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Ângela Lopes


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Questionário/ Entrevista

· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspetos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente ·

Ângela Lopes: Nasci num meio onde as músicas que se ouviam eram, sobretudo, as de cariz popular e folclórica, portuguesas, ou as músicas dos géneros do pop-rock, pop tradicional, rock clássico, art rock, rock progressivo ou rock'n'roll, britânicas, mas também música popular brasileira, a Bossa nova ou o samba. Meu pai era um músico amador, que tocava «de ouvido» instrumentos musicais como a harmónica ou a gaita de boca, o acordeão, o órgão ou o piano. Desde os 16 anos que tocava em serões de desfolhadas ou outros bailaricos das aldeias, primeiro com a sua gaita de boca e depois com o seu acordeão, a solo. Participou nas trupes (troupes) dos “Cantar os Reis”, integrou, desde a sua fundação, em 1960, o “Grupo Folclórico da Ribeira de Ovar”, grupo etnográfico criado a partir das marchas sanjoaninas e que se dedicava a apresentar os cantares e as danças folclóricas da região, bem como os trajes tradicionais da região essencialmente rural de lavradores e de pescadores, lugares de terra, de mar e de ria. Formou, ainda, a partir de finais da década de 50, conjuntos musicais como os “Amigos do ritmo”, “Os dangers”, o “Status”, designação claramente influenciada pela banda de rock britânica formada em 1962, “Status Quo”, ou, ainda, o conjunto típico “Os Ramboias”. Conjuntos de bailes, de festas populares ou de romarias. Paralelamente, meus irmãos, mais velhos, éramos seis filhos em casa e por isso a festa era grande, escutavam as principais bandas formadas nas décadas de 60 e 70, o top da altura, essencialmente rock britânico, como Queen, Supertramp, The Beatles, Dire Straits, Status Quo, entre outros. Enquanto isso, minhas irmãs, também mais velhas, cantavam os hits das telenovelas brasileiras, a primeira “Gabriela”, na década de 70, que, curiosamente, interrompeu uma das sessões de trabalhos da Assembleia da República (!). A propósito, encontrei na internet esta declaração escrita da altura: «[Só a “Gabriela”] realiza o milagre de juntar toda a gente, à mesma hora (incluindo os que consideram o PS o partido mais esquerdista deste mundo e do outro), em frente do televisor e, pelos vistos, por mais que isso nos espante, com sentimentos semelhantes…», escrevia Mário Dionísio numa crónica publicada no semanário “O Jornal”, em agosto de 1977. Já, o jornal “O Estado de S. Paulo”, de Outubro de 1977, escreve: “Há quem diga, inclusive, que Soares (Mário) teve o cuidado de esperar que a novela acabasse para aparecer na televisão anunciando as medidas de austeridade do 25 de agosto.” Outras telenovelas se seguiram com sucessos musicais como “O casarão”, “Escrava Isaura”, “O astro”, “Dancin’Days”, “Sinhazinha Flô”, ou “Dona Xepa”. Êxitos de Gal Costa, Maria Bethânia, Fafá de Belém, Elis Regina, Rita Lee, ou Chico Buarque. Adormeci algumas noites embalada por estes temas telenovelescos. A presença da música brasileira era normal numa família cuja emigração dos anos 50 leva para o Brasil, essas terras de Vera Cruz, grande parte da minha família materna. A minha irmã mais velha costumava, ainda, cantar de forma amadora nas festas da empresa Philips, onde era funcionária, estes e outros temas, bem como em festas de Natal, e outras, ou mesmo no corso carnavalesco de Ovar. Não posso esquecer, ainda, a presença que a rádio tinha, em casa, ligada todo o dia em diversas emissoras, não dedicadas, e que passava os êxitos da época.
Já a dita música clássica também fez parte das minhas escutas antes mesmo de iniciar os meus estudos musicais. Meu irmão mais velho estudou piano, mas pouco o ouvia, na verdade! Pelos meus oito ou nove anos dei os primeiros passos nos estudos clássicos numa escola privada, com Edwiges Pacheco, nascida no Brasil, neta e filha de ilustres figuras da cultura vareira (Ovar), António Dias Simões, um dos fundadores da tradição do “Cantar os Reis”, hoje Património Cultural Imaterial, também historiador, poeta, dramaturgo, comediógrafo, pintor, miniaturista e calígrafo, e Amélia Dias Simões. Família burguesa de Ovar contava ainda com os primos Zéni d’Ovar e Clara d’Ovar, esta última cantora, escritora, produtora e atriz de cinema, casada em segundas núpcias com Peter Oser, bisneto do magnata e multimilionário John D. Rockefeller. Os meus estudos clássicos prosseguiram na Academia de Música de Santa Maria da Feira, uma escola pioneira na descentralização do ensino da música, onde permaneci até à conclusão do liceu.
Na verdade, a minha infância passou-se entre dois mundos que se cruzavam no dia a dia, o feminino, aqui representado pela minha mãe e irmãs, o lar, a delicadeza, os cuidados maternais, as professoras (na maioria) e o masculino, o meu pai e irmãos, e mesmo os empregados de uma oficina, sempre homens, num mundo de homens clientes. Ser compositora e estar ligada ao mundo das eletroacústicas, numa época em que eram mais os homens presentes, do que as mulheres, não foi estranho. Eram-me familiares muitos desses mundos masculinos habituada já a discussões sobre música ou o hardware eletrónico musical, como se falaria atualmente.
Se tudo isto me definiu, e me constituiu quem eu sou no presente? Talvez, ou talvez não tanto. Tivesse eu nascido noutro seio familiar, educacional e cultural e com certeza não seria a mesma, mas acredito que o ser de cada qual está muito mais na alma intrínseca do que nas influências do meio de criação.

· Que caminhos a levaram à composição? ·

AL: Com este historial, nada antevia que um dia pudesse enveredar pelo mundo da composição e, em particular, no mundo clássico. Os meus estudos iniciais da Composição (e da Análise) foram na Academia de Música de Santa Maria da Feira na, ainda, atual disciplina de Análise e Técnicas de Composição com o Professor Nuno Ramos. Uma personalidade sui generis, professor de música no ensino regular e também professor na Academia. Poeta popular, «autor das letras e das músicas» dizia-se, ensinava a compor baixos cifrados essencialmente, ou é do que melhor me lembro. Aluna dedicada, cumpria todas as tarefas sem pensar muito no ato criativo que ali se impunha. Nestes exercícios escolares, seduzia-me a organização e a concatenação dos sons e das harmonias, num espírito racionalista de ver a música. Aprendi a mestria dos sons. Foi, mais tarde, já no Curso Superior de Composição que descobri a música pelo ato criativo e pela singularidade da arte, sem esquecer a importância do rigor e da mestria ou técnica na arte de compor. Cândido Lima, compositor e professor na ESMAE, desafiador por natureza, abriu todo um mundo novo. (Re)pensar os fundamentos da música, abrindo caminho a novas leituras, estudos, audições e o conhecimento de um mundo contemporâneo ao qual eu era leiga. Iannis Xenakis (primeira obra analisada em aula “Metastasis”), Pierre Boulez, Anton Webern (e a análise inesquecível do “Concerto Op. 24”), Alban Berg, Pascal Dusapin, Olivier Messiaen (primeira obra do século XX que ouvi foi “Quatour pour la fin du temps”, na biblioteca da ESMAE, cumprindo uma das tarefas de aula), Luigi Nono (com a audição durante os Encontros de Música Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian, talvez em 1995, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, “Prometeo. Tragedia dell'ascolto”), entre outros génios do século XX, mas também Mussorgsky (“Chants et danses de la mort”, ciclo de canções ouvidas e analisadas um dia em aula, inesquecíveis!) ou Janáček (estudado em “Músicas comparadas” 1, “Journal d’un disparu”), ou as “Vésperas” de Monteverdi (“Vespro della Beata Vergine”), ou Gesualdo a propósito do cromatismo. Ou a recomendação de leituras, “Le style et l’idée” de Arnold Schoenberg “La técnica del contrappunto vocale nel cinquecento” (Edizioni suvini zerboni – Milano), livro comprado numa das viagens, a Itália, do meu irmão mais velho, e que utilizo até aos dias de hoje como uma referência no estudo do contraponto do século XVI, “Il faut être constanmment un immigré/Entretiens avec Xenakis” (François Delalande), entre tantos outros. Música, filosofia, ciências, matemática, linguística, tantos e tantas foram os temas e as matérias desafiantes abordadas nas aulas de Composição, mas também de História da Música Contemporânea, com Álvaro Salazar, Eletroacústica, com Virgílio Melo, Formas e Técnicas e Orquestração com Filipe Pires, ou Análise Musical com Miguel Ribeiro Pereira. Durante o curso superior desenvolvi uma série de projetos alguns dos quais apresentados fora do contexto escolar. “Cantique” (1999/ 2000), obra para Audiovisuais (luz/ som) estreada no Instituto Franco–Português em Lisboa, ou “Harmonium” (2000) e “Canção de Izis” (2000) apresentadas durante as edições do Festival Música Viva 2000 e 2001. O caminho foi surgindo naturalmente. “Caminantes, no hay caminos. Hay que caminar” inscrição ou graffiti presente num mosteiro do século XIII em Toledo, Espanha, e utilizada por Luigi Nono na sua obra “No hay caminos, hay que caminar… Andrej Tarkovskij”, e que bem ilustra que os caminhos se vão fazendo. Não destinei nada. Talvez com um pouco de sorte à mistura! Quando concluí o meu CESE/ DESE, Diploma de Estudos Especializados da Música, surgiram oportunidades, e aqui deixo um agradecimento enorme ao Miguel Azguime (e Paula Azguime), pela aposta numa jovem recém-licenciada e ainda sem grandes provas dadas, aquando à encomenda da obra “COOR” (Setembro/ 2003) para clarinete baixo e eletroacústica estreada no Festival Música Viva, desse ano. Com ou sem encomendas seguiram-se outras obras como, por exemplo, “DUAL” (2004) para flauta e piano, numa iniciativa da autora, estreada anos mais tarde pelas distintíssimas Monika Stretitová e Sofia Lourenço e editada em CD, com o título homónimo “Dual”, isto em 2008, pelo Engenho das ideias/ Phonedition, CD com obras de Álvaro Salazar, meu ex-professor, da ESMAE, hoje um amigo. Em simultâneo, fui desenvolvendo projetos na área da assistência técnica no campo das “electroacústicas” junto do compositor Cândido Lima. Já o havia feito, ainda enquanto estudante, quer com o compositor Cândido Lima, na realização de programação e projeção da obra “Gestos-Circus-Círculos”, 2001 (enquanto fazia melhoria de nota na disciplina de Orquestração e escrevia a obra “Sequência”), estreada no Teatro Helena Sá e Costa, quer com o compositor Virgílio Melo, na projeção do som da peça “Circuitus” e na produção e projeção da ópera “Alletsator XPTO” com libreto de Pedro Barbosa criado com texto electrónico sintetizado em computador, de Virgílio Melo, estreada em 2001, no Teatro Helena Sá e Costa. Nos mesmos anos, 2000 e 2001, e ainda em fase estudantil, fiz parte de um grupo de música misto, fundado pelo compositor Virgílio Melo, MC47, tendo sido apresentadas obras como, por exemplo, “Mikrophonie 1” de Karlheinz Stockhausen.
Há caminhos que não têm retorno.... e sou feliz! (final da minha obra “Fado d’Arada” para soprano e piano, agosto/ 2013).

