De raízes gregas, a palavra descreve, como se sabe, a deformação de uma imagem em virtude do seu reflexo num sistema óptico não rectiforme. Ao longo de toda a história da música, o compositor tem sido confrontado com o problema da reaparição dos mesmos objectos sonoros no interior de uma mesma obra. Soluções diversas reemergem, maios ou menos periodicamente, elegendo uma maior ou menor possibilidade de reconhecimento à audição desses objectos-chave. Por vezes, como em diversas fugas de Bach, as concepções cruzam-se, e um tema cujas imagens se mantenham imutáveis, transpondo-se de voz para voz, de tonalidade para tonalidade, sofre subitamente uma modificação: os intervalos invertem-se, o carácter altera-se, a percepção modifica-se. É precisamente um exemplo, ainda que relativamente simples, de "anamorfoso". Outras vezes, como em alguns ciclos de variações de Beethoven, os objectos tornam-se, pouco a pouco, tão profundamente desenvolvidos, numa alquimia incessante, que quando chegamos ao fim já não há qualquer relação aparente com aquilo que nos foi dado a conhecer como ponto de partida. Em certo sentido, esta pequena obra é uma exposição contínua de objectos, entrecortada por um cortejo de "variações" em permanente transformação. Cada grupo no interior da orquestra desenvolve determinada matéria que se projecta, em seguida, como numa estranha e mágica sala de espelhos, das mais diversas maneiras, sob as mais diversas aparências, sofrendo os graus mais diversos de "anamorfose". Devem essas transformações ser imediatamente perceptíveis e "reconhecíveis"? Depende da maior ou menor capacidade técnica dos intérpretes e, sem dúvida, da maior ou menor perspicácia dos ouvintes. Algumas estão de tal forma dissimuladas que só uma pluralidade de audições, uma memória morosamente nutrida através de um contacto repetido com a obra, poderia clarificar. Outras, pela sua evidência, podem talvez ser descobertas numa primeira abordagem.
Pedro Amaral
Encomenda
Data 1998
Entidade Festival Internacional de Música de Macau
