O O’culto da Ajuda, em Lisboa, ali em Belém, na Travessa das Zebras, é um lugar onde a criação actual faz novas amizades. No passado dia 3 de Maio, às 21h00, estrearam ali quatro novas peças. Música absolutamente nova, com os ouvidos postos nas possibilidades inauditas do som.
O concerto foi transmitido em directo para a Antena 2 e o radialista João Almeida, mesmo antes da rádio começar a emitir, disse algumas palavras para pôr o público à vontade e explicar como se iam passar as coisas. O concerto era interrompido por pequenas entrevistas com os compositores e as compositoras que diziam algumas palavras sobre as suas obras, não para as «explicar» (coisa felizmente impossível na arte), mas para abrir o apetite, dar pistas, criar condições de aproximação.
João Almeida não foi apenas simpático e comunicativo, mas disse uma frase importante, ao referir-se com exaltação à estreia de 4 novas obras e ao «privilégio» que era poder ouvi-las naquele espaço de «revelações», ainda pra mais com a presença de quem as compôs: «Essa experiência está no centro daquilo que é viver a arte – vamos descobrir!» A descoberta exige abertura do ouvinte, predisposição para a surpresa, para o entusiasmo ou o desagrado, mas sempre com ouvidos refrescados, atentos, disponíveis. Estamos prontos?
O concerto começou com uma peça novíssima de Mariana Vieira, «Retracement». Para o Sond’Ar-te Electric Ensemble interpretar ao lado da electrónica. Na pequena entrevista antes da obra, Mariana Vieira falou de «vestígios» e sugeriu que esses vestígios não eram motivos melódicos ou rítmicos, mas sons, os sons que os instrumentos uns com os outros escavam. Pista certeira, que nos levou à procura desses sons por encontrar, vestígios perdidos (quem sabe?) de acontecimentos passados. A obra da compositora (que aborrecimento para ela ter de ouvir sempre que é «jovem compositora») levou-nos para o interior dos sons, usando a electrónica numa estreita relação com aquilo que os instrumentos descobrem – ruídos imprevistos, diálogos quebrados, e qualquer coisa bela no trabalho «arqueológico» que vai revelando os tais «vestígios». Mas a peça parece ficar como que inacabada, como se fosse cortada de repente. Não termina sequer em reticências, mas subitamente, como se fizesse parte de um conjunto maior que o explicará depois. Será? Como se a vida estivesse em aberto – e a criação também.
Veio depois a obra de Pedro Junqueira Maia, «Desdobragem (Não é fácil falar das coisas que nos matam)». Um título que parte de duas obras de outras artes: o subtítulo entre parêntesis leva um verso de um poema de Manuel de Freitas e a «desdobragem» refere-se aos processos criativos do artista plástico Eurico Gonçalves (pinturas em grandes panos dobrados, que depois se desdobram revelando surpresas de linhas e cores). A peça faz também, musicalmente, os seus desdobramentos: «desdobra» o material de trabalhos anteriores do compositor, mas também de objectos e parâmetros que deles fazem parte. Desdobragem de gestos, de harmonias, de ritmos e instrumentações.
O que surge da longa peça de Pedro Junqueira Maia (cerca de 20 minutos de duração) é, na primeira parte, uma insistente viagem à volta de um tom dominante. E se a nota é a mesma, o que ressalta aos nossos ouvidos é o que é diferente – os sons que a envolvem, as harmonias cambiantes. Mas, subitamente, a desdobragem revela pedaços que tinham ficado escondidos, e emerge uma secção de uma poética surpreendente. Aqui se revela talvez qualquer coisa do subtítulo, pescado de um duro poema existencial de Manuel de Freitas que começa com «Não é fácil falar das coisas que nos matam». «Então é melhor estar calado», disse-nos o compositor brincando, no final do concerto.
Mas ele insiste, no acto criativo potenciado por estas afinidades plásticas e poéticas, que vale a pena resgatar qualquer coisa do passado: «Mas éramos novos, capazes de tudo. E agora, repara, em nenhum gesto acreditámos já», diz o poema de Manuel de Freitas. Mas Pedro Junqueira Maia acredita ainda, e a beleza emerge nesta segunda parte deste trabalho (harmónico, sobretudo), como uma surpresa esperançosa. Pelo menos foi isso que ouvimos na espantosa interpretação do Sond’Ar-te Electric Ensemble.