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objectivos «y»? Ou acha a realidade é demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

AL: A realidade pode ultrapassar a ficção. Quem imaginava, há alguns anos atrás, que um dia ficaríamos todos em casa, em confinamento, e que o mundo parava por causa de um vírus vindo da China? Isto é ficção científica ou o argumento de um filme. Até hoje, o caminho vai sendo percorrido ao sabor dos projetos que vão surgindo, muitos deles influenciando o meu percurso enquanto autora e compositora. Em maio de 2020 recebi um convite por parte do flautista Gil Magalhães para escrever, ou adaptar, uma obra para flauta transversal utilizando as técnicas tradicionais da flauta do norte da Índia – Bansuri. A integrar a sua performance e dissertação de doutoramento, pretendia que, além dos tratamentos técnicos típicos de uma certa cultura extraeuropeia, a obra fosse representativa de uma expressividade e ornamentação típicas da região norte da Índia, isto à luz de uma linguagem contemporânea europeia. Mundos, por mim, inexplorados, mas comuns em outros autores da nossa cultura ocidental como um dos seus maiores exemplos: Olivier Messiaen. O desafio, aceite, levou-me à investigação de uma nova cultura e de um novo modo de compor. “Mahâr” (2020), para flauta transversal e electroacústica, nasce, assim, em forma Kayal, baseada no Râga Sujani Malhâr (um dos modos de chuva) e nos modos ritmos ou Tâlas: Ekatâla e Tìntâla; e utilizando algumas das ornamentações tradicionais do norte da Índia. Música contemporânea europeia influenciada por outras culturas, como é este caso, encontramos em vários autores da música do século XX: Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Olivier Messiaen, György Ligeti, entre outros. Outra obra, recente e desafiante para a compositora, colocandoa em mundos inéditos e singulares e obrigandoa, mesmo, a repensar a sua criação musical é “Au-delà The blue – Pelo outono”, uma obra de novembro de 2021 escrita para um bidão, um tongue-drum artesanal, testos, uma taça tibetana ou um copo de vidro e um espantaespíritos, com amplificação, reverberação e eletroacústica. “Audelà The blue – Pelo outono” é uma encomenda do percussionista Nuno Aroso e inserese no projeto “Materis | Asperes”. Tal como escrevo na nota explicativa da obra, «A obra parte de um material primário e rude com o qual se constrói um mundo sonoro musical. Tratase de um drum metálico, ou um típico bidão de armazenamento de matérias fósseis, ou outras, em torno do qual tudo gira. Desta matéria não nobre, deste não instrumento musical, extraise uma nova vida. (...) .» É um mundo de combinação da escrita e da improvisação, um trabalho de diálogo entre compositor e intérprete. Obra que vai no sentido da música de improvisação e do experimentalismo sonoro. Um novo mundo para a autora.
Claro que tenho intenções de projetos de escrita de obras não impulsionados por fatores externos sejam encomendas, convites, desafios ou outros. Mas esses vão aguardando na fila a sua vez. Ou vou-os adaptando às solicitações.

· No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical? ·

AL: O discurso musical é um discurso abstrato, a linguagem musical é abstrata. A menos que a expressão do pensamento musical venha acompanhada pela expressão do pensamento pela palavra, seja pela escrita de uma nota prévia e descritiva à obra musical (nota de programa), seja pela inclusão de um texto cantado, recitado, falado etc. Poderemos usar outros sinais, mais ou menos convencionais na linguagem musical para que a expressividade seja mais eficaz. Como faziam os antigos compositores da renascença, com os madrigalismos, ou outros. Contudo, costumo dizer aos meus alunos, se fizer ouvir uma obra musical pura, e se, de seguida, perguntar a cada um o que lhes transmitiu a obra terei tantas respostas quanto os alunos na sala. Ainda assim, a música atinge os patamares das emoções humanas. Sejam elas quais forem. Há um significado para cada um de nós. É um discurso direto próprio ao emissor e ao receptor. E a forma como eu a recebo é condicionada a uma série de fatores. A propósito, há dias, aquando da audição do “Prelúdio e Fuga em Mi bemol menor” de J. S. Bach, na aula, as lágrimas caíram-me pela força da emoção. Nenhum aluno teve a mesma reação. O que significou ou exprimiu aquele momento para mim? O que significou ou exprimiu aquele momento para cada um dos alunos em sala? E há, ainda, o discernimento e a razão. O discurso musical é também ele sinónimo de organização, conhecimento, estruturação de um pensamento, elaboração de matéria complexa, planificação, arquitetura (forma), adaptação acústica e instrumental. É inteligência humana. Será que foi essa inteligência humana de um génio, Bach, que me emocionou?

· Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho? ·

AL: Se entendermos fontes extramusicais como a utilização de textos, poemas ou contos, entre outros, que inspiram e/ ou se transformam em matéria musical nas mais diversas formas, ou como a intenção de presença subtil de uma cultura milenar e distinta, como, por exemplo, a da China ou da Índia, ou mesmo as presenças de uma ideia extrínseca como, por exemplo, a de tornar musical e intrínseco matéria áspera ou rude ou, ainda, a ideia de sustentabilidade (ecologia e sustentabilidade), então sim, existem fontes extramusicais que influenciam e atuam na minha música. Posso enumerar alguns desses casos: “Madrigal – Cerromaior” (novembro/ 2000), para coro misto a oito vozes e grupo instrumental (vibrafone, trompa em Fá e violoncelo) e “Canção de Izis” (setembro/ 2000), para barítono amplificado e eletroacústica, ambas sobre poemas de Manuel da Fonseca, são duas obras que utilizam a palavra como som e não como palavra-sentido, ou seja independentemente da sua função linguística. Aqui, a semântica não existe. O que existe são os fonemas e as suas cores vocais desde as vogais fechadas, semifechadas, abertas ou semiabertas, às consoantes fricativas, oclusivas, nasais ou vibrantes, entre outras, que dão o ser à música. É o texto como som. É o texto como fonte sonora, apenas. Este é um trabalho sobre a fonética, disciplina da linguística que se dedica ao estudo dos sons da fala (definição que consta em “fonética – Instituto de Apoio e Desenvolvimento – ITAD”) aplicada à música. Noutro caso, “La forêt” (novembro/ 2008), para flauta de bisel solo, a obra é inspirada no conto “A floresta” de Sophia de Mello Breyner Andresen e em todo um mundo de sentidos e de memórias. Tal como escrevo na nota da obra: «“La forêt” (...), é um conjunto de quatro quadros compostos originalmente para flauta de bisel (...). Seduziu-me a leitura prosa-poética rica de simbologias, alegorias e sinestesias. Estórias-espaços de magia, de mistério, de memórias, mundos das sensações que emanam em “A floresta” de Sophia Andresen. Foi a escrita sensorial e poética deste conto que me levou à composição de “La forêt”. A importância da natureza na estória, por um lado, e as memórias de infância, por outro, fascinaram-me. Tal como no conto de Sophia, recordo os cheiros da minha infância, do outono, com as maças vermelhas que se guardavam depois de colhidas, um perfume maravilhoso e inesquecível numa pequena e humilde arrecadação exterior à casa, ou os sons da primavera com as primeiras andorinhas, as andorinhas-dos-beirais, chilreando e voando em bandos em círculos em fins de tardes inesquecíveis. Não sendo descritiva (à semelhança de um poema-sinfónico), baseia-se em quatro excertos do conto “A floresta”, fontes de inspiração que despertam uma determinada sensação ou emoção, e que produz todo um mundo sinestésico, sentidos vários e simultâneos que se misturam e que se confundem, que se iludem. O primeiro quadro é referente à estação do ano Primavera, (...) e tudo se enchia de flores que baloiçavam docemente nas brisas transparentes; o segundo quadro evoca a estação do Verão, Depois o Verão chegava, os dias cresciam, o ar povoava-se de perfumes (...); o terceiro quadro refere-se à estação do Outono, (...) o chão cobria-se de folhas amarelas e secas que se desprendiam uma a uma dos altos galhos das árvores e tombavam lentamente dando voltas no ar; e o quarto quadro fala da estação do Inverno, Os plátanos e as tílias, despidos das sua folhas, erguiam no céu pálido os seus galhos nus». Os excertos são ditos ou não, à maneira impressionista, e servem como uma espécie de (sub)títulos, leituras submersas, implícitas, ou não, à obra. Já em “Fong-song” (maio/ 2012), para flauta transversal e eletroacústica, o texto, um conto homónimo de Maria Ondina Braga, do livro “A China fica ao lado”, é matéria eletroacústica, ao mesmo tempo que, e como escrevo na nota explicativa da obra, «Em “Fong-Song” a compositora não teve a intenção de escrever uma obra oriental, mas apenas a ideia de lembrar, ou traduzir, com este mundo sonoro e poético, o fascínio e o encantamento de culturas longínquas existentes nas obras de Maria Ondina Braga.» E especifico, «O texto (“Fong-song”) é matéria sonora que percorre os seus labirintos, num recitativo de música permanente e contínuo, que embala (como são embaladas as sampanas na vasa de qualquer rio, na expressão da autora), que baloiça, que nina, que sossega ou desassossega, que acalma ou inquieta, que tranquiliza ou enfurece perante a bonança ou a fúria da natureza, os sons do vento e da água em “Fong-song”. Como num mundo que transcende, imaginário, sobrenatural, místico ou onírico, num recitativo de carácter intimista, feminino, introspetivo, transparente, tranquilo, doce. Música da palavra sem tempo, como num ritual, como tantos descritos nos contos da escritora». Outro tipo de fonte extramusical é a ideia inspiradora de tornar musical e intrínseco matéria áspera e em bruto, matéria primária a partir da qual há a criação musical. Como foi dito acima, “Au-delà The blue – Pelo outono” (novembro/ 2021), encomenda do percussionista Nuno Aroso para inserção no projeto/ série de concertos “Materis | Asperes”, é escrita para um bidão, um típico bidão de armazenamento de matérias fósseis, em torno do qual tudo gira. «Desta matéria não nobre, deste não instrumento musical, extrai-se uma nova vida. Recorrendo a meios mais ou menos convencionais das práticas instrumentais da percussão, vibrações, sons percutidos, trémulos, amplitudes, dinâmicas, sons rugosos, sons quasi-sinusoidais, fricção sonora, entre outros processos, “Au-delà The blue – Pelo outono” ganha forma, estrutura e corpo sonoro». Já “Reciclo-Recirculos – em forma de sanza” (2019), uma obra acusmática, encomenda do Festival DME, para ser estreada no âmbito da 3.ª edição do Simpósio – Cultura e Sustentabilidade, teve como ponto de partida a ideia da sustentabilidade. Trata-se de uma paisagem sonora construída a partir de uma série de questões que se impunham: «Poderei, enquanto compositora, agir de forma mais sustentável? E poderá a minha música ser reflexo dos meus princípios de sustentabilidade? Num mundo em que quase tudo é descartável, de que forma a minha obra pode ser resultado de uma ação mais consciente?»
O mundo que nos rodeia está e estará sempre presente seja de que forma for. O extrínseco à música pode ser mais do que um caso de influência. O extrínseco pode determinar a obra e mesmo fazer parte dela, assim o entendo.

· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro forma ou vice-versa? Como decorre este processo? ·

AL: Cada obra é uma problemática em si. Obras que possam partir de um material exterior, que já de si possua uma forma, uma macro forma, é natural que a música inicie a partir dessa forma global para uma micro estruturação. Como um texto, por exemplo. Uma visão global, que nem sempre é cumprida! Mas esta não é necessariamente uma condição. Atendendo a que a música é uma linguagem vejo-a, mais, como quem escreve um romance, um livro. Os sons vão-se relacionando, há causalidades que geram outros sons. Há necessidades que advêm da escrita a cada instante. É difícil descrever este processo do princípio de elaboração de uma obra. Um gesto mínimo pode ser suficiente para desencadear uma obra. Ou não... pode ser um pensamento abstrato de relações apenas. Por exemplo nesta minha última obra “Au-delà The blue – Pelo outono” parti de um texto, recitado, uma ideia de sobreposição de um mesmo texto em três línguas distintas, a língua materna, português, tradução para francês e outra para a língua inglesa, lido por três vozes distintas. À boa maneira dos motetes do século XIII. Desta ideia nasce outra: criar uma sequência melódica com um conjunto significativo de notas. Há uma ideia emocional subjacente à obra. Posteriormente, há uma ideia geral de encadeamento de gestos para que perpasse à obra uma ideia de continuidade, isto na elaboração da parte instrumental. Ao mesmo tempo uma ideia central: tudo gira em torno de um bidão, um simples bidão de armazenamento de combustíveis fósseis. Se as obras têm sempre este ponto de partida? Não.

· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração? ·

AL: Em 2012 respondi a esta pergunta assim: «Acredito que não se é só um ser racional ou só um ser inspirado. A criação exige as duas atitudes. O que seria da inspiração se não houvesse um espírito prático e com afinco? Ou o que seria da prática sem a imaginação? Sinto-me uma artesã inspirada. Enquanto compositora sei que preciso de ser prática. (...) É praticando e com esforço que acredito poder vencer. Já o emotivo, este surge, porque é natural. E, umas obras podem transmitir mais emotividade do que outras, porque sim. (...) Não é controlável, a meu ver. Mas as duas atitudes são necessárias e vivem lado a lado na criação: razão, por um lado, e emoção, por outro. Em que escala? (...). O controlável e o incontrolável! O livre e o ‘não livre’! O calculado e o imprevisto! No meu caso, talvez com maior tendência para o controlável, o ‘não livre’ e o calculado. Normalmente inspiro-me em obras, em leituras, em músicas diversas, à procura da emoção. Sons de um kissange que toco ao sabor da imaginação, ou de um pau-de-chuva que gravo por sabor emotivo, ou a leitura de um texto que adoro. Uma célula melódica no piano ou um acorde de que simplesmente gostei... Depois há que estruturar a obra e, aqui, penso que é sobretudo o meu espírito de artesã que se aplica. São combinações, transformações, geram-se materiais novos, pega-se em ‘crivos’ ou ‘filtros’, pensa-se nos intervalos de cada harmonia, nos intervalos de cada linha melódica, e controla-se a emoção! Gosto de saber que tudo ‘encaixa’ segundo as minhas condições de ‘artesã’. Tenho que ter explicação racional para todo o processo, (...). Não sei se esta é a maneira correta de abordar uma obra de música, mas é aquela que pratico embora nem sempre da mesma forma já que tudo pode acontecer de maneira diferente a cada nova peça. Cada obra é um desafio!»
Em 2021, quase 2022, nove anos passados, nada me apetece alterar na minha resposta, contudo hoje, os meus breves cabelos brancos já me dão permissão para certas liberdades até então inusitadas. Talvez, hoje, os pesos entre determinismo e impulsos ou liberdade, sejam ligeiramente diferentes. Talvez por isso, ou não, tenha duas obras cujo título é “A liberdade, sim, a liberdade!” (maio/ 2020) ou a última obra, por mim escrita e já por duas vezes citada, “Au-delà The blue – Pelo outono” (2021) para um bidão e outros instrumentos satélites com amplificação, reverberação e electroacústica, seja um ato poético que joga entre o determinado e o incalculável. Performance única e irrepetível, que dependerá das circunstâncias acústicas de cada espaço sonoro instrumental, e que se insere numa linguagem entre a experimentação e a improvisação. Ou tenha, ainda, enveredado pela escrita da também já citada “Mahâr” (dezembro/ 2020) para flauta transversal e electroacústica, uma obra inspirada num texto popular indiano “Khyâl” e que explora mundos por mim inabituais. Abraçar a cultura indiana e em particular, a sua música, as suas técnicas, os seus modos (ou Râgas) e os seus ritmos, tão particulares (Tâlas), é sinónimo de liberdade, de atravessar limites, de ir mais longe, sem medos, por emoção!

