Em foco

João Pedro Oliveira


Foto: Rubner de Abreu

Questionário/Entrevista

Parte I . raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?

João Pedro Oliveira: Formalmente comecei a estudar piano aos 13 anos, mas antes já me interessava por música. Os meus pais também tocavam piano e tinham uma coleção interessante de discos clássicos que eu escutava com frequência. Mozart, Beethoven e Stravinsky são aqueles que me lembro com mais clareza.
Para além disso, eu fazia muitas experiências sonoras, usando um gira-discos muito rudimentar que era do meu irmão, e que tinha o prato livre. Então eu podia tocar os discos “ao contrário”, acelerá-los progressivamente, tocar muito lento, etc. quase como um “DJ dos anos 60”. Nessa altura ficava fascinado com os resultados que podia obter com essas experiências, acho que já era uma antecipação do meu fascínio pela eletrónica.
Quando comecei a estudar música formalmente, o meu propósito principal era pertencer a um conjunto de rock experimental, um dia vir a comprar um sintetizador e poder utilizá-lo para experiências sonoras. Nessa altura um sintetizador Minimoog custava mais ou menos o equivalente a meio ano do salário do meu pai, então esse desejo não pôde ser concretizado nessa altura da minha vida.
À medida que fui progredindo no estudo do piano e posteriormente quando descobri a literatura para o órgão, os meus caminhos orientaram-se na direção dos compositores clássicos e contemporâneos, se bem que o meu fascínio pela manipulação e pela síntese sonora viria a retornar quando fiz os meus estudos nos USA.

Que caminhos o levaram à composição?

JPO: Inicialmente fiz algumas experiências muito ingénuas, ao mesmo tempo que estudava piano, teria uns 14-15 anos. Foi pouco a pouco, com a descoberta da música do Séc. XX, através dos Encontros de Música Contemporânea de Lisboa e outros concertos, bem como a leitura de diversos livros sobre o assunto, que comecei a ter mais sensibilidade para a composição. A escuta de obras como Gesang der Jünglinge, Kontakte e até mesmo o In C, nessa altura foram fundamentais na minha aprendizagem.
Com os estudos de órgão, a obra do Messiaen também me incentivou bastante (aliás as minhas primeiras obras são muito influenciadas por este compositor). Então, pouco a pouco fui conjugando o gosto de tocar órgão com um interesse cada vez maior pela atividade de compositor, que se viria a estabelecer como propósito profissional principal, quando tomei a decisão de ir estudar nos USA.

Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?

JPO: Tive diversos professores e compositores que me ajudaram no meu percurso e a quem devo muito da minha aprendizagem inicial. Os seminários com o Emmanuel Nunes na Gulbenkian foram importantes, o Christopher Bochmann ensinou-me os princípios básicos das técnicas de composição do séc. XX, fiz vários cursos, seminários, etc.
No entanto, olhando retrospetivamente para o meu percurso, tenho que pôr em primeiro lugar os estudos de órgão com o professor Sibertin-Blanc. Num ambiente cultural em que a música contemporânea tinha uma atenção reduzida (ou mesmo inexistente) nas escolas de música e conservatórios, Sibertin-Blanc sempre primou por divulgar e estimular os alunos a tocar obras do séc. XX, juntamente com os clássicos do repertório organístico. Hoje em dia, com frequência recordo conceitos, conversas, exemplos, aprendidos ou discutidos com este professor, e que ainda me servem de modelos e estimulam ideias no dia a dia da composição, ou do ensino.
Posteriormente, quando fiz os meus estudos nos USA, recebi um grande impulso, que me levou a uma melhor compreensão das técnicas de composição e suas implicações estéticas. Tive a sorte de ter como professor Bülent Arel, um dos pioneiros da música eletrónica dos estúdios de Columbia-Princeton e que nessa altura ensinava em Stony Brook. Os estudos realizados com ele durante o mestrado e doutoramento, quer na área da composição, quer da música eletrónica, foram a formação avançada no meu percurso.