Bem diferente é a obra de Nuno Peixoto de Pinho, que poderia criticar-se simplisticamente por ter «ideias a mais». Mas será justo criticar quem tem muitas ideias, num tempo em que é preciso quem não desista de procurar e pensar? A verdade é que a força expressiva desta música também vem dessas muitas possibilidades apontadas, que o título sugere que podem ser modos de «Lutar contra a voz que esmorece». Um desafio à própria criação, sem dúvida, em tempos de pandemia.
As cordas (violino, viola e violoncelo) surgem muitas vezes como grupo uno, tocando em conjunto em arrancadas rítmicas enérgicas. Os sopros, o piano e a percussão levam frequentemente essa energia para outros ecos, os tais «das coisas que ficam» (como disse o compositor na mini-entrevista antes da obra ser tocada) e que não nos deixam esmorecer.
Quase oposta à forma de trabalhar a electrónica de Mariana Vieira, a peça de Nuno Peixoto de Pinho não procura a integração da electrónica com os instrumentos, mas assume-a como elemento exterior, quase fantasmático, pairando sobre o trabalho instrumental, trazendo à luz sombras, motivos e ideias, às vezes deslocadas, e fora do lugar esperado. Andará aqui o espectro do expressionismo, à procura de muitas saídas diferentes para um questionamento pessoal (para dentro) e criativo (para fora)?
A quarta estreia foi a da peça de Ângela da Ponte, mais uma vez bem diferente da anterior. Talvez a obra mais una e equilibrada (íamos dizer «coerente») das 4 estreias, na sua busca de uma beleza possível para os tempos de hoje. E que será certamente a peça preferida da noite para quem gosta da música que sabe integrar o lado lúdico na seriedade dos seus propósitos. Abstracta e «sem título», sem «retórica», mas com uma linguagem cativante, «Untitled #2», para um ensemble alargado (flauta, clarinete, violino, viola, violoncelo, piano, percussão e electrónica), é uma curiosa peça que nos remete para a frase do princípio, de João Almeida – viver a arte é uma descoberta. E aqui acrescentaríamos: uma re-descoberta de um prazer infantil, sem perder o que a música também é – uma brincadeira levada a sério. Ruídos electrónicos perturbam, ferem e interferem este «Untitled #2», mas o que fica é a memória do prazer dos sons que estes brinquedos fazem, da «chinfrineira» inicial até ao belo e calmíssimo final. E o Sond’Ar-te sabe fazer de tudo isto, admiravelmente.
Por fim, a única obra que não era uma estreia: uma peça de Miguel Azguime, que nos pareceu das mais radicais de todo o concerto. Radical no sentido em que vai à raiz dos problemas que a si mesmo coloca, leva as suas opções às últimas consequências, e faz escolhas precisas para arrancar a liberdade artística das extremas condições que a si mesmo se impôs. «D’un horizon tendu» (De um horizonte tenso, de 2019) é um «quarteto atípico» (piano, violino, clarinete, percussão) e, tecnicamente, mais uma reflexão musical sobre as infinitas possibilidades do microtonalismo, com um agregado harmónico microintervalar, exposto inicialmente em estranhos movimentos escalares, que se desmontará (antes de regressar no final), para criar um ambiente musical percussivo e impactante (para não dizer violento). As «ameaças à humanidade» de que o compositor falou na apresentação da sua peça não são audíveis, podem apenas inspirar a nossa audição metaforicamente. Mas uma atitude sem complacências e sem compromissos «moles», uma atitude criativa de máxima exigência e liberdade, isso sim, é bem audível nesta corajosa peça de Azguime.
Não é demais sublinhar a espantosa generosidade dos músicos do Sond’Ar-te Electric Ensemble (Sílvia Cancela na flauta, Nuno Pinto no clarinete, Vítor Vieira no violino, Jorge Alves na viola, Filipe Quaresma no violoncelo, Elsa Silva no piano, João Dias na percussão e Miguel Azguime na difusão sonora), dirigidos exemplarmente por Pedro Carneiro, que sabem entender e dar a ouvir tão diversificadas propostas estéticas (que são resultado de encomendas do próprio Ensemble, aliás).
Os compositores devem deixar a modéstia de parte – trazem ao mundo composições de suada e íntima criação, são fazedores do presente inquieto que é preciso renovar. Mas fazem bem em aplaudir os intérpretes quando sobem ao palco para agradecer também – afinal são eles e elas que fazem realmente a música viver. E quando tocam assim é porque perceberam tudo – a música do presente é um campo aberto, diverso, livre, mas também exigente e delicado. É preciso cuidar da liberdade.
Gravação do concerto disponível na secção Media – Vídeos: >> ligação
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