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A vida são dois dias
MANUEL PEDRO FERREIRA
2012.10.01

Dias 22 e 23 de Setembro fui ao Centro Cultural de Belém assistir a dois espectáculos do Festival Música Viva. O primeiro falava de uma “gotinha de água”; o segundo dizia: “Ce désert est faux”. E de facto, fui regado com múltiplos fios de imaginação criativa, despertando as sementes de vida que a rotina do dia-a-dia, o desgosto político ou a contrariedade profissional tendem a secar.

Em ambos os casos, os espectáculos foram concebidos como sequências cenicamente integradas, sem interrupção, e colocaram-se sob a égide de Constança Capdeville (1937-1992), que foi pioneira em Portugal desse conceito de actuação músico-teatral. No sábado, o Coro Infantil da Universidade de Lisboa (com a colaboração do respectivo Coro preparatório) começou precisamente com uma obra raramente apresentada de Constança, “O Natal do Anjinho dorminhoco” (1963), pequena história cénica contada por música, de exemplar sensibilidade e concisão. Seguiu-se um conseguido tríptico de Vasco Negreiros, “A Pulga; O Tigre; a Velha” (2007). A “Canção” de João Camacho (2011) e o surpreendente “Era uma vez” (2012) de João Lucena e Vale reafirmaram a vitalidade da criação actual, mostrando uma vez mais que, em mãos talentosas e exigentes, a complexidade artística é perfeitamente compatível com a eficácia comunicativa. Três obras mais antigas mas sempre frescas de invenção (dois arranjos de Fernando Lopes-Graça e “Fuga geográfica” de Ernst Toch) foram ainda ocasião para o CIUL demonstrar, sob a direcção inspiradora de Erica Mandillo, a sua excelência interpretativa.

Completou a primeira parte do espectáculo uma composição de Simão Costa sobre história de Isabel Martins, “Quando eu nasci” (2010), para recitante (Ágata Mandillo) e electrónica em tempo real. Juntamente com a obra multimédia de Miguel Azguime que ocupou a segunda parte, “A Menina Gotinha de Água” (2011), permitiu-nos apreciar a capacidade de colocar os meios electrónicos a dialogarem criativamente com o discurso falado e o canto, construindo ambientes bem caracterizados e sugestivos. Ficámos contudo com a sensação, possivelmente derivada de outros paradigmas, de que o tempo desse diálogo é por vezes demasiado prolongado, e a polifonia de ideias, menos densa do que em composições intensamente moldadas pela agilidade da escrita.

Agilidade de escrita, correspondente a uma divinal fúria imaginativa, é certamente o que não faltava a Constança Capdeville. O permanente defraudar de expectativas que ela praticava advinha de um profundo inconformismo, e ligava-se a uma pulsão surrealista que brotava naturalmente: o surrealismo era-lhe ideológica e biograficamente próximo (lembrava-se até de frequentar a mesma praia de Salvador Dali). A isto acrescia a sua abertura às músicas do mundo, o seu largo conhecimento da tradição musical ocidental, que convocava amiúde em peças novas, e um ouvido educado na lição da música concreta, que lhe permitia integrar no discurso, e manipular livremente, qualquer tipo de som. A sua imersão na matéria sonora, o seu enorme gosto pelas matizes de altura e de timbre, conviviam porém com uma espiritualidade diáfana, que, junto ao seu invulgar poder de penetração intelectual, sustentavam uma paradoxal distanciação crítica.

O espectáculo concebido por António Sousa Dias, discípulo de Constança, com base em várias das suas obras (“Momento I”, de 1974, e seis partituras compostas entre 1986 e 1989) foi plenamente conseguido, com a colaboração do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (dirigido por João Paulo Santos) e de outros antigos amigos da compositora: Nuno Vieira de Almeida (piano), Luís Madureira (canto), Carlos Martins (saxofone), Pedro Wallenstein (contrabaixo) e João Natividade (movimento). Pena é que não haja um projecto de recolha de informação interpretativa que permita passar às novas gerações a possibilidade de reconstituir musical e cenicamente grande parte da obra de Constança, cuja montagem, sendo frequentemente disjunta ou dependente de indicações momentâneas e associada a uma escrita parcialmente indeterminada, coloca hoje grandes dúvidas de realização. Vinte anos após a sua morte, essa seria talvez a maior homenagem.

 

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