Em foco

Jorge Peixinho (1940-95)


Jorge Peixinho no Música Hoje (emissão de 11 de Abril na Antena 2) .
programa disponível através do RTP Play: www.rtp.pt/play/p1390/e191043/musica-hoje

Em 2015 Jorge Peixinho faria 75 anos...
Foi uma figura ímpar na música portuguesa da segunda metade do século XX, tendo desempenhado um papel precursor a partir dos anos 60, no que diz respeito à abertura de Portugal às estéticas musicais da vanguarda. A sua sólida formação académica andou de par com uma grande criatividade, resultando numa produção não apenas de dimensões consideráveis mas também profundamente variada e politicamente significativa. Na sua música podemos detectar um esforço para disciplinar o seu temperamento ardente dentro de um conjunto de regras, autoimpostas sempre com uma grande lucidez. Como escreve Paulo de Assis na introdução ao livro Jorge Peixinho. Escritos e Entrevistas: "talento precoce, viadante dos grandes centros da vanguarda do pós-guerra europeu (...), Jorge Peixinho demonstrou sempre uma vontade firme e tenaz de transformar o panorama musical que o envolvia, mesmo quando as circunstâncias e os resultados lhe eram adversos"[1].

Jorge Peixinho nasceu em Montijo em 1940 e iniciou os estudos de piano e composição com a sua tia Judite Rosado. Entre 1951 e 58 estudou no Conservatório Nacional, tendo tido como professores Artur Santos (piano) e Jorge Croner de Vasconcelos (composição). Ao longo do ano de 1960, em Veneza foi aluno de Luigi Nono, e nos Países Baixos realizou um estágio no Estúdio Electrónico de Bilthoven. Estudou ainda composição na Academia de Santa Cecília em Roma com Boris Porena e Goffredo Pertassi (1958-61). “[O encontro com a Itália] foi a descoberta da minha própria personalidade. Devido às limitações do Conservatório e do nosso nível musical eu fora levado a adoptar um impessoal estilo neoclássico, que marca as minhas primeiras peças. Mas em Roma, ao contacto com um ensino vivo da música dos nossos dias, senti os meus interesses musicais desviarem-se para as obras de Schönberg e especialmente de Webern, que em Lisboa eu mal conhecia. Esse interesse levou-me a passar a compor segundo as normas do dodecafonismo, embora não aderindo à organização serial”[2].
Jorge Peixinho completou o Meisterkurse da Academia de Basileia, onde foi aluno de Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen e Gottfried Michael Koenig. Entre 1960 e 1970 participou nos Cursos Internacionais de Composição em Darmstadt, colaborando nos projectos de composição colectiva dirigidos por Karlheinz Stockhausen. “No trabalho com Stockhausen houve duas partes fundamentais: uma delas, o seminário, onde se debateram problemas de grande importância para o movimento musical de hoje, a posição do compositor no mundo e perante a sociedade, as relações compositor-intérprete (mas vistas sob um ângulo completamente novo). Foi