2021.05.07 · Casa da Música, Porto · “Estado da Nação”
Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música
Pablo Rus Broseta (direção musical), Lucas Fels (violoncelo)
O “Estado da Nação” em perspetiva na Casa da Música
PEDRO M. SANTOS
Mariana Vieira · Pedro Junqueira Maia · Nuno Peixoto de Pinho · Ângela da Ponte
Carlos Lopes · António Pinho Vargas · Fernando Lopes Graça
Foto: © Casa da Música

No presente mês de maio a Casa da Música realizou uma nova edição do ciclo “Estado da Nação”, um dos mais importantes no nosso país na divulgação da música portuguesa contemporânea. O primeiro concerto, intitulado “Ritual da Primavera”, realizou-se no passado dia 7 de maio na Sala Suggia, tendo a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música interpretado obras de três compositores portugueses pertencentes a gerações distintas: Carlos Lopes (Jovem Compositor em Residência), António Pinho Vargas e Fernando Lopes Graça. O concerto foi dirigido pelo maestro Pablo Rus Broseta e contou ainda com a participação do violoncelista Lucas Fels que foi solista na obra de Pinho Vargas.

A estreia mundial de “Epóxi”, obra encomendada pela Casa da Música a Carlos Lopes no âmbito da sua residência artística, deu a conhecer um jovem compositor com uma forte personalidade musical, patente nos sólidos recursos técnicos e na força expressiva da sua música. A peculiar temática extramusical desta obra exprime o espanto do compositor perante o crescente fenómeno de divulgação e procura de resinas epóxi na internet (Lopes descreve a sua composição como uma “ode caricata a este fenómeno”). Com cerca de dez minutos de duração “Epóxi” está alicerçada numa conceção formal simples e eficaz no seu intento de representar musicalmente o processo de solidificação da referida resina. A obra principia com uma delicada escrita camerística que apresenta algumas ideias temáticas fragmentadas. Gradualmente o discurso musical torna-se mais complexo, delineando diferentes texturas que são subtilmente articuladas num fluxo sonoro contínuo e claramente direcionado para um denso e poderoso clímax, ao qual se segue um momento de repouso que desfaz a tensão até então acumulada. A orquestração é equilibrada e translúcida, tirando pleno partido dos meios sinfónicos disponíveis e produzindo interessantes matizes sonoros. A escrita instrumental recorre a diversas técnicas de execução (col legno e glissandi nas cordas, multifónico nas madeiras, surdina nos metais) que o compositor soube integrar no tecido sinfónico, enriquecendo-o sem cair no mero efeito decorativo. A audição desta obra despertou ainda mais o interesse pela estreia de duas novas composições que Carlos Lopes irá escrever no âmbito da sua residência na Casa da Música, uma para o Remix Ensemble e outra para o grupo de câmara vencedor do Prémio Jovens Músicos.

A segunda obra do programa, “Six Portraits of Pain” de António Pinho Vargas, foi estreada em 2005 na abertura oficial da Casa da Música ao público, resultando também de uma encomenda desta instituição. Desde então a obra já foi interpretada por diversas vezes noutras salas e por outras orquestras e ensembles, não só na sua versão original (para grande ensemble e violoncelo solista) mas também em formato orquestral, com a secção de cordas reforçada, seguindo uma sugestão do compositor e maestro Pedro Amaral. Foi precisamente esta versão orquestral que foi apresentada no passado dia 7 de maio, pela primeira vez na Casa da Música.

“Six Portraits of Pain” é uma obra sublime, pela beleza e eloquência do seu discurso musical, mas ao mesmo tempo inquietante, pela sua pungente expressividade. O ponto de partida composicional de Pinho Vargas foi um conjunto de textos literários que abordam a experiência existencial do sofrimento (tema caro ao compositor), de autores como Baruch Espinosa, Gilles Deleuze, Thomas Bernhard, Manuel Gusmão, Anna Akhmátova e Paul Celan. Apenas o fragmento literário de Akhmátova é dado a conhecer ao auditório (entre o quarto e o quinto andamentos, recitado pelo próprio compositor de forma acusmática) estando os restantes inscritos na partitura, acessíveis apenas aos intérpretes, evitando assim uma inadequada escuta programática da obra.