Parte II . influências e estética

Que referências do passado e da atualidade assume na sua prática musical?

JPO: São muitas e muito variadas. Por exemplo, grande parte do pensamento construtivo que uso no gesto e na frase musical, assim como o controle sobre tensão e relaxamento, vêm da minha análise e fascínio pelas obras de Beethoven e Brahms. As técnicas que utilizo para interagir os instrumentos acústicos com a eletrónica (e que uso em quase todas as minhas obras) derivam diretamente dos modelos propostos nas Sonatas para Violino e Piano de Beethoven.
Por outro lado, uma certa tendência que tenho, de tentar prolongar o mais possível os momentos de tensão no percurso de uma obra, tem como influência certo tipo de música rock dos anos 70, e também algumas práticas musicais da Índia, nomeadamente a raga. Obras como L’Accordéon du Diable (acordeão e eletrónica, de 2006), Angel Rock (clarinete baixo, marimba, eletrónica, de 2011), Burning Silver (flauta, guitarra, eletrónica, de 2014), Heavy Metals (fagote, eletrónica, de 2015) ou Tensão-deformação (flauta, violino, violoncelo, piano, de 2017), fazem uso destas características.
Na música eletrónica reconheço influências do trabalho de compositores como Francis Dhomont ou Mario Mary.
Finalmente, no que diz respeito ao tratamento tímbrico em certas obras, algumas soluções propostas por Jonathan Harvey ou Helmut Lachenmann interessam-me muito, se bem que não assumo uma influência direta destes compositores no meu trabalho.

No seu entender, o que pode exprimir e/ou significar um discurso musical?

JPO: A questão do significado do discurso musical não me interessa muito. Mas a indução de emoção essa sim, faz parte constante do meu pensamento musical. Independentemente de quais sejam as metáforas que se possam inventar para enquadrar a interação entre a música e quem a escuta, creio que esta se torna inútil se não conseguir provocar emoções no ouvinte. Cada pessoa que escuta é diferente, então a emoção pode ser causada por diversos fatores: arquitetura da obra, sonoridade, tensão produzida, imagética sugerida, etc.. Uma obra “total” pode ter o potencial de provocar emoção em todas estas vertentes. Obviamente podemos falar de emoções positivas ou negativas. Certas obras podem causar reações emotivas de angústia, solidão; ou então alegria, prazer, etc. Tento que as minhas obras provoquem reações positivas em quem as escuta. A sensação de uma experiência estética que se aproxima do sublime é o expoente máximo da interação humana com a arte, e pode provocar um pequeno vislumbre do que pode ser uma experiência mística. Se um dia eu conseguir causar tal tipo de emoção em quem escute uma das minhas obras, considerar-me-ei um compositor feliz e realizado.

Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

JPO: Sim. Vou buscar essencialmente à pintura, à literatura e à arquitetura, muitas influências para o meu trabalho, se bem que outras artes (ou a ciência) também influenciem ocasionalmente. Por exemplo, na pintura, sou fascinado pelas gravuras de Dürer, especialmente aquelas sobre o Apocalipse. Apesar de serem estáticas no papel, a sua construção estimula uma leitura visual muito dinâmica, quase cintilante, com uma quantidade de informação enorme, que exige de quem as observa muito tempo de atenção, ou então leituras múltiplas. A minha obra Íris (para violino, violoncelo, clarinete, piano e eletrónica, de 2000) é inspirada numa dessas gravuras, e inclusive segue a mesma estrutura da imagem de Dürer e da descrição bíblica que lhe corresponde.
Na literatura, a Bíblia tem servido de inspiração para uma percentagem substancial das minhas obras. Obras como Espiral de Luz (para quarteto de cordas, de 2005), o ciclo de obras acusmáticas baseadas nas representações dos quatro elementos (fogo, terra, água, ar) no Antigo Testamento (Et Ignis Involvens, ‘Âphâr, Hydatos e Neshamah) têm como inspiração versículos específicos do Antigo Testamento. Tenho também um ciclo de obras baseadas na ideia de “revelação” (equivalente à palavra “apocalipse” do grego), que são baseadas em diversas profecias e outros textos que se relacionam com este livro do Novo Testamento.
Outras obras como Timshel (grupo instrumental e eletrónica, de 2007), Peregrinação (quarteto de cordas, de 1995), Labirinto (quarteto de cordas e eletrónica, de 2001), A Escada Estreita (flauta e eletrónica, de 1999), Maelström (cimbalão e eletrónica, de 2006) são inspiradas em excertos específicos de Steinbeck, Fernão Mendes Pinto, Mário de Sá-Carneiro, Antero de Quental, Edgar Alan Poe.
Time Spell (clarinete e eletrónica, de 2004) é inspirada por um filme. Obras como Rust, Burning SIlver, Magma, Titanium ou Heavy Metals, tal como os títulos indicam, são inspiradas em elementos da Natureza.
Por outro lado, sendo eu um compositor com formação adicional em arquitetura e tendo um interesse especial pelo movimento espacial do som, grande parte das minhas obras relaciona-se com o espaço arquitetural (proporções, distâncias, percursos), assim como a sua “manipulação” através da música.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da atualidade?

