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Isabel Soveral


Foto: Isabel Soveral · © Sofia Moraes

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Questionário/ Entrevista

· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspectos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·

Isabel Soveral: O facto de existir um piano em minha casa permitiu-me, desde muito cedo, explorar o som e combinações sonoras. No entanto, só aos nove anos iniciei os meus estudos em música. Este aspecto é importante, porque a minha relação com o instrumento musical foi anterior ao início da minha aprendizagem musical, dando espaço a muita liberdade na descoberta do mundo sonoro.

· Que caminhos a levaram à composição? ·

IS: O meu contacto com a música contemporânea começou por volta dos 17 anos. Aos 18 anos conheci o Jorge Peixinho, que foi a personalidade artística mais relevante no meu caminho como compositora.

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objectivos «y»? Ou acha que a realidade é demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

IS: O caminho vai-se revelando de forma natural perante os desafios que me são colocados e os desafios que coloco a mim própria.

· No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical? ·

IS: Um discurso musical comunica uma ideia criativa. Como nos diz Pierre Boulez, uma ideia nasce no seio de um determinado vocabulário. Daniel Levitin defende que o discurso musical acontece quando os elementos essenciais se combinam e se relacionam de um modo expressivo quando a forma e o fluxo são produzidos a partir dos seus elementos perceptuais mais básicos, dando origem a emoções e a outros atributos estéticos.
Eu costumo «ilustrar» o meu discurso musical como uma escultura sonora em movimento, tanto no que diz respeito à música electrónica como à instrumental.

· Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho? ·

IS: Sim, o meu trabalho criativo é muito influenciado pelas artes visuais. Por vezes, a minha fonte de inspiração é um quadro ou uma fotografia.
Esta interacção move-se em lógicas que não são compreendidas como musicais, mas que dão origem a ideias musicais, pois é através da música que eu comunico. Relaciono a cor ao som e, por vezes, essa associação som-cor torna-se um princípio formal na elaboração da obra. No entanto, organizo o meu material sempre a partir do intervalo, que é uma entidade mais abstracta.
Por vezes, a inspiração para uma nova obra surge num texto. E dessa obra podem surgir outras que me levem de novo aos textos iniciais, ou a outros textos do mesmo autor, ou a textos de outros autores sobre o mesmo tema. Luigi Pareyson refere que, no desafio de «repensar e formar», trabalho e inspiração não divergem, mas, sim, convergem, enquanto aspectos necessários do processo criativo.

· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo? ·

IS: Um dos aspectos que caracteriza o meu processo criativo prende-se com a fertilização do que já foi exposto para a criação do novo – um tecido musical em constante transfiguração. Tenho tendência para reutilizar pequenas elaborações iniciais inserindo-lhes novos elementos musicais, sendo que esta matéria, elaborada e reelaborada, se situa algures entre um tecido sonoro que ainda não foi recortado, e um gesto mais completo que tem uma forma inerente.
É interessante, quando, duma peça musical terminada, retiro pequenos fragmentos com toda a informação musical que lhes está associada, utilizando-os como um corpo sonoro, do qual parto para a criação de uma nova obra; ou seja, do final de um processo, vou para o início de outro – da obra terminada parto para uma nova criação.
Dentro de um mesmo ciclo de peças, pode acontecer que as últimas já apresentem novas direcções, afastando-se das construções sonoras criando e recriando, configurando e transfigurando a matéria; a música vai-se renovando de um modo orgânico – a matéria sonora espera pela obra que, quando acontece, potencia novas ideias que levam à construção de nova matéria.
Um exemplo concreto deste processo criativo é «Anamorphoses V» (1997) para quarteto de cordas. A obra apresenta o tecido musical que caracteriza o ciclo na sua forma mais madura, juntamente com novos elementos musicais que fertilizam os já existentes. A nova narrativa resultante desta fusão pede um desenvolvimento que é concretizado nas obras seguintes.
Na construção de uma obra, há sempre um processo de morfose que torna o potencial do material sonoro «infinito». A sensação é de trabalhar material vivo, do qual conheço a origem, a evolução e o que necessita para continuar fértil.

· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração? ·

IS: Gosto de pensar que a minha inspiração está impregnada de raciocínios, e que o meu lado racional se «inspira» ou se apoia em «impulsos criativos».