uma fase de meditação, de estudo, de aprofundamento de conceitos teóricos. (...). Stockhausen demonstrou justamente que, nos dias de hoje, era impossível um compositor poder revelar inteiramente todo o seu potencial de criação e o desapego a fórmulas e clichés anteriores a partir duma melodia”[3]. E assim fala sobre Jorge Peixinho o compositor alemão no depoimento publicado em 2002 no livro Jorge Peixinho in memoriam: “Nos Cursos de Música Nova em Colónia e nos Cursos Internacionais de Férias de Música Nova, Jorge Peixinho foi meu aluno durante longo tempo: um talento sui generis, muito simpático, leal. Encontrei-o ainda algumas vezes em Lisboa, ficando a sua afabilidade extraordinária e a sua competência musical gravadas para sempre na minha memória. Especialmente nos meus concertos e seminários em Lisboa procurei, em vão, obter respostas sobre o facto de a obra de Peixinho ser tão subestimada em comparação com outros de muito menos talento. É verdade que ele era muito modesto. Noutros mundos superiores as suas virtudes o farão progredir depressa”[4].
Jorge Peixinho foi professor de composição no Conservatório de Música do Porto (1965-66), no Conservatório Nacional (1985-95) e em diversos outros cursos de composição em Portugal, Espanha, Itália e Brasil. Na primavera de 1970, com colaboração de alguns músicos portugueses, entre eles, Clotilde Rosa, Carlos Franco e António Oliveira e Silva, fundou o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (GMCL), onde participou como pianista e director musical, e com o qual realizou inúmeros concertos na Europa, Brasil e Argentina. Compôs a maior parte das suas obras propositadamente para o GMCL, formação organizada como um espaço aberto de constituição variável, com o objectivo principal de divulgar obras de autores portugueses contemporâneos. Enquanto pianista e director musical do GMCL, dedicou-se à divulgação da música contemporânea, incluindo um vasto repertório de compositores mais jovens, devendo-se-lhe numerosas primeiras audições de obras de criadores portugueses. O GMCL abriu uma janela sobre a criação contemporânea internacional e permitiu que nomes como Constança Capdeville ou Emmanuel Nunes, entre muitos outros, se fizessem ouvir. “A ideia [de fundar o GMCL] surgiu por ocasião dum concerto na Gulbenkian. Eu e outros músicos que intervieram nesse concerto constituímos um núcleo interessado na manutenção dum trabalho musical com continuidade. O nosso interesse incidia, especialmente, no cultivo da música contemporânea entre nós, mas alargava-se à pesquisa e prospecção musicais”[5].
Ao longo de 2015 no contexto do 75.º aniversário de Jorge Peixinho, o GMCL em colaboração com outras entidades está a organizar várias iniciativas, entre as quais o 1.º Concurso Internacional de Composição GMCL/Jorge Peixinho, assim como concertos, conferências e sessões de electroacústica...