JPO: Nenhuma específica. Mas interesso-me por todas, sem distinção hierárquica. E tento encontrar em cada obra, ou estilo, ou escola, aspetos técnicos ou estéticos que me possam interessar e servir de impulso (ou modelo) para a composição. Numa sociedade cultural em que as barreiras da distância física e cultural foram diluídas (ou mesmo extintas) pela facilidade da comunicação, é muito fácil e estimulante buscar em tudo que estiver ao nosso alcance, ideias que despertem o pensamento criativo.

Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?

JPO: Sim. Já falei atrás na importância do controle de tensão na raga da Índia, que tento usar em muitas das minhas obras, mas interesso-me também por outras culturas musicais. Tenho uma obra em três andamentos chamada Le Voyage des Sons (para grupo instrumental e eletrónica, de 1998-2000), baseada na música do Tibet, da Índia e do Paquistão. Chroma (para piano, percussão e eletrónica, de 2014) e também algumas seções de Titanium (para piano a 4 mãos e dois pianos de brinquedo, também de 2014) são muito influenciada pela música do gamelão de Java e Bali. E em muitas outras obras, há ideias ocasionais que derivam deste meu interesse.

O que entende por “vanguarda” e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

JPO: Essa é uma palavra que teve uma semântica muito forte durante um determinado período de tempo da História mais recente. Creio que hoje em dia o seu significado se desdobrou em muitas direções. Se a ideia de vanguarda significa algo que está na frente dos acontecimentos, ou que aponta novos caminhos técnicos ou estéticos, então, nos nossos dias existem muitos compositores que são (ou não) vanguardistas.
Pessoalmente, tendo em consideração o contexto da atualidade cultural e social, prefiro substituir esse conceito pela ideia de identidade. Um compositor adquire e projeta a sua identidade quando o seu trabalho se reveste de alguma coisa que o torna distinto de todos os outros e pelo qual ele pode ser reconhecido e assimilado. Não se trata necessariamente de linguagem, ou técnica composicional (embora também possa ser um fator importante), mas da forma como se trabalha o discurso musical, implicando contornos, detalhes, processos de criação ou transformação. Copland ou Britten, dois compositores que admiro imenso, trabalharam quase sempre dentro da tonalidade, mas integraram nessa linguagem uma forma de compor única e que os distingue. Isso é identidade.
Obviamente podemos ver o assunto sob duas perspetivas: por um lado, o compositor pode considerar a identidade de si para si mesmo, no sentido em que se permite o direito de afirmar: “isto é o que eu faço, isto é a minha identidade”. Por outro lado, a perspetiva que mais me interessa tem que ver com a estesis do processo de comunicação, a forma como quem escuta vai interpretar o discurso musical. Por exemplo, se ao escutarmos a rádio, podemos distinguir que estamos a escutar Beethoven e não Brahms, mesmo não conhecendo as obras que estão a ser transmitidas nesse momento, identificámos traços que definem a identidade do compositor. Isso é o que me interessa mais. Ou seja, se alguém escutar as minhas obras e puder identificá-las como sendo exemplos da minha forma de compor, então terei conseguido atingir uma identidade musical que me define como compositor.
Obviamente este assunto é complexo, tanto mais se tomarmos em consideração a ideia de “escola” onde há princípios básicos que se projetam em todos os compositores que lhe pertencem. No final do séc. XVII, por exemplo, é difícil distinguir entre Couperin, Clérambault ou Grigny. Mesmo nos nossos dias, alguns estúdios ou instituições primam por ter uma sonoridade própria, que muitas vezes se sobrepõe à sonoridade do próprio compositor.

