Foto: Daniel Martinho
Questionário/Entrevista
· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/musicais, destacando um ou vários aspectos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·
Daniel Martinho: Não tenho raízes familiares directamente ligadas à música enquanto prática profissional ou à música erudita, mas, desde cedo, a escuta e o interesse musical estiveram presentes como parte natural do ambiente familiar. O meu pai teve um papel determinante nesse despertar: foi por meio dele que conheci o rock progressivo dos anos 70 — Pink Floyd, Yes, Genesis, King Crimson —, universos sonoros que me fascinaram pela riqueza tímbrica,pela complexidade formal e pela imaginação estrutural. Essa fase marcou profundamente a forma como, mais tarde, viria a entender a música como arte de transformação e descoberta.
O gosto pela música clássica surgiu mais tarde, por volta dos dezasseis anos, coincidindo com o início do estudo da guitarra clássica e com o contacto com repertórios e linguagens da música erudita. A partir daí, a escuta de compositores como Claude Debussy, Igor Stravinsky e Arnold Schoenberg abriu-me horizontes estéticos e técnicos que moldaram o meu percurso até aos dias de hoje.
Essas referências, aparentemente distantes — o experimentalismo do rock progressivo e a complexidade do modernismo —, acabaram por se fundir na minha linguagem actual, na procura de uma música que combine estrutura, imaginação e uma constante vontade de explorar o som como matéria viva.
· Quando percebeu que se dedicaria à composição? ·
DM: Com 17 anos, eu e mais três amigos formamos uma banda cujo principal objetivo era criar uma música diferente daquela que já conhecíamos. Queríamos, de alguma forma, afastar-nos do contexto que nos era familiar e explorar novas possibilidades sonoras.
Após a conclusão do 12.º ano, o primeiro curso superior em que ingressei foi o de Design, na Universidade de Aveiro. Aí tive a oportunidade de frequentar a disciplina de Movimentos Artísticos Contemporâneos, na qual eram abordadas as diferentes correntes artísticas do século XX — na música, nas artes plásticas, no cinema e na arquitectura.
Como sempre me fascinou o inesperado na música — o não expectável, as novas sonoridades, timbres e técnicas —, ao ser confrontado com as obras de Claude Debussy, Igor Stravinsky, Arnold Schoenberg, entre outros, fiquei absolutamente fascinado. O gosto crescente pela escrita musical despertou em mim o desejo de compreender e criar esse tipo de música.
Assim, aos 18 anos, decidi tornar-me compositor, decisão que nasceu directamente dessa experiência marcante. Dois anos mais tarde, ingressei na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo no Porto, ESMAE, na licenciatura em Composição.
· O seu caminho é traçado de acordo com um plano? Sabe, por exemplo, que, daqui a «x» anos, vai cumprir os objectivos «y»? Ou acha a realidade demasiado caótica para estabelecer tais determinações? ·
DM: Não tenho, propriamente, objectivos muito claros nem um plano traçado a longo prazo. O que procuro é continuar a compor, a descobrir e a aprofundar a minha própria «voz musical». Acredito que esse processo de descoberta nunca está concluído — é algo em constante transformação, influenciado pelas pessoas com quem trabalho, pelas obras que ouço e pelas experiências que vou acumulando.
Nos dias de hoje, com a instabilidade e a imprevisibilidade que caracterizam o meio artístico, é difícil definir um percurso com metas fixas. Prefiro encarar o caminho como algo orgânico, que se vai construindo de forma natural. Ainda assim, há sempre uma direcção: a de procurar coerência e autenticidade naquilo que crio, mesmo quando o rumo não está totalmente traçado.
· Quais são as suas principais preocupações artísticas e criativas no presente? ·
DM: Interessa-me sobretudo a integração equilibrada entre acústica e electrónica — não como ornamento, mas como estrutura integral. Procuro também encontrar estratégias de comunicação que permitam à música contemporânea falar com públicos diversos, sem comprometer a sua complexidade estética.
Além disso, preocupa-me manter uma voz pessoal dentro de um universo técnico cada vez mais vasto, onde a tecnologia pode facilmente sobrepor-se à intenção artística. O desafio é manter o foco no essencial: a expressividade e a comunicação do som enquanto linguagem poética.