· Em que medida, os novos instrumentos eletrónicos e digitais abrem para si novos caminhos e quando os mesmos se tornam constrangedores? ·

AL: Desde cedo, mais propriamente desde os meus estudos superiores, que componho para eletroacústica ou colaboro na realização e/ ou projeção eletrónica de obras diversas de diferentes compositores. Cerca de metade das minhas obras em catálogo são obras mistas, utilizando meios eletrónicos ou digitais, ou obras para eletroacústica, solo com, ou sem, outros meios como, por exemplo, os audiovisuais. Um peso significativo num total de 50 obras, até à data. Curioso, o número de obras em catálogo, já que estou prestes a completar as 50 primaveras! E, a propósito do número de obras que um compositor deve, ou não, escrever, lembro-me sempre de um conselho do compositor Álvaro Salazar: «Não escrevas muito, cada obra é uma problemática». 50 primaveras e 50 obras, talvez já tenha exagerado! (ficava bem, aqui, um emoji sorridente). Como já referi, além das minhas obras no campo das eletroacústicas tenho, também, colaborado na realização e/ ou projeção eletrónica de obras de diversos compositores, nomeadamente Virgílio Melo, Cândido Lima, Jonathan Harvey ou Karlheinz Stockhausen, a saber: “Circuitus” ou “Alletsator XPTO” (2011) de Virgílio Melo, já aqui referenciadas; “Gestos-Circus-Círculos” (2001), “ETRAS – cantos de sonhi ma” (2008), “ERÉ(Ó)TYICA-Ai Deus e u é” (2009), “Músicas de Villaiana-coros oceânicos” (2009), “Momento-Paisagem” (2009), “OPTIC MUSIC – quadros cinéticos” (2010), “NI(Y)NI(Y)ANA – ecos cibernéticos” (2012), “UMA FLAUTA PARA TURIM-cantiga de louçana” (2016), “IT ONLY TAKES TWO MINUTES TO...” (2017), “ODE AO TEJO – Regresso de um piano de guerra” (2019), “CHANTIER – melodias em pedra” (2019), “BAGATELA para marimba e electrónica-1770-2020 (Beethoven)” (2020), “REGALO I-le klaxon des voleurs” (2020), “TRÊS REGALOS para saxofone tenor e electrónica (nova versão)” (2020), “Canto de Quadrazais” (2021), obras de Cândido Lima; “Madonna of Winter and Spring” de Jonathan Harvey (apresentada na Casa da Música, no Porto no âmbito do Festival Música Viva 2007); e, ainda, “Mikrophonie 1” (apresentada no Café Concerto, na ESMAE) ou “Mixtur” ambas de Karlheinz Stockhausen (esta última apresentada no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa no âmbito do Festival Música Viva 2008).
Meu pai, ao longo dos anos, constituiu um acervo significativo de equipamentos musicais como, por exemplo, leitores e gravadores de bobines a válvulas, ou outros, de diversas marcas, como Philco, Akai, Sanyo, Philips, ou Grundig, muitos utilizados em estúdios profissionais, acervo que, hoje, constitui uma espécie de museu lá em casa. Eu própria, quando iniciei meus trabalhos criei meus primeiros sons num Yamaha SY77, um sintetizador hoje vintage, o primeiro produzido pela Yamaha em 1989. Eu ainda guardo um computador com um sistema operacional da Apple Mac OS Z1 – 9.2.2 e Mac OS X 10.2.8, com dois discos de arranque, um velhinho Mac já digno de um museu. Com este computador ainda compus, recentemente, a obra “Reciclo-Recírculos – em forma de sanza” (2019) uma obra já aqui citada e cujo tema era reutilizar e reciclar. Um desafio! O compositor Cândido Lima possui um gravador e leitor de bobines Revox e, ainda um National, e uma acumulação de bobines dos seus primeiros trabalhos eletroacústicos. Se há constrangimentos na utilização dos meios eletroacústicos e digitais, um deles tem a ver com a efemeridade dos mesmos. Se atualmente quisesse reconstituir, refazer ou reparar as minhas primeiras três obras eletroacústica seria missão quase, se não impossível. Mas, na verdade, este é um constrangimento próprio da categoria da “Música antiga”, área da música que se dedica a reproduzir, tal qual, à época. A não perenidade dos meios pode pôr em causa a própria perenidade das obras. Todos nos debatemos, atualmente, com computadores, hardware e software, que deixam de ser utilizáveis por desatualização. Salvar e salvaguardar acervos de músicas eletrónicas, eletroacústicas e digitais é um desafio. Claro que os meios eletroacústicos e digitais colocam outros tipos de constrangimentos como constrangimentos técnicos, estéticos, ou outros, mas, na verdade, os novos caminhos por eles abertos são de tal ordem fantásticos que compensa quase tudo. As possibilidades são quase infinitas. É todo um mundo maravilhoso, muito para além do comum que só a imaginação controla.

· A pesquisa, a experimentação e a invenção, constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da Arte? ·

AL: Sim. Para mim, «criar» na música e na arte, em geral, é sinónimo de invenção. Seja na música experimental e de pesquisa pura, seja na música formal, a arte é sempre invenção onde a «tentativa e erro» e a procura de novos caminhos vive lado a lado com o conhecimento. Será, apenas, uma questão de pesos na procura e invenção (ou inovação!) de novas harmonias, de novas cores, de novos timbres, de novos instrumentos, de novas combinações orquestrais, de novas técnicas instrumentais, ou de novos registos, neste caso até onde o ouvido humano entender (os 16Hz e os 20000Hz) gerando-se mesmo, e por vezes, novos conceitos de arte. No século XX, os meios eletrónicos e digitais fizeram toda a diferença, nos registos bem como nos timbres e nas cores ou ambientes, possibilidades abertas com o surgimento dos novos instrumentos eletrónicos, mas também de outros. Todo o século XX, e o atual, são séculos de invenção, de pesquisa e de experimentação. Nós somos fruto da invenção, da pesquisa e da experimentação de grandes mestres como Schoenberg, Stravinsky, Russolo, Nono, Berio, Shaeffer, P. Henry, Varèse, Messiaen, Boulez, Xenakis, H. Eimert, Stockhausen, Kagel, Ligeti, Pousseur, Cage, entre outros. Leia-se sobre a história da música concreta ou da música eletrónica de Colónia ou sobre o futurismo italiano, por exemplo. Na realidade e à sua maneira, todos os grandes mestres clássicos foram, também, inventores. Beethoven foi um inventor, Monteverdi, foi um inventor. Que tipo de inventora serei eu? As obras que mais se inserem nestes caminhos de experimentação e de pesquisa são as, também, já citadas “Mahâr” e “Au-delà The blue – Pelo outono”, esta última obra para um novo «instrumento musical», um bidão comum, vasilhame de combustíveis fósseis e outros instrumentos satélites. Realizada entre uma escrita e um pensamento na linha da música contemporânea, entre uma escrita determinada e uma linguagem própria da improvisação e do experimentalismo, ou escrita aberta, “Au-delà The blue – Pelo outono” pertence a um mundo mais livre, mais espontâneo e descomprometido. Só em jeito de coda, e as “Invenções” a duas e a três vozes de J. S. Bach? E os “Cadernos de Invenções “de Cândido Lima? Música sem invenção não existe. Música sem inovação não existe.

· Qual a importância do espaço e do timbre na sua música? ·

AS: Sempre que compomos para eletroacústica é necessário pensar no espaço, parâmetro indissociável a este tipo de música, seja num ambiente stereo, de duas fontes acústicas, seja noutro. Costumo dedicar uma parte importante do tempo do projeto distribuindo e dando a cada elemento o seu espaço próprio. É uma forma também de criar relevos. Sobretudo em obras para eletroacústica, solo. Já em obras para instrumentos convencionais, ou menos convencionais, mas não eletrónicos, ou até mesmo em música mista, confesso que utilizo muito os espaços pré-estabelecidos em obras mais ou menos semelhantes. Não tem sido um parâmetro específico e estrutural das minhas obras a menos que se trate de uma obra encenada como, por exemplo, “A floresta em Dodona” (Março/ 2006) a minha primeira e única ópera realizada para a primeira edição do Concurso Nacional Bienal – Ópera em Criação de 2005/ 2007, com libreto original de Luísa Costa Gomes e estreada no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa. Já o timbre, esse faz parte integrante da música ao qual dou particular atenção. O timbre como muitas vezes transmito aos meus alunos, é um dos parâmetros musicais mais complexos da música. O timbre pode ser a resultante de uma série de fatores combinatórios, desde o registo de cada instrumento musical, a combinação instrumental (orquestração), a harmonia (ou a combinação dos intervalos), a modulação (próxima ou afastada), a técnica instrumental utilizada (que afeta por exemplo, o ataque ou os transitórios de ataque de cada som, mas também a manutenção do som e sua queda), a natureza do próprio som (com menos ou mais harmónicos, muito ou pouco intensos), enfim, são muitos os fatores que nos dão a sensação deste ou daquele timbre já que o timbre é uma das qualidades da música e do som menos calculável. Ainda assim, tento nas minhas composições dedicar particular atenção a este parâmetro do som e da música. Por vezes faço combinações diversas na combinatória dos instrumentos. Articulo os registos. Faço combinações das harmonias numa relação direta, por vezes, com a cor instrumental. No campo das eletroacústicas, faço as minhas opções de acordo com os princípios de transformação em estúdio. O timbre, ou como se diz convencionalmente «a cor da música» é essencial para a sobrevivência musical, sendo na verdade inata à música. Podemos é agir mais ou menos sobre este.

· Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso enquanto compositora? ·

AL: Em 2012 destaco quatro obras: “Dual”, “A floresta em Dodona”, “A Menina dos Olhos de Chuva” e “7 Peças Fáceis”. A distância destes anos permite-nos rever, ou mesmo redirecionar o olhar numa outra perspetiva. “Dual”, de 2004, continua a ser uma obra significativa. Curiosamente, e ao contrário do que digo na Entrevista de 2012 no portal MIC.PT, “Dual” não é a primeira obra de responsabilidade absoluta (sem a intervenção ou o olhar de um professor em contexto académico), essa foi “Coor”, em 2003, mas sim a primeira que surge de uma necessidade interior de continuar a compor, à parte quaisquer motivações ou apelos que viessem de fora da alma, à parte quaisquer motivações ou apelos para além da música. “Dual” representa, assim, a emancipação da autora, a consciencialização de si própria na determinação de um percurso, a autodeterminação. Parte de uma iniciativa pessoal, de uma imprescindibilidade de continuar a me expressar através da música e da composição para além de um curso, para além de um mundo académico ou de outras obrigações contratuais. “Dual” foi editada em CD pela Phonedition, em 2008, aqui interpretada pelas flautista e pianista Monika Streitová (flauta) e Sofia Lourenço (piano). Integra o CD homenagem a Álvaro Salazar, dando o título ao próprio CD. Quanto à obra “A floresta em Dodona”, uma «mini-ópera» ou ópera de bolso, escrita para a primeira edição do Concurso Nacional Bienal – Ópera em Criação 2005/ 2007, com libreto original de Luísa Costa Gomes e apontada na Entrevista do MIC.PT de 2012, sim, continuo a considerá-la símbolo de uma nova forma de orquestrar e de realizar novas combinações instrumentais. Já havia utilizado o mesmo procedimento para orquestrar ou combinar timbricamente os instrumentos, mas em música de câmara, em “Duas cantigas de amigo” (2004) e não numa grande orquestra. Com “A floresta em Dodona” pude expandir o método e abarcar novas combinações, novos timbres, novas sonoridades, numa nova maneira de pensar a orquestração. Quando olho para trás considero, ainda, como significativa, e além destas duas obras mencionadas na Entrevista de 2012, a obra “Luz dum impossível – Variações d’Arada” (setembro/ 2013), encomenda do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (GMCL), para eletroacústica, flauta transversal, clarinete em Sib, percussão, piano, harpa, mezzo-soprano, violino e violoncelo. Obra estreada no São Luiz Teatro Municipal (Lisboa), é para mim uma das mais bem conseguidas no que diz respeito ao tratamento do tempo e do ritmo. Trata-se de uma questão conceptual em que o tempo musical é concebido e compreendido como uma linha contínua onde as alturas ocorrem. Ponto e linha, dois conceitos das artes visuais. É uma questão de visão. É uma forma particular de compreender o tempo e o ritmo e de os aplicar ao mundo da composição. Não posso concluir esta resposta sem deixar de referir outras duas obras particulares: “DITTY-DITTY” (dezembro/ 2019) encomenda da Associação Cultural Arte no Tempo, para viola d’arco e eletroacústica, estreada em Aveiro, na igreja do Convento de Jesus da Ordem Dominicana Feminina, um lugar inesquecível, ambiente único marcado por uma sumptuosa talha dourada e azulejos portugueses. Se tivesse que levar comigo para uma ilha deserta uma obra minha (se me fosse dado esse direito) escolheria “DITTY-DITTY”. A memória da estreia da obra, pelo memorável Ricardo Gaspar, um jovem músico vencedor do Prémio Jovens Músicos em Portugal, em 2012, atual chefe de naipe na Orquestra Sinfónica de St. Gallen (Suíça) e com um percurso profissional notável, deixou-me com a rara sensação de querer repetir a experiência. Na linha do continuum, “DITTY-DYTTY”, é aquela obra a que nos perguntamos: Eu escrevi, mesmo, esta obra? Por fim, “Au-delà The blue – Pelo outono” (novembro/ 2021), já diversas vezes aqui citada. É a obra que vai no sentido da liberdade, sem medos, ou sem receios de me expor. Mas poderia citar também, neste ponto, “Mahâr” ou “A liberdade, sim, a liberdade!” (maio/ 2020).

· Como escuta a música? É um processo mais racional (analítico) ou emocional? ·

AL: A racionalidade e a emotividade são inseparáveis, acho. A emotividade advém, mesmo, da racionalidade. Não me emociono com algo que não compreendo, que não assimilei, que não aprendi, que não descodifiquei, primeiro. Há alguns anos atrás, penso que enquanto (ainda) Ministro da Educação e Ciência, ouvi Nuno Crato, numa entrevista a um noticiário, e a propósito de que há uma grande maioria de alunos que não gosta de matemática (ou dos números), algo que reencontrei escrito no Diário de Notícias, recentemente, a 17 de setembro de 2021 e que na altura me marcou: «(...) muitas vezes, caímos (também) numa ilusão, que é uma ilusão de um erro, mais uma vez, pedagógico muito grande que é primeiro gosta-se e depois aprende-se. Não. As duas coisas vão em paralelo e o movimento principal até é o contrário, primeiro aprende-se e depois gosta-se. Ou seja, a desilusão dos alunos com a Matemática é a dificuldade em entender a dificuldade em ter sucesso, que é uma dificuldade que todos nós temos com as coisas na vida. Se eu não consigo guiar um carro, deixo de gostar de guiar. Se não consigo saltar um obstáculo, deixo de gostar do obstáculo. Portanto, o que acontece mesmo é que os jovens precisam de ser ensinados para a Matemática e é o ensino, o domínio das coisas de uma forma sistemática e progressiva que permite aos jovens progressivamente dominarem aqueles conceitos básicos e começarem a gostar. (...)». 2 Como pedagoga, também, tenho esta grande missão de ensinar a composição de forma que sejam apreendidos e compreendidos os conteúdos e as matérias de forma clara, transparente e plena. Só assim vão, de facto, alcançar o gosto pela composição e pela análise e, finalmente, sentir a tal emoção. Primeiro racionaliza-se e depois emociona-se! Ou, mundos em paralelo! Considero-me uma ouvinte regular. Frequento concertos diversos, tendo-me já emocionado em diversas salas, e com diferentes obras, ou até mesmo em situação de estúdio. Na Casa da Música, grandes obras de Bernd Alois Zimmermann, Maurice Ravel, Pierre Boulez, Claude Debussy, Gustav Mahler, Alexander Scriabin, Olivier Messiaen, Helmut Lachenmann, Claudio Monteverdi, Igor Stravinsky, Mauricio Kagel, Salvatore Sciarrino, Arnold Schoenberg, György Kurtág, Joseph Haydn, Modest Mussorgsky, Edgard Varèse, Charles Ives, György Ligeti, Iannis Xenakis, etc.: ”Daphnis et Chloé”, “La mer”, “Poema do êxtase”, “Gaspard de la nuit”, “Vespro della Beata Vergine”, “A sagração da primavera”, “O pássaro de fogo”, “Giordano Bruno”, “Gurre-lieder”, “As estações”, “Canções e danças da morte”, “Amériques”, “Sinfonia N.º 4” (de Ives), “Atmosphères”, “Lontano”, “Le Grand Macabre”, “Terretektorh” ou “Thallein”, etc. Noutras salas, Coliseu de Lisboa, “Prometeo” de Luigi Nono, Auditório da Gulbenkian etc. Em estúdio, há uma passagem na obra “Optic Music – quadros cinéticos” de Cândido Lima, uma obra em que colaborei na execução da eletroacústica instrumental (piano desfocado em três pianos), que de todas as vezes que a ouço (já mesmo na altura da construção em diálogo com o compositor) é inevitável a «pele de galinha», um arrepio e até o brotar de lágrimas de forma involuntária. Acontece na passagem que inicia aos 8’32”. Há, com certeza, razões para tal, mas prefiro ficar pela emoção, pelo coração. Outra obra que provoca sensações semelhantes é “Dual”, a partir dos 4’20’’ (até cerca dos 6’10”), vindo a flauta de uma passagem em aeolian sounds e com a reentrada do piano aos 4’30” com um Ré sustenido grave. Um continuum inesperado numa obra de diagonalidades e de descontinuidades, certas passagens que causam um certo frisson e que pontuam aqui e ali certas obras. Outras haveria a mencionar (razões que só a razão entende...).