Parte III . linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspetiva das técnicas/estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

JPO: Tenho alguma dificuldade em fazer isso, pela proximidade que tenho com a própria obra. Esse é um trabalho que pertence à musicologia e à análise, e creio que será mais eficaz sendo feito por outros. Mas mesmo assim posso dizer que me interesso muito pela noção de polo atrativo em música. No meu caso, o trabalho com intervalos dá forma a essa ideia, ao mesmo tempo tornando-a diferente de uma atratividade tonal ou modal. Costumo hierarquizar os intervalos que vou utilizar numa obra, de forma a que exista um intervalo-tónica que define momentos ou seções importantes, e haja outros intervalos secundários que alternam com este intervalo-tónica para criar diferentes níveis de tensão, ou estabelecer mudanças hierárquicas dentro da estrutura da própria obra. As primeiras experiências feitas neste campo concretizaram-se no ciclo dos Integrais I a IV (respetivamente para violino, clarinete, trompa e saxofone, compostos em 1996 e 1997) e nos quais estabeleci as bases para este tipo de pensamento técnico-composicional. Com o passar do tempo fui modificando e aperfeiçoando esta forma de pensar, mas ela está presente em praticamente todas as minhas obras. Há casos, como por exemplo, Abyssus Ascendens ad Aeternum Splendorem (para piano, orquestra e eletrónica, de 2005) em que a utilização do intervalo-tónica escolhido (uma terceira maior), se espalha por toda a obra, atribuindo-lhe uma sonoridade quase tonal. Outros casos, como Mosaic (para piano, piano de brinquedo e eletrónica, de 2010) apesar do intervalo-tónica escolhido ser a quarta perfeita, a sua manipulação durante a obra aproxima-a muito mais da atonalidade.
No caso da música mista, tenho tentado criar um tipo de interação musical entre os instrumentos e a eletrónica que seja muito pessoal. Isso tem que ver com modelos de interação morfológicos (que afetam a relação entre o som do instrumento e da eletrónica), sintáticos (que se relacionam com a interação na construção de frases musicais) e semânticos (que pretendem dar um significado musical à progressão dos sons).

Há algum género/estilo musical pelo qual demonstre preferência?

JPO: Não.