· Em que medida, os novos instrumentos electrónicos e digitais abrem para si novos caminhos e quando os mesmos se tornam constrangedores? ·

IS: Basicamente, compor através da escrita instrumental é combinar os seguintes parâmetros: durações, alturas ou frequências, intensidades e timbres. Como nos explica Flo Menezes, o material musical deriva da escrita combinatória destes elementos. Eu diria que, na música eletroacústica, existe uma fase primeira, anterior à articulação do material no tempo, que corresponde à elaboração dos próprios sons: a primeira matéria sonora, que, mais que no tempo, parece projectar-se no espaço.
Sendo a partitura a representação dos sons no tempo, será bom questionarmos/ pensarmos nesta nova concepção do material no tempo, a qual levou a uma nova escuta, no sentido em que há um desvio da atenção do ouvinte da narrativa mais abstrata da música instrumental para uma escuta mais focada na matéria concreta da música electrónica.
Em estúdio – «laboratório de construção de narrativas sonoras», procuro uma identidade criativa. Diria, mesmo, que acontece um novo pensar criador, que não parte da tradicional escrita, e que obriga o compositor a reposicionar-se, aproximando-se, a meu ver, do processo criativo de um escultor. Normalmente, o compositor confronta-se com este novo meio de criar, onde se desliga da sua próxima relação com a escrita e desenvolve a posição criador-ouvinte, uma relação de simbiose orgânica em que, à semelhança do artista plástico, tem um contacto «em tempo real» com o resultado («ponto a ponto») do material que vai criando. Aqui, o sentido do ilimitado, que inicialmente poderá provocar um estado de excitação ou euforia, poderá levar ao bloqueio. Pierre Boulez chama a atenção para o facto do hábito do exercício da escrita sob as leis da construção coerente e «correcta» do material musical, não ser agora aplicável. Novos pressupostos da combinatória criativa terão de ser assimilados e sistematizados, embora as questões de fundo sobre a coerência estrutural da criação sejam as mesmas.
A interacção entre o mundo da escrita musical e da criação em estúdio é fascinante. Apresentam-se novos pressupostos criativos que a tecnologia permite e potencia. A importância da configuração e modulação espacial na música electrónica influenciou o meu imaginário de compositora de música instrumental. Um exemplo em que a escrita é bastante influenciada pelas ideias das narrativas electrónicas é a minha peça para orquestra «Paradeisoi» (2007), onde o parâmetro espacial se torna mais relevante. Nesta obra, há várias configurações espaciais que criam campos espaciais modulatórios.
Quanto à segunda parte da questão, diria que constrangedor é o preço que custa a um compositor ter um estúdio onde possa trabalhar com qualidade.

· A pesquisa, a experimentação e a invenção, constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da Arte? ·

IS: A experimentação tem como objetivo manter o caminho vivo, excitante. Cada experiência nova deixa um rasto no cérebro que a memória, num momento criativo, activa num novo contexto. E a invenção inicia-se. É, claro, importante desenvolver a perícia – uma aprendizagem que exige consolidação e concretização das ideias no processo criativo da obra.

· Qual a importância do espaço e do timbre na sua música? ·

IS: A configuração espacial e tímbrica na minha obra é da maior importância e tem um carácter modulatório na sua elaboração. Uma das variantes da construção diz respeito ao «timbre harmónico» no sentido plástico do termo.
Em «Anamorphoses V» (1997), o essencial da música já apresentada nas primeiras obras deste ciclo contracena com novos elementos musicais que correspondem a uma sequência intervalar, apresentada e depois expandida, e que surge de princípios similares aos aplicados à elaboração rítmica da música anterior do mesmo ciclo. Essa sequência intervalar contrai-se e expande-se, levando ao surgimento dos quartos de tom, elemento sonoro/ tímbrico que ainda não tinha sido trabalhado em nenhuma das peças anteriores. Surge, aqui, uma nova dimensão sonora no instrumento acústico.
A fragmentação do tom em pequenas partículas intervalares já estava presente nas primeiras obras do ciclo, mas apenas na parte electrónica. Esta nova dimensão intervalar acrescenta potencial a vários níveis do corpo sonoro, nomeadamente ao parâmetro tímbrico. No discurso musical, a percepção destes novos elementos é gradual, acentuando, mais uma vez, o sentido de morfose e de anamorfose. Digamos que estes microintervalos vão sendo desvendados, como se se esticasse um «tecido» musical, surgindo, assim, micromundos de sonoridades no seu interior.
Em «Anamorphoses V» (1997), os microintervalos surgem inicialmente como parte de texturas, resultantes de sequências intervalares (linhas melódicas) apresentadas tão rapidamente, que não oferecem o seu contorno melódico, ou horizontal.
A audição da sequência na sua forma «perfeita» ou «correcta» só surge mais tarde na peça (processo de anamorfose). Na verdade, inicia-se como uma textura, pela sua forma mais plástica, até se revelar como melodia de contorno bem definido.
Em certas obras, crio uma relação directa entre a organização do timbre e do espaço. Em «Paradeisoi» (2007), para orquestra, há uma transformação sonora interna permanente, delimitada por uma configuração espacial fixa – notas aguda e grave, e, por vezes, a nota que define o eixo central. Por exemplo, o acorde principal de «Paradeisoi» tem uma função essencialmente tímbrica, relevante na geografia espacial da obra: o mi no agudo (em harmónicos nas cordas e no xilofone) e o um quarto de tom acima no registo grave (nas cordas graves).

· Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso? ·

IS: «Anamorphoses III» (1995; violino e electrónica), «Anamorphoses VII» (2003; orquestra de câmara), Ciclo «Le Navigateur du Soleil Incandescent» (2004-07; as obras de orquestra) e a obra recente «Anamorphoses IX – Concerto para violoncelo e orquestra» (2017-18). O meu catálogo de obras orquestrais não é vasto (ao contrário do que acontece com o catálogo de obras para música de câmara); no entanto, é nas obras para orquestra que eu me encontro, sempre, em processos de viragem.

· Como escuta a música? É um processo mais racional (analítico) ou emocional? ·

IS: Depende do género de música e do meu estado de espírito no momento da audição.

· Na Entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo» *. Sente proximidade com esta afirmação? ·

IS: Eu diria que a música é o lugar onde sei quem sou, onde encontro o sentido da minha existência e, com ele, o sossego.

· Prefere trabalhar isolada na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

IS: Na tranquilidade do mar.

· Tente avaliar a situação actual da música portuguesa. ·

IS: Muita música na gaveta!

· No tempo presente, quais são as suas preocupações artísticas principais? ·

IS: Tenho grande necessidade de escrever para orquestra, o que representa um projecto criativo difícil de ser concretizado em Portugal. Com a pandemia, as preocupações multiplicaram-se. Um compositor precisa de estar em contacto constante com os intérpretes, necessita que a sua obra seja apresentada com regularidade.

· Numa das entrevistas de 2020 o compositor Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» **. Qual é, na sua opinião, o papel que a música de arte desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel? ·

IS: Talvez as diferentes rádios devessem passar mais música de arte. Talvez as salas de espetáculos devessem programar mais música de arte. Talvez o orçamento para a cultura devesse ser maior. Enfim, muito coisa poderia ser feita para aumentar a presença da música de arte na sociedade, se houvesse maior consciência dessa necessidade por parte dos órgãos com poder de decisão.

· Em termos estéticos e técnicos, a história da música de arte ocidental está cheia de nascimentos, rupturas, mortes, renascimentos, continuações, descontinuações, outras rupturas e por aí fora... Num exercício de «futurologia», poderia desenhar o futuro da música de arte ocidental? ·

IS: A questão passa por perceber se, no futuro, continuaremos a ter fronteiras claras que legitimem falarmos de uma música de arte ocidental, ou da cultura ocidental de um ponto de vista mais abrangente, sem estarmos, inevitavelmente, a falar do passado. É certo que a arte virá sempre confirmar/ testemunhar realidades e através da arte conseguiremos ler, no futuro, o passado. No entanto, não consigo fazer esse exercício de «futurologia», já há algum tempo que «perdi o fio à meada».

Isabel Soveral, Março/ Abril de 2021
© MIC.PT


Isabel Soveral · Playlist

 

   
Isabel Soveral · Na 1.ª Pessoa
Entrevista com Isabel Soveral conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2020.03.17)
  Isabel Soveral · Anamorphoses VIII (2014-19)
Duo Contracello: Miguel Rocha (violoncelo), Adriano Aguiar (contrabaixo)
imagens – Maria Irene Aparício
 
· «Anamorphoses V» (1997) · Sebastian Wiegers (violino), Yan Pipal (violino), Trevor McTait (viola), Oliver Parr (violoncelo) · «Nova Música de Câmara Portuguesa» [Numérica (NUM 1121)] ·
· «Inscriptions sur une Peinture» (1998) · Klanforum Wien, Pascal Rophè (direcção musical) · «Isabel Soveral & António Chagas Rosa Pas de Deux» [Portugaler] ·
· «Nuno e os Monstros» (2008) · Rosinda Costa (narração) · «Contos Contados com Som · vol. II» [Miso Records (mcd 031.13)] ·
· «Le Navigateur du Soleil Incandescent – Quatrième Lettre» (2010) · Sond'Ar-te Electric Ensemble, Pedro Neves (direcção musical) · «Portuguese Chamber Music of the XXI – Vol. IV» [Miso Records (MCD40.16)] ·
· «Please, just one minute!» (2010) · Sond'Ar-te Electric Ensemble, Pedro Neves (direcção musical) · «CADAVRES EXQUIS – Portuguese composers of the 21st Century» [MIC.PT/ Miso Records (mcd 036.13)] ·
· «Heart III» (2014) · Machina Lírica (Monika Streitová [flauta], Pedro Rodrigues (guitarra)] · «Machina Lírica» [Slovart Music (SR – 0071)] ·
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* Entrevista a João Madureira, conduzida pelo MIC.PT em Outubro de 2016 e disponível em: >> ligação.
** Entrevista a Georg Friedrich Haas, conduzida por Filip Lech em Junho de 2020 e disponível on-line no portal Culture.pl: >> ligação.

 

 

 

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