adotando posturas e movimentos corporais apropriados. A este nível os encenadores, oriundos da dança e do teatro, souberam criar um espaço cénico alargado e uma rede orgânica de inter-relações na qual som, palavra, luz, movimento e espaço, deram origem a um objeto maior, mais rico e complexo.
A arte portuguesa necessita de projetos tão desafiantes e envolventes quanto o FIO, sendo desejável que este festival se consolide no panorama cultural nacional, merecendo toda a atenção do público assim como o apoio institucional necessário para a realização de futuras edições!
O Autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.
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