No que diz respeito a sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

JPO: Varia de obra para obra, de contexto para contexto. Muitas vezes uso esquemas pré-composicionais que utilizo na obra, outras vezes parto de uma ideia inicial, desenvolvo a partir daí, e a estrutura da obra vai aparecendo com o trabalho de elaboração do material. Ou então, faço esquemas que depois são parcial ou completamente alterados durante o processo de composição. Este, geralmente segue um modelo bastante dialético, independentemente de ter esquemas pré-estabelecidos ou não. Compõe-se um excerto, avalia-se o resultado, segue-se para a continuação desse excerto. Terminado, avalia-se de novo tudo o que foi feito, e segue-se nova continuação. Por vezes, no meio da escrita da obra, um excerto que já foi composto anteriormente torna-se redundante ou obsoleto e tem que ser refeito ou substituído. Ou seja, a obra vai sendo construída a partir das relações que se vão estabelecendo entre tudo o que foi composto, ou pré-composto; o que está a ser composto no momento; e o que se imagina que ainda virá a ser composto. Por exemplo, uma obra como Labirinto (quarteto de cordas e eletrónica, de 2001) teve seis começos substancialmente diferentes durante o seu processo de composição, antes de chegar à solução final que faz parte da obra. Alguns desses começos foram utilizados em outros momentos da obra, e outros foram abandonados por não servirem mais.
A utilização da eletrónica em muitas das minhas obras afeta bastante este processo. Devido ao facto de não estar necessariamente dependente de alturas fixas, ou de uma partitura escrita, para além de possuir uma “vida” espectromorfológica muito especial (bem distinta dos sons instrumentais), obriga muitas vezes a substituir a ideia de “esquema” ou “estrutura” pré-composicional pela ideia de “modelo” como sendo uma representação simplificada de uma realidade mais complexa. Essa ideia estruturante permite uma grande liberdade na condução do processo da escrita da obra. Quase se trata de construir um “puzzle”, onde todas as partes têm que encaixar corretamente e colaborar com eficácia para a imagem global da obra.

Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os “impulsos criativos” ou a “inspiração”?

JPO: Não gosto muito de falar em “inspiração” no sentido tradicional novecentista da palavra. Uma obra pode ser motivada por um texto, uma imagem, um espaço, etc.. Mas na sua essência, o pensamento criativo é demasiado complexo para ser limitado a essa ideia de surgimento “do nada”. Machado de Assis escreveu um conto onde esse assunto é magistralmente explicado: O Cônego ou Metafísica do Estilo. Transcrevo aqui um excerto que me parece elucidativo de uma possível representação literária do interior da mente, no momento da busca do impulso criativo:
“Vasto mundo incógnito [...] embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências [...] Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéias virgens. Cousas e homens amalgamam-se [...] farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.”
Então essas reminiscências, embriões, ruínas, sensações, de que fala Assis representam de certa forma o material que temos à disposição, quando da nossa busca interna por uma ideia musical. Talvez tudo já tenha sido feito e as nossas memórias (individuais e coletivas) nos aportem reminiscências desse todo que, como diz Assis, é amálgama da nossa vivência passada e presente. Elas vão-se fundindo e transformando em imagens, sons, sensações, que se irão materializar naquele momento em que surge o “eureka”, ou se concretiza outra forma de pensamento criativo. Mas isto é apenas o início. Depois há que descobrir como dar forma a essa ideia, como a situar e como a apresentar. Tudo isso faz parte do processo dialético que referi na resposta anterior. Então, raciocínio, impulso criativo, inspiração, intuição, busca, materialização, não são entidades separadas que lutam ou que se opõem na construção do pensamento criativo. Fazem parte de um todo muito complexo, que é uma dádiva única de todos os criadores.

Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?

JPO: A tecnologia está quase sempre presente na minha obra. No entanto ela não passa de uma ferramenta. Não lhe atribuo qualquer influência na estética de uma composição, ou de um pensamento composicional. No entanto, dependendo do seu estado de desenvolvimento, pode permitir a concretização de ideias que eventualmente antes não seriam realizáveis. O escapamento duplo nos pianos de Pleyel permitiu a Liszt e outros compositores da época proporem soluções composicionais que antes não seriam realizáveis no instrumento. Da mesma forma, a informática musical permitiu ao compositor fazer coisas que nos anos 80 seriam impossíveis ou impraticáveis.
Tecnologia deve estar ao serviço e depender da ideia musical, nunca o contrário. Senão cai-se no risco de se entrar numa espécie de “fetichismo tecnológico” em que a solução tecnológica para o problema composicional se torna mais importante que o problema em si, ou que o resultado musical.
Como sou um utilizador assíduo e convicto da tecnologia, também desenvolvi uma desconfiança (ou mesmo uma suspeita) constante relativamente à sua função, e o que ela pode significar no processo criativo.

Defina a relação entre a música e a ciência e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação.