Jorge Peixinho cultivou sempre uma meditação pessoal sobre a sua própria obra e o seu percurso, ao mesmo tempo mantendo uma consciência das dinâmicas e dos debates estéticos que caracterizaram a segunda metade do século XX. Como compositor, revelou-se pelas suas ideias inovadoras, pela grande flexibilidade no contexto das diversas correntes estéticas, sempre aliadas à experimentação sonora. Antes das Cinco peças para piano, obra catalogada como opus 1, tinha composto, ainda como aluno do Conservatório Nacional, cerca de 40 obras, na sua maior parte para piano. “Nunca se cingiu a uma estética musical, evoluindo ao longo da sua carreira. Integrou nas suas obras diversas técnicas composicionais e procurou construir um novo universo tímbrico. Desenvolveu a ideia de «rigor e liberdade» procurando o equilíbrio entre a improvisação e a composição escrita”[6]. Apesar de ter tido contacto com a técnica do serialismo integral, “nunca a utilizou de uma maneira ortodoxa, preferindo aquilo a que chamou «serialismo virtual» ou «pensamento serial sem série» (...)”[7].
O objectivo da sua música foi sempre a construção e organização de um novo e pessoal mundo sonoro, sendo que, simultaneamente, Jorge Peixinho insere-se num conjunto de compositores que acreditam no progresso da linguagem musical, “[na] contínua inovação e a necessidade de superar parâmetros estéticos anteriores”[8]. É o equilíbrio entre o lírico e o racional, entre a especulação e a expressão, que distingue a sua obra, que abarca diversos géneros: música para coro, música de câmara e a solo, incluindo algumas peças com electrónica, música electroacústica, obras para orquestra com ou sem solistas, abrangendo também música para teatro, cinema e multimédia. As palavras do próprio compositor são explícitas a este respeito: “No meu caso, tendo para a liberdade e (...) para o rigor. Pretendo que (...), a liberdade de criação, as opções que a cada momento se me põem (...) estejam sempre temperadas por um princípio de rigor muito forte. Um rigor que pode ser um rigor a priori, um rigor pré-determinado, o qual existe por vezes na minha obra, mas que, devo confessar, nasce na maior parte dos casos um pouco depois. É a posteriori que vou «arrigorar» toda essa liberdade em termos de organização dos espaços musicais, das várias dimensões do tempo, das relações de tensão e distensão intervalar”[9].
Jorge Peixinho exige do público uma atenção e escuta intensa, pois a música é, para ele, “uma das mais altas manifestações do espírito humano e como tal acompanha (...) a própria evolução espiritual de uma civilização e de uma sociedade, (...) não existe para servir um público, nem para qualquer fim grosseiramente utilitário”[10]. A crescente influência de Karlheinz Stockhausen é detectável na sua obra a partir de 1963, culminando na aleatoriedade de Eurídice Reamada (1968). De 1969 em diante, a sua música ganhou um lirismo particular baseado na introdução de citações, na distensão temporal e no refinamento tímbrico. As suas obras da segunda metade dos anos 70 e dos anos 80 apontam para o desenvolvimento duma linguagem harmónica baseada em diferentes paradigmas intervalares. Os gestos instrumentais criam conjuntos sonoros que passam a ser os elementos funcionais da linguagem de cada obra. Por exemplo a peça Ouçam a soma dos sons que soam (1986) apoia-se na transformação sucessiva de um acorde-matriz, patente em “texturas que evoluem polifonicamente e que convivem num jogo tímbrico caleidoscópico”[11]. Simultaneamente no início dos anos oitenta, o compositor começou a dar valor à falsa citação e à autocitação, explorando contextos sonoros estilisticamente "contaminados", que testemunham a influência do pós-modernismo, com o qual teve uma relação ambígua. A sua influência foi grande; compositores como Clotilde Rosa, Paulo Brandão, Lopes e Silva ou Isabel Soveral, entre muitos outros, devem-lhe um impulso decisivo para a sua evolução artística.
Ao longo do seu percurso, Jorge Peixinho, no contexto da ideia de “rigor e liberdade”, utilizou diversas técnicas e abordagens composicionais, nomeadamente: processos aleatórios, forma aberta, improvisação, experimentação, explorações tímbricas, espacialização, citação e autocitação ou colagem e montagem. Manuel Pedro Ferreira considera que o compositor, tentando afirmar um universo sonoro muito pessoal, procurou “conciliar a sua herança pós-serial com a sensibilidade pós-moderna, acentuando certas vertentes da sua poética em detrimento de outras, sem a reformular por inteiro, e sem se preocupar em filtrar todas as novas obras através da nova sensibilidade”[12]. Das obras suas que usam citações, e que reflectem uma apreciação aprofundada da música do passado, o compositor dá-nos três exemplos: Eurídice Reamada (1968) em que existem elementos retirados dos Orfeus de Monteverdi e de Gluck; As Quatro Estações (1972), que é a obra em que o compositor utilizou de modo mais desenvolvido os processos da citação, “desde a citação pura e simples (...) até à desmontagem de todo o percurso, dos pontos de vista melódico, harmónico, tímbrico, etc...”; e ainda A idade do ouro (1973) “baseada na música original do filme A Pousada das Chagas, [que] recebeu o Prémio da SPA em 1975, mas só foi estreada em 1996, um ano depois da morte do compositor"[13].