· Na Entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo» 3. Sente proximidade com esta afirmação? ·

AL: A arte não tem necessariamente que ter uma causa política (e por consequência uma filosofia) adjacente. Mas também é verdade que muitas obras ao longo dos séculos são obras de intervenção ou música empenhada num determinado universo. Em 2016, na Casa da Música, fez-se ouvir a “Cantata para o 20.º Aniversário da Revolução de Outubro” (também conhecida como Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha), Op.74, de Prokofiev, isto no Ano Rússia. O texto, tradução, foi projetado em simultâneo à interpretação pelo Coro da Casa da Música ao qual se juntaram diversos jovens da Escola Superior de Música do Porto (ESMAE). Claramente uma obra de intenção política composta por Prokofiev, no tempo da “grande purga”, e que representava os acontecimentos da Revolução Bolchevique através, quer da utilização de textos de Lenine, de Karl Marx e Friedirich Engels (do manifesto comunista, de 1848) e, ainda, de Estaline como, por exemplo, do seu discurso proferido na véspera do funeral de Lenine, quer criando uma atmosfera de grandiosidade heroica. A obra, que é um claríssimo compromisso político com a revolução iniciada pelas alas radicais na passagem do poder para um governo totalitário de Estaline, então em vigor, é aplaudida de pé numa ovação levada pelas emoções e pela grandiosidade da mesma, pondo de lado a mensagem política, filosófica e social. Neste caso, a música sobrepôs-se e falou mais alto, independentemente da questão política. A arte está para além dos “dizeres”? Não tenho em catálogo muitas obras que abracem claramente dimensões desta natureza politico-filosófica. “E(H)LLE(M) – Sete momentos em forma de trança” e “Reciclo-Recirculos – em forma de sanza” são exceções. “E(H)LLE(M) – Sete momentos em forma de trança” é uma obra escrita em 2017 para o Duo Contracello, obra multimédia, com vídeo da autoria de Inês Silva, jovem artista multidisciplinar implicada em causas como a arte e a sustentabilidade ou a ecologia, como refere na sua nota biográfica «(autora) centrada nas questões da ecologia profunda e da biopolítica, exploradora sonora e adepta da filosofia DIY bem como de práticas colaborativas e participativas em espaço público», artista em ascensão autora, por exemplo, da “Variações para Piões – N.º 1” realizada no “O museu como performance” em Serralves ou co-autora do projeto ToxiCity, uma ação artística e coletiva, colaborativa e educativa sobre objetos encontrados, sensores de qualidade do ar ou altifalantes ou, ainda, integrante do coletivo artístico internacional Mycelium e MOSCXS, com sede no Porto. Esta obra, “E(H)LLE(M)”, é simbólica da luta pelos direitos do género e surge, como digo na nota da obra, «(de um) convite (do Duo Contracello) durante a realização da tertúlia “A criação numa perspetiva feminina” (Festival DME/ Seia/ Maio de 2016)». Discutia-se a condição feminina na arte, onde participariam mais duas compositoras portuguesas, Isabel Soveral e Clotilde Rosa que, por motivos de força maior, não puderam estar presentes. Decidi, então, que a obra-encomenda seria um tributo a todas as mulheres que, no mundo ocidental, contribuíram de forma real ou simbólica para uma sociedade moderna e atual, onde prevalece a igualdade de género. Mulheres emancipadas revisitadas em “E(H)LLE(M)” (sete mulheres caucasianas) do mundo ocidental, que em campos diversos foram marcantes na sociedade. Das artes à política, passando pelo ativismo ou pela ciência, esta é uma de muitas listas possíveis. Carolina Beatriz Ângelo, Emma Goldman, Milú, Rosalind Franklin, Rosa Ramalho, Peggy Guggenheim, Florbela Espanca. Feministas, ativistas, sindicalistas, cientistas, poetisas, mecenas, sufragistas (em 1911, a Finlândia era o único país europeu que reconhecia o sufrágio feminino), artistas do povo, mulheres que conquistaram a participação direta e ativa na vida política e pública. A igualdade entre homens e mulheres (e extrapolando, entre raças, credos, línguas, territórios de origem, convicções políticas ou ideológicas, instruções, situações económicas, condições sociais ou orientações sexuais) é um princípio fundamental do mundo moderno e um direito num estado democrático. Isto, e segundo o que está escrito na Constituição da República Portuguesa, no preâmbulo, tendo em vista «a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.» Já a peça “Reciclo-Recirculos – em forma de sanza” (reutilizar-reciclar) insere-se mais dentro do que poderíamos apelidar de biopolítica e num certo ramo da filosofia ecológica. Nesta obra acusmática de 2019, estreada no âmbito da 3.ª edição do Simpósio – Cultura e Sustentabilidade, no espaço de Lisboa Incomum, presidido pelo compositor e dinamizador Jaime Reis, como escrevo na nota da obra «Trata-se de uma paisagem sonora construída a partir da ideia de sustentabilidade. (...) Palavras de ordem ou palavras-chave: reutilizar e reciclar. Estes são os princípios essenciais da gestão moderna de resíduos: reduzir, reutilizar e reciclar. Em “Reciclo-Recírculos”, reutilizo e reciclo um computador, a minha ferramenta de trabalho, o hardware e o software, além de materiais sonoros de obras minhas eletroacústicas. (...) Aqui recupero um computador inativo com um sistema operacional da Apple Mac OS Z1 – 9.2.2 e Mac OS X 10.2.8 (com dois discos de arranque). Uma utilização mais consciente que fizesse com que cada um de nós usasse por prazos de vida mais longos os nossos instrumentos eletrónicos e digitais (reutilizando-os) talvez fizesse toda a diferença na melhoria do nosso ambiente.” Estas duas obras “E(H)LLE(M)” e “Reciclo-Recirculos” estão associadas a um certo tipo de mensagens, a uma «forma de habitar o mundo», como refere João Madureira, mas devem igualmente estar para além disso. Para além disso, elas devem ser sobreviventes de uma arte, de um certo tipo de música. “Reciclo-Recirculos – em forma de sanza” foi a obra selecionada para o World New Music Days 2021 na China, resultado de um convite para integrar a candidatura oficial da Miso Music Portugal/ MIC.PT para este Festival da ISCM.

· Prefere trabalhar isolada na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

AL: Seja no campo, em Arada, seja na cidade, no Porto, estou em tranquilidade. Sem preferências.

· Tente avaliar a situação atual da música portuguesa. ·

AL: Em 2012, falo de um contexto de crise financeira com um consequente decréscimo da atividade cultural. Referia-me, então, à crise provocada pelo colapso do banco Lehman Brothers, pelas perdas bolsistas (causadas pela queda de confiança em Wall Street) e por esquemas financeiros fraudulentos, como o esquema em pirâmide de Madoff que lesou milhares de investidores em todo o mundo. Atualmente, e passados dez anos, estamos novamente em crise, agora com origem, não nos mercados financeiros, mas sim, num novo coronavírus misterioso que surgiu há dois anos na cidade de Wuhan na China. Em situações de crise já todos sabemos que é o sector da cultura o mais lesado. São exemplos de lutas as manifestações ou as moções públicas para a exigência de 1% de dotação do Orçamento do Estado para a Cultura, ou outras, menos estruturais e mais sintomáticas de momentos de crise como, por exemplo, os protestos dos técnicos de som, de luz e de imagem ou de outros artistas de feiras e romarias ou, mesmo, a luta pela criação de um Estatuto dos Profissionais da Cultura que os proteja, também, em situações como as que agora vivemos. Se há questões que são estruturais em Portugal no sector da Cultura, e em particular, na Música, há outras questões circunstanciais advindas de dois anos de quase confinamento, onde uma das áreas mais afetada foi precisamente a da Cultura. A Música esteve durante meses confinada, com projetos suspensos, alguns que ficaram irrecuperáveis. Felizmente houve, e apesar de tudo, alguma ação de entidades governamentais, e não só, que atenuaram os efeitos de uma crise tão particular. São disso exemplo o Fundo de emergência para a Cultura, ou outros apoios de Emergência aos Artistas e à Cultura, por exemplo, da Fundação Calouste Gulbenkian ou da SPA, ou outros fundos municipais ou mesmo do Instituto da Segurança Social, como o Apoio extraordinário à Redução de Atividade dos Sectores da Cultura, Eventos e Espetáculos. Foi através do Fundo de Emergência para a Cultura, por exemplo, que compus a obra “Au-delà The blue – Pelo outono”. À parte as crises, de quando a quando, a questão maior que se levanta é, para mim, e como refiro na Entrevista ao MIC.PT de 2012, a questão da educação. Educar para a cultura. Como refiro, nessa mesma entrevista «falta um ensino que aborde e pratique, com liberdade e abertura, diferentes músicas, diferentes épocas» (sem medos). Paralelamente, falta investimento do Estado na educação artística. Veja-se o último contrato de patrocínio, o de 2020-2026, às escolas artísticas de música que prestam um serviço de educação pública. Veja-se a situação contratual cada vez mais penosa com os professores e músicos que prestam serviço educativo nestas escolas. Enquanto não virmos resolvidas as questões principais no ensino, particularmente artístico, não poderemos exigir uma sociedade informada, aberta, participativa, crítica e criativa. Seremos sempre o país das feiras medievais, das romarias populares, do fado, do futebol, etc., não que tenha qualquer motivo para ir contra qualquer uma destas manifestações. Apenas acho que poderemos ir mais além, apenas acho que os talentos existentes merecem mais. Já perdi a conta ao número de jovens instrumentistas e compositores que fazem um excelente trabalho fora do nosso país! (e cá dentro!) É difícil avaliar a situação atual da música portuguesa, até porque não há uma música, mas diferentes músicas. Se falarmos exclusivamente da música clássica, mesmo essa, há diferentes tipos. A música contemporânea é um desses subtipos de música. Recomenda-se? Pessoalmente “(pertenço) a uma geração de compositores afortunados, quando comparada com gerações mais velhas” (Entrevista MIC.PT de 2012). Desde cedo que tive a oportunidade de desenvolver diversos projetos com instituições, ensembles e músicos extraordinários. Mesmo em tempos de pandemia, desenvolvi e vi diversos projetos serem realizados, fosse no formato presencial, ou no formato on-line: “NEGRO ALBA” para marimba e eletrónica” (fevereiro/ 2020), com estreia durante o Festival Internacional de Música da Primavera concerto live streaming no Teatro Viriato, em Viseu; “A liberdade, sim, a liberdade!”, versão para ato sax/ soprano sax e eletrónica (maio/ 2020), sobre poesia de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) com estreia presencial na Casa Municipal da Cultura de Seia, numa produção do Festival DME, pelo saxofonista Rafael Yebra; “Tempo de Diana” (julho/ 2020) para grupo instrumental e “DITTY-DITTY” para viola d’arco e eletrónica, estreadas durante os terceiros Reencontros de Música Contemporânea, no GrETUA, em Aveiro, ou “IULIUS” (Setembro de 2020), uma encomenda da Miso Music Portugal, dedicada a Júlio Guerreiro, para guitarra e eletroacústica, estreada no O’culto da Ajuda, concerto ao qual assisti à distância de 350 km, no Porto, em live streaming, por questões de contenção pandémica. Apesar das circunstâncias, foi um dos tempos mais férteis em termos de composição. O isolamento proporcionou novas ideias, novas perspetivas, novas sensações, novos sentimentos mesmo a nível pessoal. Foi, também, um tempo difícil deste ponto de vista último.