JPO: Um compositor muitas vezes busca em outras áreas do conhecimento, ideias ou conceitos que influenciam (ou pelo menos estimulam) o seu trabalho e o seu pensamento criativo. Como referi atrás, muitas obras minhas vão buscar à religião, ou a outras artes, estímulos criativos. A ciência também é uma dessas áreas de interação.
Em certa altura da minha vida interessei-me muito por fractais e como os aplicar em música. Tessares (para orquestra, de 1991) ou Pirâmides de Cristal (para piano, de 1993) são construídas sobre estruturas que derivam da teoria dos fractais. O ciclo Integrais, como o título indica, tem uma relação conceitual (embora não técnica ou estrutural) com a noção matemática.
Mais recentemente tenho-me interessado pela teoria dos modelos, e por processos influenciados pela lógica difusa. Este interesse tem que ver com uma certa flexibilidade que está incorporada no meu processo de criação e que os conceitos associados à lógica difusa ou à teoria dos modelos permitem enquadrar num pensamento lógico e estruturado, com certa facilidade. Obras como Maelström ou L’Accordéon du Diable (respetivamente para cimbalão e eletrónica, e acordeão e eletrónica, ambas de 2006) usam métodos de construção de frases e segmentos da obra, que se ancoram conceptualmente na lógica difusa. Muito do trabalho que faço de interação entre instrumentos e eletrónica baseia-se na teoria dos modelos.

Qual a importância do espaço e do timbre na sua música?

JPO: Como trabalho frequentemente com música eletrónica o espaço e o timbre são fundamentais no meu pensamento.
Falando de espaço, uma ideia que me interessa muito tem que ver com gestualidade musical e seus possíveis significados, uma espécie de semiótica do gesto e suas consequências no pensamento e discurso musicais. Essa reflexão sobre o gesto, sob o ponto de vista sonoro (mudanças de energia, significação musical ou extra-musical, etc.) pode extrapolar-se para o espaço. Pode ser um movimento do intérprete que provoca uma projeção sonora movimentando-se pelo espaço, através da manipulação eletrónica; ou então um gesto musical que se desenvolve espacialmente, acrescentando uma nova rede de significados à sua interpretação, por parte de quem escuta.
O timbre também é parte fundamental no meu pensamento. Tenho-me interessado pelas relações existentes entre o som instrumental e o som eletrónico, e como um pode influenciar ou provocar ideias que se aplicam no outro. Muito do meu trabalho com o timbre, na música acusmática, tem servido para estimular novas ideias na música instrumental, especialmente na composição para orquestra.

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

JPO: Creio que sou mais um clássico do que um experimentalista. Prefiro associar o pensamento musical e de composição à resolução de um problema que me pus a mim mesmo, por exemplo: inventar uma nova estrutura de obra; pensar um novo tipo de interação entre instrumentos e eletrónica; utilizar um instrumento de uma forma interessante que não seja uma cópia do que já foi feito, etc.. Creio que isto é um tipo de pensamento bastante clássico, podemos encontrá-lo, por exemplo, na maneira como Beethoven vai transformando a forma musical à medida que se aproxima das suas últimas obras.
Não me interessa tanto experimentar para criar um problema, sem no entanto necessitar posteriormente de o solucionar. Creio que esse é um dos fundamentos do experimentalismo, pelo qual não sinto fascínio, nem me estimula. Sob esse ponto de vista, creio que sou muito mais voltado para um pensamento livre mas rigoroso, consciente das suas limitações, das suas consequências e dos seus desafios.

Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?