· Em que medida a circulação entre os universos acústico e electroacústico tem vindo a enriquecer a criação musical das últimas décadas? A sua música é influenciada por estas duas práticas? ·
DM: A circulação entre acústica e electroacústica abriu possibilidades tímbricas e formais que eram impensáveis: processamento em tempo real, camadas de texturas impossíveis de obter apenas com instrumentos e a capacidade de redesenhar relações de causa-efeito sonoro (o som gerado electronicamente pode comandar a escrita acústica e vice-versa). No meu trabalho, a electrónica funciona muitas vezes como matriz ou «coluna vertebral» — ora criando ambientes que condicionam a escrita instrumental, ora conversando em pé de igualdade com os intérpretes. Na minha opinião, este diálogo enriquece a forma como componho (pois tenho mais recursos expressivos) e também a experiência auditiva do público.
· Como descreveria o timbre da sua música? Acha que nela se encontram os seus interesses musicais da juventude? ·
DM: O timbre na minha música é central: procuro texturas ricas, transições contínuas de cor e colisões entre fontes sonoras que criem novas «cores» resultantes. Há um equilíbrio entre densidade e clareza; momentos estáticos de suspensão contrastam com explosões tímbricas.
Parte desse fascínio vem da juventude — do interesse por novas sonoridades e pela manipulação electrónica do som —, mas hoje é sustentado por uma abordagem mais madura, analítica e consciente do papel do timbre como elemento estrutural e expressivo.
· Quais são as fontes extramusicais que podem servir de ponto de partida, de inspiração ou de suporte para a sua composição musical? ·
DM: Fontes literárias, imagens/pintura, experiências de espaço arquitectónico, e contextos socioculturais. Quando existem, uso-as como pontos de atrito (oposição) ou de intersecção (concordância) — uma imagem que sugere forma, um texto que fornece um ambiente sonoro.
De modo geral, gosto e prefiro usar fontes extramusicais, mas também há casos em que a escuta e o material sonoro são a única semente. Nesses casos, gosto que seja o público a procurar ou a definir as suas próprias fontes extramusicais.
· Na sua opinião e de acordo com a sua postura estética e experiência, o que pode exprimir um discurso musical? ·
DM: Acredito que um discurso musical pode exprimir tudo o que os outros sentidos não conseguem captar. A música tem a capacidade de revelar dimensões da experiência humana que escapam à linguagem verbal ou à imagem visual — sensações, ideias e emoções que só o som pode tornar perceptíveis. Nesse sentido, compor também é descobrir: encontrar novos modos de sentir e de pensar por meio da escuta.
Identifico-me com o conceito de «música absoluta» formulado por E. T . A. Hoffmann a propósito da Quinta Sinfonia de Beethoven — a ideia de que a música, ao não depender de palavras, é a arte que mais directamente exprime o inefável. A força de um discurso musical reside justamente aí: na possibilidade de significar sem traduzir, de sugerir mundos interiores e sociais, de criar sentido a partir do som e da sua organização no tempo.
· Em que medida os novos instrumentos electrónicos e digitais abrem caminhos e quando podem se tornar constrangedores? ·
DM: A tecnologia abre caminhos enormes: novos timbres, controlo gestual, espacialização e interacção remota, por exemplo. Torna-se constrangedor quando substitui o pensamento estético pelo fascínio técnico — quando o objectivo é usar a novidade por si só. Também pode criar dependências (hardware/software obsoletos, fragilidades na execução) condicionando a execução e a circulação da obra. O desafio é manter a tecnologia ao serviço da concepção musical.
· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem elementos indissociáveis da criação musical e, de modo geral, da arte? ·
DM: Invenção e pesquisa permitem ampliar o vocabulário artístico, fornecer instrumentos conceptuais para novas expressões e evitar a estagnação. Pesquisa (acústica, instrumental, tecnológica, entre outras) alimenta a invenção prática que, posteriormente, aponta caminhos inesperados. Juntas sustentam uma criação que é simultaneamente consciente e ousada.
· Como ouve música? É um processo mais racional ou mais emocional? ·
DM: Inicialmente, ouço música de forma emocional, quase intuitiva, e só depois essa escuta passa, involuntariamente, para uma dimensão mais analítica. No entanto, muitas vezes acontece o contrário: a componente analítica — a atenção às técnicas, estruturas e harmonias — acaba por me conduzir à emoção musical.