· Como poderia descrever a situação das compositoras, hoje em dia, em Portugal e no mundo? ·

AL: A situação da igualdade do género nos últimos anos está gravemente ameaçada. Por um lado, com a crescente tendência para a chegada aos poderes democráticos das políticas de direita e de extrema-direita mesmo na Europa, mesmo em países representativos das democracias, considerados pilares democráticos. Por outro lado, em civilizações tradicionalmente de regimes totalitários, antidemocráticos e militarizados, as tentativas falhadas de mudanças, e a contínua permanência desses regimes, nalguns casos com retrocessos significativos no que à igualdade do género diz respeito, ameaçando mesmo a condição básica de vida das mulheres. Ainda agora, lia nas notícias sobre a crescente popularidade de Zemmour, em França, um candidato às eleições presenciais, um radical de extrema-direita com poder nos meios de comunicação televisivos, onde bate records de audiências, e em franca ascensão ao poder presencial. Assume políticas anti género (bem como outras políticas racistas e de discriminação) como, por exemplo, aquilo a que se chama «masculinização das mulheres». No artigo de opinião de José Couto Nogueira, na internet, escreve «A substância do seu pensamento (Zemmour) está publicada em quinze livros com títulos sugestivos, o primeiro datado de 1995: “O primeiro sexo” (2006) uma clara apropriação do título do livro de Simone de Beauvoir “Le deuxième sexe”, considerado o pilar intelectual da luta das mulheres por uma sociedade mais igualitária, sobre a feminização do macho gaulês (...)» 4. Dentro do quadro comunitário europeu há diversos casos de atropelos às políticas do género. Vejam-se países como a Hungria e a Polónia que violaram a legislação da União Europeia (EU) relativa à «proteção dos direitos humanos, da igualdade, da liberdade de expressão e da dignidade humana, consagrados pelo artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE) e pela Carta dos Direitos Fundamentais do bloco (COMISSÃO EUROPEIA, 2021)» (in artigo do Observatório de Regionalismo). «A investida anti género da extrema direita polonesa e húngara: Retrocessos Domésticos e Atrasos para a Agenda Social Europeia», escrito por Letícia Figueiredo Ferreira em agosto de 2021. Segundo diversos estudos, como este, «foi durante a pandemia de Covid-19, marcada, inclusive, pelo decreto de estados de emergência no início de 2020, que se intensificou a aprovação de uma série de medidas que restringiram os direitos da população feminina» (e não só). Por exemplo, a Polónia, em julho de 2020, «apresentou um pedido oficial ao Ministério da Família, Trabalho e Política Social do país para retirar o país da Convenção do Conselho da Europa sobre a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica, mais conhecida como Convenção de Istambul (CIOBANU, 2020)». Fora do quadro da UE, os atropelos continuam com, por exemplo, uma Turquia e o regime de Erdoğan, a defender os «papéis tradicionais de género». Casos mais flagrantes são obviamente a recente tomada de poder pelo talibanismo no Afeganistão, com a retirada militar dos Estados Unidos da América e com as implicações, por todos já conhecidas, relativamente à condição feminina no Afeganistão ou, ainda, o caso paradigmático, em regimes com práticas duvidosas, como é o da tenista chinesa desaparecida, recentemente, Peng Shuai. Em Portugal algumas vozes de direita e extrema direita têm-se ouvido. Nada que afete, por enquanto, questões fundamentais para a igualdade do género (que eu saiba). Há a polémica sobre a utilização das casas-de-banho e dos balneários, levantada pelo partido do Chega. Contudo, levantam algumas preocupações futuras relativamente à continuidade de políticas que promovam os direitos da mulher e à presença das mulheres na vida ativa. Por exemplo, são esses partidos que menos elegem mulheres para cargos políticos. A mulher na política, a sua participação e intervenção na construção de um mundo equilibrado, justo, democrático, livre, culto, fraterno, dinamizador, produtivo, instruído, a mulher na vida ativa não pode ser ameaçada. Que tem tudo isto que ver com a Composição musical? Tudo. A mulher tem que ser instruída, incentivada, devem-lhe que ser dadas as mesmas oportunidades dos homens, tem que ser ouvida da mesma forma, com o mesmo respeito, a mesma crítica, a mesma importância, a mesma atitude, a mesma forma de estar. Muito se tem feito, as quotas de género para órgãos colegiais representativos do poder como, por exemplo, para a Assembleia da República, são disso exemplo. Na área da composição musical tenho visto diversos projetos que se preocupam em divulgar obras femininas. Já aqui mencionei a minha participação na tertúlia do Festival DME “A criação numa perspetiva feminina” (Seia, maio/ 2016), de onde nasce a obra “E(H)LLE(M)”, ou os concertos “No feminino” produzidos recentemente pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble, isto em setembro último, com obras de Patrícia Sucena de Almeida, Isabel Soveral, Ângela da Ponte, Mariana Vieira e com a minha obra “Gárgulas d’Arga” (2013). Ainda, por exemplo, os concertos realizados pelo Performa Ensemble, “Compositoras Portuguesas dos séc. XX/ XXI” de 2016, onde foi ouvida a minha obra “La Forêt” (2008), juntamente com obras de outras compositoras, nomeadamente de Constança Capdeville, Ana Tavares, Isabel Soveral, Ângela da Ponte, Clotilde Rosa, Berta Alves de Sousa e Sara Carvalho. Vejo, com satisfação, na última década, tantos outros projetos neste contexto. É, até, interessante verificar que as comunicações aos compositores sejam distinguidas de acordo com o sexo «Caros Compositores e Caras Compositoras». Mesmo que haja substantivos que podem ser usados tanto para o género masculino como feminino, que são comuns aos dois géneros, o caso de «compositor» não se verifica e por essa razão esta mudança de hábitos é bem-vinda. Há de chegar o dia em que deixaremos de falar no assunto do género, mas isso só acontecerá quando um mundo novo surgir. Desde o Adão e a Eva (desde que o homem é homem/ desde que a mulher é mulher...) que a história ocidental condenou a mulher a uma condição subalterna. As mulheres compositoras também podem (e devem) contribuir para a mudança de uma mentalidade de séculos e séculos que ainda perdura. Não se trata de uma guerra ou de uma luta contra os homens, trata-se de uma guerra, de uma luta, contra as más políticas e as más decisões e os maus costumes entranhados em civilizações algumas milenares. Naturezas diferentes que se completam mais do que se confrontam.

