Para assinalar os 50 anos que José Luís Ferreira teria feito a 31 de agosto, em setembro este compositor, músico, professor e performador de música eletrónica, está Em Foco no MIC.PT.
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Segundo Manuel Rosenthal, Ravel definia o seu Bolero (1928) como uma "partitura sem música”. Tudo tinha começado por uma encomenda ao compositor (da célebre bailarina e empresária Ida Rubinstein), que no entanto, três semanas antes da estreia, ainda não estava composta. Parece que Ravel teria acalentado a ideia de orquestrar partes da Iberia de Albéniz, mas, por não ter obtido a autorização dos herdeiros do mestre espanhol a tempo, a situação tinha-se arrastado. E de repente – com os cartazes na rua a anunciar um novo ballet – ao nosso compositor não restava senão uma alternativa: escrever uma peça onde não houvesse realmente grandes problemas composicionais a resolver, e fazer rapidamente algo que resultasse, usando um dos recursos mais prestigiados do seu enorme métier: a orquestração (e neste sentido o Bolero é um verdadeiro tratado). Quanto à famosa forma com a repetição obsessiva do mesmo tema – apesar de tudo uma longa melodia dividida em duas partes interessantes – não é meramente primitiva, mas tem raízes na tradição clássica, sobretudo naquelas formas baseadas em danças curiosamente de origem ibérica : a chaconne, a passacaglia, o ostinato e o bolero (Chopin compôs um).
No meu ponto de vista, o Bolero ainda tem outros aspectos interessantes, como um certo dadaísmo residual, não necessariamente aquele relacionado com a ideia de um “fim da arte” à maneira de Duchamp ou de Schwitters, mas mais como um Satie ou um Schulhoff, com a introdução de elementos de “baixa cultura”, de paródia e de provocação para “épater le bourgeois” (que aliás tem em França antecedentes em Offenbach ou em Chabrier). No fim da vida, Ravel, gravemente doente e incapacitado para trabalhar, mantinha-se lúcido embora apático. Os amigos faziam tudo para o distrair, levando-o a Marrocos ou a escutar concertos com a sua música transmitidos pela rádio. Conta-se que uma dessas vezes, depois de ouvir o Bolero, ao contrário do que era habitual nos últimos tempos, Ravel começou a rir de uma maneira diabólica declarando: “Ah! Quand je pense quelle bonne blague j’ai jouée au monde musical!”.
No meu arranjo para plásticos (1997) – que metaforicamente também é um tratado sobre as possibilidades dos toy instruments – tentei reacender a frescura dadaísta dos primeiros tempos do Bolero, antes de o cinema, a televisão, a rádio, o disco e a sociedade de consumo em geral terem transformado essa obra singular numa espécie de dança sexual e num produto banal, insuportável e cabotino.
José Eduardo Rocha