Diria que, neste caso, razão e emoção não se opõem; complementam-se e alimentam-se mutuamente. Ouvir música é, para mim, uma experiência em que compreender é uma forma de sentir e sentir é também uma forma de compreender.
· Na sua actividade, existe oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·
DM: De um modo geral, penso que não, mas, por vezes, a profissão impõe prazos, condições e limitações; por outro lado, a vocação floresce no tempo livre, quando há espaço para o risco e para a experimentação. Tento reduzir essa dualidade integrando as responsabilidades profissionais no próprio processo criativo.
Para mim, a profissão é o solo que alimenta a vocação — ambas coexistem, em tensão e em equilíbrio, numa gestão constante entre disciplina e liberdade.
· Prefere trabalhar sozinho, na «tranquilidade do campo», ou no meio do «alvoroço urbano»? ·
DM: O isolamento do campo é, para mim, o ideal. O silêncio e a distância do ritmo urbano permitem uma escuta mais atenta e uma concentração profunda — condições que favorecem o trabalho composicional.
No entanto, como vivo numa cidade, tento trazer o campo para a cidade: criar espaços de recolhimento interior, mesmo no meio do movimento e do ruído, e transformar essa energia urbana em matéria criativa. Acredito que o equilíbrio entre introspecção e estímulo externo é o que mantém o trabalho vivo e em constante renovação.
· Seleccione e destaque três obras do seu catálogo, justificando a sua escolha. ·
DM: Antologia do Tempo (tríptico: Génese; Ritual; Apogeu), uma obra composta em 2010, marcou um ponto de viragem no meu percurso, por representar a síntese da minha formação enquanto estudante de composição. Nesta obra, comecei a integrar, de forma consciente, ideias formais, harmónicas e tímbricas que até então surgiam de forma mais intuitiva. Foi um momento de afirmação estética e de maturidade estrutural.
Sonho (para o Sond’Ar-te Electric Ensemble), uma peça escrita em 2014, é um dos primeiros exemplos concretos da integração entre electrónica (em suporte e em tempo real), narração e escrita instrumental. Representou também um desafio particular: comunicar, por meio de uma linguagem contemporânea, a um público mais jovem, mantendo a exigência técnica e conceptual.
The Colour of a Time… (para orquestra e electrónica), escrita em 2015, pode ser vista como uma síntese das duas obras anteriores. Nela, as ideias formais, tímbricas e expressivas desenvolvidas em Antologia do Tempo e Sonho convergem numa linguagem mais pessoal e interior. É uma obra em que a relação entre cor, tempo e memória se torna central, evidenciando uma maior maturidade na busca por uma identidade sonora própria.
· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projectos artísticos para os próximos anos? ·
DM: Neste momento, concentro-me em aprofundar a relação entre acústica e electrónica: projectos que exploram o processamento em tempo real, aliado a práticas improvisatórias controladas e composições para ensembles em que a electrónica é matriz estrutural. Nos próximos anos, pretendo continuar a compor obras de câmara e orquestra, desenvolver projectos pedagógicos que aproximem públicos jovens da música contemporânea e, porventura, avançar com uma candidatura a doutoramento.
· Tente avaliar a situação das compositoras e dos compositores de música erudita contemporânea em Portugal, indicando as principais preocupações nessa área. ·
DM: A situação das compositoras e dos compositores em Portugal reflecte, em grande medida, as características do próprio meio cultural português: um contexto rico em talento e dedicação, mas ainda com algumas limitações estruturais. Existe uma nova geração muito activa, com percursos estéticos e académicos diversos, e embora o espaço de difusão tenha vindo a crescer, ainda continua reduzido. A programação regular de música contemporânea ainda é escassa, e a ligação entre criação, interpretação e público carece de maior continuidade e investimento.
Há um esforço crescente para a descentralização e a criação de redes — festivais, residências artísticas, grupos especializados — que têm vindo a fortalecer o tecido artístico, mas é preciso consolidar estas iniciativas a longo prazo. As principais preocupações passam por uma valorização efectiva da criação contemporânea na política cultural, por uma maior articulação entre instituições e, acima de tudo, pela necessidade de formar e fidelizar públicos para a música de hoje.