JPO: São várias. Talvez a mais importante seja Le Voyage des Sons, composta entre 1998 e 2000. Hoje não a considero uma das minhas obras musicalmente mais interessantes, mas foi aí que pela primeira vez experimentei com um tipo de interação entre sons instrumentais e sons eletrónicos, que viria a ser a base de grande parte das minhas composições posteriores. Depois seguiram-se A Escada Estreita (para flauta e eletrónica, de 1999), Íris (para violino, violoncelo, clarinete, piano e eletrónica de 2000) e In Tempore (para piano e eletrónica, também de 2000). Nestas três obras pude consolidar a técnica de interação iniciada em Le Voyage des Sons, e que ainda uso hoje em dia.
Em 2005 compus duas obras que também representam outro ponto de viragem. Et Ignis Involvens (acusmática) e Espiral de Luz (quarteto de cordas) foram duas obras onde tentei aproximar a escrita instrumental da “escrita” eletrónica. Et Ignis Involvens tenta incorporar na linguagem eletrónica um tipo de sonoridade, gestualidade e construção de frase com características derivadas da composição instrumental; Espiral de Luz tenta utilizar na escrita instrumental certos processos de manipulação de sonoridades que a aproximam da composição eletrónica. Esta possibilidade de permutação de características entre dois media substancialmente diferentes (instrumentos/eletrónica), tem-me interessado muito nos últimos anos.
Finalmente em 2013, a composição da minha primeira obra com vídeo (Hydatos), também pode ser considerada importante. O trabalho da imagem passou a fazer parte do processo criativo.

Em que medida a composição e a performance constituem para si atividades complementares?

JPO: Eu já não atuo profissionalmente como instrumentista há quase 15 anos. Mas quando exercia a atividade de organista e realizava concertos, a alternância entre as duas atividades era muito estimulante para a criatividade. Certos problemas e soluções relacionados com composição tornavam-se mais claros ao estar em contato direto com a música, através do ato de tocar. E muitas vezes, soluções propostas pelos compositores que eu tocava (clássicos e contemporâneos), serviam de modelo ou estímulo para as minhas próprias obras.
Aproveitando, e falando um pouco da relação entre compositor e performer, este último é o meu interlocutor privilegiado. Nunca escrevo nenhuma obra solista ou de câmara que utilize técnicas especiais, ou uma escrita mais complexa, sem que a mostre ao(s) instrumentista(s) para que a exequibilidade e o resultado sonoro da mesma sejam avaliados. O trabalho na universidade simplifica muito este processo, pois os colegas geralmente estão disponíveis para colaborar neste processo.
Infelizmente não é possível fazer isso com obras para orquestra, e por essa razão muitas das minhas composições orquestrais foram posteriormente revistas, para solucionar alguns problemas que se tornaram aparentes nas primeiras execuções.

Parte IV . a música portuguesa

O que, em seu entender, distingue a música portuguesa no panorama internacional?

JPO: Muito pouco, ou mesmo nada, creio eu. A ideia de escola ou estilo nacional (ou nacionalista) diluiu-se com a facilidade de comunicação característica dos nossos tempos. As fronteiras são mais ténues. Nos anos 70 e início dos anos 80, quando eu estudei, o acesso à música que se fazia fora de Portugal era muito limitado. Isso incentivava a predominância de uma escola, que circulava à volta dos mestres com quem os alunos se comunicavam. Hoje em dia temos acesso a praticamente toda a música, de todo o estilo ou cultura. Então a escola tem uma função diferente da que tinha no passado. Creio que se caminha cada vez mais para uma individualidade do compositor, a sua identidade (que já mencionei atrás), muitas vezes construída a partir de inúmeras influências vindas de todo o lado, que o definirá perante o percurso histórico passado presente e futuro.

No seu entender é possível identificar algum aspeto transversal na música portuguesa da atualidade?

JPO: Pelas razões que citei na resposta anterior, tenho dificuldade em encontrar essa transversalidade. Mas pode ser que ela exista, quem sabe... A História tem formas curiosas de interpretar o passado que muitas vezes são incontroláveis, ou então dependem de quem faz (bem ou mal) essa interpretação...

Conforme a sua experiência quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?