A característica principal da música de Jorge Peixinho “é uma espécie de «atmosfera sonora onírica», na qual surgem pequenas transformações através de artifícios contrapontísticos, filtragens harmónicas e tímbricas, etc”[14]. Pela sua obra o compositor recebeu vários prémios nacionais de composição: o Prémio do Conservatório Nacional (1958), o Prémio Sassetti (1959), o da Casa da Imprensa (1972), o Prémio de Composição Musical da Fundação Calouste Gulbenkian (1974), o do Conselho Português da Música (1984), o Prémio de Música de Câmara da Sociedade Portuguesa de Autores (1975 e 1985) e, finalmente, o Prémio Joly Braga Santos e a Medalha de Mérito Cultural da Secretaria de Estado da Cultura (1988), assim como a Medalha de Ouro da Cidade de Montijo (1991). Presentemente a sua música encontra-se digitalizada e editada pelo CESEM, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa, em parceria com o Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa, cujo portal www.mic.pt disponibiliza presentemente 96 partituras suas. Outro projecto editorial a decorrer focado na obra de Jorge Peixinho, também realizado sob a chancela do CESEM e coordenado por Francisco Monteiro, diz respeito à edição crítica das suas obras de câmara.

Jorge Peixinho deixou-nos há 20 anos, a 30 de Junho de 1995. Politicamente activo desde finais dos anos sessenta, conotado com uma esquerda próxima do Partido Comunista Português, soube juntar na sua música o envolvimento moral e a integridade artística. Neste sentido a sua obra, como a de tantos outros compositores portugueses, é um meio poderoso para reverter os processos graduais da degradação da nossa identidade, sendo simultaneamente uma manifestação do que é o mais valioso na cultura portuguesa.

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1 Paulo de Assis, Introdução em: Jorge Peixinho. Escritos e Entrevistas, Porto/Lisboa, CESEM/Casa da Música, Outubro de 2010, p. 11 .
2 Jorge Peixinho na Entrevista ao Diário de Lisboa (1961), A era tonal terminou: a música dodecafónica não é a arte do futuro é já a do presente, publicada em: Jorge Peixinho. Escritos e Entrevistas, op. cit., p. 190 .
3 Jorge Peixinho na Entrevista de Mário Vieira de Carvalho (Vida Mundial, 3 de Janeiro de 1969), Jorge Peixinho: as últimas experiências musicais segundo um prisma pessoal, publicada em: Jorge Peixinho. Escritos e Entrevistas, op. cit., p. 234 .
4 Karlheinz Stockhausen, Um talento sui generis, em: Jorge Peixinho in memoriam, Lisboa, Caminho da Música, 2002, p. 81 .
5 Jorge Peixinho na Entrevista de Carlos Benigno da Cruz (Rádio & Televisão, 22 de Julho de 1972), Jorge Peixinho: vanguarda é futuro; publicada em: Jorge Peixinho. Escritos e Entrevistas, op. cit., p. 320 .
6 Evgueni Zoudilkine, Peixinho, Jorge em: Enciclopédia da Música em Portugal no século XX, direcção de Salwa Castelo-Branco, Lisboa, Círculo de Leitores, 2010, p. 977 .
7 ibidem .
8 Cristina Delgado Teixeira, Música, estética e sociedade nos escritos de Jorge Peixinho, Lisboa, Edições Colibri, 2006, p. 211 .
9 Entrevista com o compositor Jorge Peixinho de Eduardo Vaz Palma, publicada postumamente na Arte Musical (IV série, n.º 1), 1995, p. 13 .
10 Jorge Peixinho na Entrevista à Revista Plateia (Plateia, 28 de Janeiro de 1969), Jorge Peixinho: a música, como toda a arte em geral, não existe para servir um público nem para qualquer fim grosseiramente utilitário!; publicada em: Jorge Peixinho. Escritos e Entrevistas, op. cit., p. 250 .
11 Evgueni Zoudilkine, op. cit., p. 978 .
12 Manuel Pedro Ferreira, A obra de Peixinho: problemática e recepção, em: Jorge Peixinho in memoriam, op. cit., p. 258 .
13 Cristina Delgado Teixeira, op. cit., p. 166/67 .
14 Jorge Peixinho, em B. Morton, Contemporary Composers, P. Collins (ed.), St. James Press, Chicago 1992, p. 735; citação utilizada na introdução ao livro Jorge Peixinho in memoriam, op. cit. .

 

 

 

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