· Se não tivesse seguido o caminho da composição musical, que outros caminhos teria escolhido? ·
DM: Sempre tive uma inclinação natural para as artes; por isso, foi provável que seguisse um percurso igualmente ligado à criação visual ou conceptual. A arquitectura e o design foram, em determinado momento, possibilidades reais — áreas que, tal como a música, combinam estrutura, intuição e sensibilidade estética.
Ao mesmo tempo, sempre me fascinou o universo da programação e da informática. O pensamento lógico, a construção de sistemas e a experimentação com algoritmos têm pontos de contacto com a composição musical: todos implicam rigor, criatividade e a capacidade de imaginar soluções dentro de um quadro de regras. Talvez por isso, se não fosse compositor, procuraria um campo em que pudesse continuar a criar — seja por meio do som, da forma ou do código.
· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está repleta de nascimentos, rupturas, mortes, renascimentos, continuidades, descontinuidades, outras rupturas e por aí fora… Num exercício de «futurologia», conseguiria antever o futuro da música de arte ocidental? ·
DM: Podemos, talvez, esboçar algumas tendências que já se começam a desenhar. A primeira é a hibridização contínua: as fronteiras entre géneros, entre o erudito e o popular, entre o acústico e o electrónico, continuarão a esbater-se. Essa mistura de linguagens e contextos é hoje uma das principais forças criativas da música contemporânea.
Os avanços da tecnologia — como o áudio espacial e os sistemas ambisónicos — e a investigação tímbrica em novos instrumentos e interfaces possibilitam a inovação em elementos estruturais da composição e da performance. A tecnologia continuará a afirmar-se como uma verdadeira parceira criativa. Ferramentas como a inteligência artificial, a síntese avançada e as interfaces gestuais expandem o vocabulário do compositor, mas também colocam um desafio estético e ético: o de manter uma agência crítica e uma dimensão humana nesse diálogo entre arte e máquina.
Acredito ainda que o futuro da música passará por formatos mais participativos e por experiências performativas que envolvam diretamente o público — como obras interativas, contextos site-specific e cruzamentos entre disciplinas artísticas. Paralelamente, temas como a sustentabilidade, a ética na produção artística e a inclusão social ganharão cada vez mais relevância, refletindo uma consciência cultural mais ampla.
Acredito que o futuro da música de arte será plural, tecnológico e orientado para a experiência sensorial — mas, independentemente dos meios, o elemento humano — a intenção, o afecto e a crítica — continuará a ser o que verdadeiramente determina a relevância das obras.
Daniel Martinho
Novembro de 2025
© mic.pt
| Cyclus (2024) Gravação da estreia, na interpretação do Sond’Ar-te Electric Ensemble, sob a direcção de Pedro Carneiro. Festival Música Viva 2024, 4 de Maio de 2024, O’culto da Ajuda, Lisboa. |
Stellar (2017) Na interpretação da Orquestra de Sopros do DeCA, sob a direcção de Francisco Ribeiro. 12 de Junho de 2023, Auditório do DeCA, Universidade de Aveiro. |
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| The Colour of a Time... (2015) Gravação da estreia, na interpretação do percussionista André Dias, da Orquestra Sinfónica da Academia de Música de Costa Cabral, sob a direcção de José Eduardo Gomes. 24 de Julho de 2015, Sala Suggia, Casa da Música, Porto. |
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Sonho (2014)
Na interpretação do Sond’Ar-te Electric Ensemble, Ágata Mandillo (narradora), Pedro Neves (maestro). CD: Sond’Ar-te Electric Ensemble — Diz-Concerto [ed. Miso Record · MCD39.15].
Antologia Do Tempo 1 — Génese (2010)
Gravação da estreia, na interpretação do Quarteto de Cordas de Matosinhos. 20 de Março de 2012, Casa da Música, Porto.
Antologia Do Tempo 2 — Ritual — fluxo contínuo (2010)
Gravação da estreia, na interpretação do Remix Ensemble Casa da Música, sob a direcção de Peter Rundel. 23 de Outubro de 2010, Casa da Música, Porto.
Antologia Do Tempo 3 — Apogeu (2010)
Na interpretação da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, sob a direcção de Pedro Neves. 20 de Novembro de 2010, Casa da Música, Porto.