Musicalmente os seis andamentos estão intimamente inter-relacionados pela recorrência de determinados recursos e objetos musicais, nomeadamente o violoncelo solista, o tempo musical lento e o motivo melódico de segunda menor. A utilização obsessiva deste motivo, que perpassa todos os andamentos, desempenha uma importante função retórica, impregnando-os com a sua dilacerante força expressiva. A intenção do compositor comunicar de forma direta com o auditório justifica o recurso a esta figura musical que é símbolo de sofrimento em diversas obras chave da História da Música europeia (recordemos por exemplo o “Lamento d’Arianna” de Claudio Monteverdi, o “Crucifixus” da “Missa em Si menor” de Johann Sebastian Bach ou “Sete Palavras” de Sofia Gubaidulina).

Mas outros objetos musicais coabitam os seis retratos, formando uma complexa rede de relações que muito contribui para a exemplar construção do seu discurso. No primeiro andamento a orquestra arremessa acordes violentos e trémulos sombrios, mas de forma surpreendente o discurso dá lugar a uma luminosa e envolvente heterofonia, protagonizada pelo violoncelo solista e por dois violinos subtilmente amplificados e posicionados nas laterais do palco. Sobre o persistente lamento do violoncelo o segundo andamento introduz, nos sopros e na percussão, harmonias e timbres que remetem para a sonoridade do gamelão. Já no terceiro andamento, que se segue sem paragem, a orquestra dialoga com o solista numa melancólica escrita wagneriana. O quarto andamento, também iniciado sem paragem, retoma a sonoridade brilhante do gamelão e termina serenamente com uma revisitação do luminoso trio do primeiro andamento. Ouve-se de seguida o texto de Akhmátova e, após uma breve respiração musical, uma notável analepse inicia o quinto andamento: o regresso do primeiro acorde da obra, que agora conduz a um enfático episódio virtuosístico do violoncelo solista (o único em quase 30 minutos de música). Ininterruptamente surge o sexto andamento que reintroduz a melancolia wagneriana e se extingue gradualmente num silêncio carregado de emoção!

O concerto concluiu com a “Sinfonieta (Homenagem a Haydn), Op. 220” de Fernando Lopes Graça. Esta obra, que se reveste de uma estética neoclássica típica das décadas de vinte ou de trinta do século XX, parece-nos anacrónica por ter sido composta meio século depois por um compositor que escreveu algumas das obras chave do modernismo português. Devemos por isso recordar que Lopes Graça era um fervoroso admirador da música de Franz Joseph Haydn pela “sua frescura de invenção, a sua musicalidade sem refolhos, a sua natureza dadivosa de aldeão superiormente dotado para a sua arte” (palavras do compositor em entrevista dada a José Luís Borges Coelho em 1981). Sempre movido pelo seu forte espírito de liberdade criativa e de responsabilidade artística, Lopes Graça realizou um exercício de síntese estilística no qual se manteve fiel aos traços característicos da sua linguagem, demonstrando eventualmente uma desembaraçada postura pós-moderna, que não fica atrás de compositores mais jovens de então.

Neste concerto a orquestra tornou a demonstrar a sua versatilidade, interpretando com rigor e segurança três obras esteticamente muito distintas e escritas para formações diferentes. De igual modo o fizeram os vários instrumentistas concertantes nas obras de Pinho Vargas e de Lopes Graça. A direção do maestro Pablo Rus Broseta foi determinada e sensível. Em “Epóxi” destacamos a capacidade de imprimir a necessária fluidez discursiva sem prejuízo do equilíbrio orquestral e da transparência das texturas. Em “Six Portraits of Pain” demonstrou profundidade expressiva e um forte sentido dramático, fruto da concentração e da cumplicidade existente com os músicos. Numa obra que, nas palavras do compositor, evita o “habitual carácter atlético-virtuosístico do papel do solista”, o violoncelista Lucas Fels realizou uma interpretação determinada e segura, demonstrando versatilidade técnica e um forte sentido dramático, tanto nas passagens solistas como nas de natureza camerística. Já na “Sinfonieta”, obra que faz parte do repertório da orquestra, o maestro e a orquestra souberam articular com elegância e vigor a diversidade estilística da composição de Lopes Graça.

O Autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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