· Quais são os seus projetos decorrentes e futuros? ·

AL: Em termos de composição, tenho dois novos projetos previstos: a escrita de uma obra para flauta e eletrónica para jovens e a escrita de outra obra para um septeto de percussão, ambas encomendas da Associação Arte no Tempo presidida por Diana Ferreira, excecional dinamizadora cultural, sobretudo da música e dos músicos portugueses. Os seus projetos com jovens estudantes de escolas do país de níveis que vão do básico ao superior é algo de notável. Em termos de Ensino e de Direção Escolar (sou Presidente da Academia de Música de Santa Maria da Feira, onde exerço funções diretivas há já alguns anos e apenas com cinco anos de interregno, durante os quais estive no Conservatório de Música do Porto), pretendo continuar a incentivar os jovens para a composição musical, em particular, a tentar ser-lhes um exemplo, e a dar o meu melhor no que concerne à orientação de uma escola, dos seus projetos, das suas metas bem como de um conjunto de medidas concretas do dia-a-dia de uma comunidade escolar.

· No tempo presente, quais são as suas preocupações artísticas principais? ·

AL: No momento encontro-me num interregno entre obras. Acabo de compor “Au-delà The blue – Pelo outono” e iniciarei nova obra em janeiro. Nesta última obra as minhas principais preocupações foram como conciliar uma escrita determinada (numa notação não convencional) com a liberdade da improvisação e a liberdade do intérprete. Ou seja, como notar novos gestos, novas técnicas instrumentais, novas sonoridades, novos instrumentos, numa partitura que seja o mais precisa possível, mas que não anule a liberdade dessa mesma música e do seu intérprete. Uma das preocupações legítimas do responsável pelo projeto “Materis | Asperes”, em que a obra se insere, e responsável, também, pela encomenda da obra, além do intérprete da mesma, Nuno Aroso, é que a obra possa vir a ser tocada por qualquer outro percussionista que não o próprio. É a preocupação de que as obras sobrevivam para além do compositor e para além do intérprete. É a preocupação de criar um repertório diferente, inaudito (!), e na linha de uma música livre, de uma música improvisada, mas escrita. Pedro Amaral, na sua Entrevista ao MIC.PT 5, dizia que mesmo que se notasse a escrita de uma obra que nasce de uma improvisação livre, como acontece, tantas vezes, no jazz, essa obra não seria com certeza a mesma. Verdade. Uma obra que parte do princípio que é o do gesto do momento nunca será repetível mesmo com uma partitura, à frente, o mais precisa possível. Contudo, em “Au-delà The blue” partimos de uma ideia escrita e estruturada para uma libertação do intérprete (uma escrita que deixe espaço à improvisação). Uma escrita livre. Apesar de a obra já ter sido estreada, na Casa da Música, Porto, a sua notação ainda está em fase de conclusão. Pormenores que devem ser notados da forma mais precisa possível, na partitura, e que na altura da composição ficaram em aberto. Trabalho a ser realizado em conjunto com a autora e o intérprete.

· Numa das entrevistas de 2020 o compositor Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» 6. Qual é, na sua opinião, o papel que a música de arte desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? ·

AL: A prova da importância da arte e do seu papel na sociedade foram os meses de confinamento e de isolamento com uma sociedade reduzida, aparentemente, à sobrevivência. Recordam-se das manifestações artísticas nas varandas, nas janelas ou nos telhados das casas? Ou os inesquecíveis desenhos de arco-íris das crianças afixados nas janelas e varandas de suas casas? Itália: «Romanos cantam “Bella Ciao” e Hino nas janelas no Dia da Libertação»; Alemanha: «Um esqueleto é visto na varanda de um apartamento em Frankfurt, no leste da Alemanha, em 23 de março»; Brasil: «Adelmo Carvalho, de 55 anos, toca violino na varanda durante o isolamento para evitar a propagação da doença por coronavírus (COVID-19) no Rio de Janeiro»; França: «Jessy Koch, violinista da Orquestra Sinfônica de Mulhouse, se apresenta diariamente em sua varanda para apoiar os profissionais de saúde em Mulhouse, no leste da França»(28 de março de 2020); Polónia: «O cantor de ópera Michał Janicki se apresenta na varanda de seu apartamento e canta para seus vizinhos em Varsóvia, na Polônia, em 28 de março, durante isolamento para conter o novo coronavírus»; EUA: «Danny Wertheimer toca violão e canta para os vizinhos de sua varanda em Oakland, na Califórnia, em 21 de março, dois dias após o governador da Califórnia implementar uma ‘ordem de permanência em casa’ em todo o estado»; Bélgica: «A residente Françoise e seu filho Denis posam na varanda de sua casa com objetos significativos para eles durante isolamento imposto pelo governo belga na tentativa de retardar o surto de doença por coronavírus (COVID-19) em Bruxelas, na Bélgica, em 19 de março»; entre tantas outras manifestações por todo o mundo, umas mais artísticas do que outras. O isolamento só veio demonstrar a inevitabilidade da arte, o homem e a sua expressão. O fermento que nem o vírus conseguiu eliminar. Nova arte? Ou simplesmente arte? Ou arte numa nova circunstância? Admiro o trabalho dos artistas portugueses, do cantor e compositor Flávio Cristóvam e do realizador Pedro Varela, que criaram a música e o vídeo “Andrà tutto bene” (“Vai ficar tudo bem”). A arte existirá sempre em qualquer situação como aqui, à distância (oceanos pelo meio) e com um papel social de combate ao isolamento, à solidão. Toda a manifestação de expressão artística, desde a de mais vanguarda à de não vanguarda, da música erudita à popular, da música escrita à de improviso, da nova arte à arte antiga, todas as manifestações funcionam como um motor na sociedade. Se a arte de vanguarda ou a arte contemporânea é, por assim dizer, o motor que segue na proa? Sim. O seu papel? Estar à frente de qualquer outra manifestação artística: provoca, faz pensar, causa estranheza (nalguns casos), espanto, surpresa, emociona, inspira, transforma, impele. Como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? Com a criação de mais arte.
Não esqueço, nesta resposta, outras civilizações onde a arte não é arte porque simplesmente não existe, como, por exemplo, a música no Afeganistão, ou tem outros papéis dentro de uma sociedade com cariz sobretudo religioso. Os Taliban demoliram, com explosivos, parte de um património de valor histórico-artístico incalculável, diversas estátuas de Budas de Bamiyan, isto por razões religiosas. Figuras com perto de dois mil anos! E mesmo se recuarmos na história ocidental vemos música que hoje é objeto artístico e que na altura não tinha outro papel senão a meditação ou a prática da fé. Por exemplo, o cantochão ou canto gregoriano. Além deste caso concreto da música europeia, outros há em que a música não era, nem é, incluída no conceito de arte para civilizações e culturas. Ela desempenhou e desempenha muitas outras funções nos cinco continentes.

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, ruturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras ruturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

AL: É difícil prever! Mas acredito que haja uma evolução considerável nos campos da organologia, com a criação de novos instrumentos, sobretudo os eletrónicos e digitais, entre outros que se irão inventar, da estética, com a invenção de novos conceitos de arte, talvez o que se aceita hoje como objeto artístico não o seja no futuro e vice-versa, da performance, talvez o que para nós ocidentais, hoje, é sinónimo de espetáculo ou audição musical não o seja mais e talvez as máquinas venham, de facto, a substituir o músico em palco!

Ângela Lopes, entre Porto e Arada, 15 de dezembro de 2021
© MIC.PT

Texto escrito segudno o novo Acordo Ortográfico.

1 Disciplina criada por Cândido Lima na ESMAE.
2 Artigo completo disponível em: LIGAÇÃO.
3 Entrevista a João Madureira, conduzida pelo MIC.PT em Outubro de 2016 e disponível em: LIGAÇÃO.
4 Artigo completo disponível em: LIGAÇÃO.
5 NA 1.ª PESSOA, Entrevista com Pedro Amaral conduzida por Pedro Boléo, gravada a 6 de Outubro de 2020 no O’culto da Ajuda em Lisboa. Entrevista completa disponível no Canal YouTube do MIC.PT: LIGAÇÃO.


Ângela Lopes · Playlist

· “Peça X” (1998) · Suzanna Lidegran (violino) · “Portuguese Music for Violin” [Miso Records (MCD 029.12)] ·
· “Dual” (2004) · Monika Streitová (flauta), Sofia Lourenço (piano) · “Dual – Homenagem a Álvaro Salazar” [Engenho das Ideias/ Phonedition (2008)] ·
· “Cadavre Exquis” (2010) · Sond'Ar-te Electric Ensemble, Pedro Neves (maestro) · “CADAVRES EXQUIS Portuguese Composers of the 21st Century” [Miso Records (MCD 036.13)] ·
· “Fong-Song” (2012) · José Gil Magalhães (flauta), Rui Dias (electrónica) · “A China Fica ao Lado” [Edição de Autor] ·
· “Fado d'Arada” (2013) · Performa Ensemble, Ana Barros (soprano), Helena Marinho (piano), Jorge Salgado Correia (flauta) · Fados [Numérica (NUM 1262)] ·
· “Gárgulas d'Arga” (2013) · Sond'Ar-te Electric Ensemble, Laurent Cuniot (maestro) · “Portuguese Chamber Works of the XXI” [Miso Records (MCD 033/034.13)] ·
· “E(H)LLE(M)– Sete momentos em forma de trança” (2017) · Duo Contracello: Miguel Rocha (violoncelo), Adriano Aguiar (contrabaixo) · “Duo Contracello IV” [Miso Records (MCD 033/034.13)] ·
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