JPO: Como não estou em Portugal há vários anos, a minha perspetiva pode estar um pouco desatualizada. Mas do que ainda posso observar, acho que não existem grandes diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo, a não talvez ser a quantidade de dinheiro que é investida na cultura, e que de certa forma determina o nível de “satisfação” que os profissionais do ramo poderão ter.
No mais, como em todo o lado, tem qualidades, problemas, virtudes e defeitos. Sempre existirão compositores que se servem unicamente da sua obra para se projetarem e ganharem reconhecimento na sociedade; outros usam suas conexões políticas ou sociais em prol da sua promoção, independentemente da qualidade do seu trabalho; outros preferem ter uma postura mais recatada, compondo para um pequeno círculo de conhecidos ou amigos; outros optam pela administração e organização; e por aí fora...
As instituições também variam. Tem as que optam por uma postura isenta e neutra, aceitando todo o tipo de propostas; outras escolhem os seus compositores protegidos promovendo-os; outras ainda derivam um pouco por todo o lado, dependendo de quem no momento a dirige e dos seus gostos pessoais.
No fundo, como diz ironicamente um colega meu, talvez a política cultural de um país seja determinada pelos números de telefone que cada um tem gravado no seu telemóvel. E acho que isto é igual em todo o mundo.

Parte V . presente e futuro

Quais são os seus projetos decorrentes e futuros?

JPO: Nos últimos anos tenho-me interessado bastante por síntese de imagem, usando técnicas muito parecidas com as que uso na música eletrónica. Acrescentei vídeo a algumas das minhas obras acusmáticas ou instrumentais, o que lhes trouxe uma nova dimensão, e tenho composto algumas novas obras com instrumentos ou eletrónica e imagem. Nos próximos tempos quero aperfeiçoar as minhas técnicas nesta área (síntese de imagem 3D, videomapping e eventualmente chegar a entrar na realidade virtual).
No campo da música em si, continuo a interessar-me pela interação entre instrumentos e eletrónica e pela “transposição” para a escrita instrumental de muitas ideias e tipos de som que fazem parte da composição acusmática.
Nos projetos de composição, tenho há muitos anos uma ideia para uma ópera multimedia baseada nas profecias de Daniel, no Antigo Testamento, que seria a sétima e última obra do ciclo “revelação”. Embora já tenha contactado diversas instituições sobre este assunto, ainda não consegui apoio para a concretizar.

Poderia destacar um dos seus projetos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

JPO: Posso destacar os vídeos que fiz para as minhas obras acusmáticas baseadas nas representações dos quatro elementos no Antigo Testamento, já referidas atrás. Estes vídeos foram compostos entre 2013 e 2016 e serviram de motivo para uma aprendizagem e desenvolvimento das técnicas de manipulação de imagem. De alguma forma tentei encontrar nas imagens (algumas abstratas e outras figurativas) correspondentes visuais, quase sinestésicos para os sons eletrónicos das obras, e ao mesmo tempo construir uma narrativa, que conjugasse as ideias formais e gestuais da parte musical, com a intervenção das imagens. A técnica de manipulação e transformação da imagem é, em muitos aspetos, semelhante à da manipulação do som. Então o pensamento composicional seguiu caminhos paralelos nos dois media, se bem que cada um deles incorpora certas particularidades que podem influenciar a criatividade no outro.

Como vê o futuro da música de arte?

JPO: Creio que, cada vez mais, há uma vocação para associar e integrar a música com as outras artes, e no futuro essa tendência irá tornar-se ainda mais forte. Projetos multidisciplinares, que combinam várias expressões, muitas vezes resultado de trabalho de equipa, têm-se tornado o centro de interesse de muitas instituições. Creio que o compositor terá aí um grande campo de exploração, que poderá ser muito frutuoso.
Creio também que o conceito de “música de concerto”, para ser apreciada em sala de espetáculos, vai-se diluindo a pouco e pouco, ou pelo menos começa a ser cada vez mais confrontada com alternativas muito interessantes.
A experiência multissensorial “profetizada” por Aldous Huxley tem ganho muito peso e começa a poder ser consumida em casa das pessoas, sem necessidade de acesso a outros espaços. Creio que os compositores das próximas gerações irão ver uma mudança muito grande nos paradigmas do porquê, do como, do para quem e do por quem, da criação artística.

João Pedro Oliveira, dezembro de 2017
© MIC.PT

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 

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