A definição mais óbvia de “quarteto de cordas” é provavelmente esta: um género de música de câmara para um conjunto de quatro instrumentos – dois violinos, viola e violoncelo. Contudo algumas enciclopédias de música vão mais longe sugerindo uma das formas musicas mais sofisticadas, uma espécie de laboratório reservado para as ideias musicais mais extraordinárias que encontrou a sua face mais elaborada na obra de Ludwig van Beethoven e Bela Bartók.
No dia 11 Setembro a Miso Records lançou um novo CD dedicado exclusivamente ao quarteto de cordas português contemporâneo, com obras de Pedro Rebelo, Miguel Azguime, Carlos Caires e Pedro Amaral interpretadas pelo grupo britânico, Smith Quartet. Esta edição é fruto do projecto “Circuits” desenvolvido pela Miso Music Portugal, apoiado pela British Council e pelo Instituto Camões. Dentro do projecto, durante vários anos o Smith Quartet deu uma série de concertos europeus para apresentar a obra de vários compositores portugueses de destaque.
O Smith Quartet tem criado um repertório no qual é possível encontrar obras “clássicas” do século XX, mas também mais de 100 peças encomendadas a compositores do mundo inteiro. Frequentemente a música interpretada pelo quarteto envolve o uso de meios electrónicos e a lista de compositores do seu repertório inclui: John Adams, Django Bates, Joe Cutler, Morton Feldman, Henryk Mikołaj Górecki, Emmanuel Nunes, Steve Reich, Alfred Schnittke e Paweł Szymański, entre muitos outros. Ao lado dos Kronos Quartet e Arditti Quartet, o Smith Quartet faz um esforço contínuo para dar uma nova abordagem ao género, para desenvolvê-lo e ir além do seu papel tradicional fazendo parte de projectos cross-genre e multimédia.
Quarteto de cordas, por alguns considerado o pináculo da música ocidental, é uma forma para a qual compositores desde Joseph Haydn até Helmut Lachenmann reservaram algumas das suas ideias composicionais mais excepcionais. Nos seus inícios o quarteto era um meio de expressão reservado aos ambientes mais íntimos, à execução doméstica, devido às características de natureza acústica. Contudo no século XIX e depois no século XX os compositores descobriram o seu potencial expressivo e o quarteto entrou nas salas de concerto. Por um lado a forma caracteriza-se por adaptabilidade, homogeneidade e condensação visto que todos os instrumentos têm a raiz sonora semelhante, mas por outro, é uma fonte sonora rica com uma grande faixa tonal. A partir da segunda metade do século XX, com o aparecimento das tendências pós-modernas nos anos sessenta e setenta, nasceu uma nova onda na criação de quarteto de cordas. O género incorporou, com muita facilidade, as novas maneiras de tratamento de instrumentos e os novos métodos de transformação do som relacionados com o rápido desenvolvimento da informática musical. Apesar disso, com a abertura pós-moderna ao passado, os compositores encontraram neste meio uma excelente fonte de inspiração e expressividade. Hoje em dia é possível distinguir três tendências dominantes na criação de quarteto de cordas: 1) o mencionado pós-modernismo que se caracteriza pela alusividade ao passado musical, pela ironia que conduz à desconstrução das formas antigas; 2) a tendência cross-genre, de certa maneira ligada à primeira, em que “música de arte” mistura-se com música popular, música tradicional e músicas do mundo; 3) a tendência experimental que pode ser caracterizada pela descoberta de novos potenciais sonoros e espaciais que existem no conjunto de dois violinos, viola e violoncelo (e electrónica).
O novo CD da Miso Recors contém obras (quartetos de cordas com electrónica, alguns deles dedicados propositadamente ao Smith Quartet), cuja elaboração se distingue pela componente experimental. No booklet os compositores dão algumas indicações, apenas técnicas ou por vezes mais poéticas, relativamente às suas obras. Todas as peças aqui incluídas são diálogos não só entre os instrumentos do quarteto mas também entre a componente acústica e electrónica. Portanto, as estruturas musicais são reforçadas e expandidas através da presença do meio electrónico que abre muitas possibilidades a esta nova elaboração. Os quartetos gravados neste CD criam um jogo entre o acústico e o electrónico na procura, por um lado, de uma fronteira, mas por outro, de uma ligação entre estes dois mundos.
A primeira peça do CD, “Shadow Quartet” (2007) de Pedro Rebelo para quarteto de cordas e quatro violinos prostéticos, é uma encomenda da Miso Music Portugal. Segundo as palavras do compositor: “Esta obra faz parte de uma série que explora a noção da prótese em relação à interface entre os instrumentos acústicos e os sons electrónicos. Os materiais ressonantes do quarteto são derivados de quatro violinos antigos. (...) [Os violinos] funcionam como altifalantes para a ressonância da parte electrónica.” “Shadow Quartet” é uma peça que traz muitas associações interpretativas, todavia, é melhor ouvi-la ao vivo com os quatro violinos antigos pendurados em cima do palco, por ser possível sentir verdadeiramente o diálogo entre o acústico (o quarteto) e o electrónico (os violinos prostéticos). Os sons electroacústicos transmitidos pelos violinos prostéticos não só estendem o material musical apresentado pelo quarteto, mas também reagem contra ele, fazendo com que a relação entre estes dois meios varie desde a ambiguidade até à contradição. O “Shadow Quartet” tem uma dimensão quase teatral; é como uma luta entre o passado e o presente em que os papéis estão sempre confundidos, pois não é óbvio qual parte – seja acústica ou electrónica, seja do quarteto ou dos violinos antigos – pertence ao qual espaço temporal.
Miguel Azguime compôs “Paraître Parmi” para quarteto de cordas amplificado e electrónica entre Fevereiro e Agosto de 2006 em Berlim. “Esta peça [a segunda do CD e dedicada igualmente ao Smith Quartet] é uma série de processos composicionais aplicados ao mesmo material harmónico, do qual são derivadas as consequências timbricas, rítmicas e temporais”, revela o compositor no booklet. Parece que “Paraître Parmi” – o título significa “aparência entre” – desenvolve-se do material exposto mesmo no início, criando uma espécie de variações electroacústicas. Em comparação com o “Shadow Quartet”, aqui o diálogo entre o acústico e o electrónico reflecte-se de uma maneira diferente. Miguel Azguime aplicou o mesmo modelo teórico para a elaboração tanto da parte electrónica como acústica, deixando-as numa relação de proximidade simbiótica. “Paraître Parmi” tem uma sonoridade forte, quase “rock”, sendo ao mesmo tempo uma contemplação do som, das suas transformações e dos espectros.
“Horizon” de Carlos Caires, quarteto escrito em 2008 e encomendado pela Miso Music Portugal, é a terceira peça do CD. “Em localizações diferentes o horizonte verdadeiro está obscurecido por árvores, prédios, montanhas e assim por diante. A resultante intersecção da terra e do céu, alternativamente, é descrita como o horizonte visível.” Só pela descrição muito vaga dada pelo compositor pode-se constatar que se trata de uma peça onírica, com ar poético, quase nostálgico. E assim é. O corpo da composição do “Horizon” pertence à parte do quarteto acústico, cheio de diálogos, estruturas polifónicas e imitações entre os quatro instrumentos. Ao mesmo tempo a parte electrónica fica no fundo aparecendo só de vez em quando, reforçando o material apresentado pelos instrumentos, imitando-o, sublinhando o ambiente onírico ou criando uma névoa em que desaparecem os sons acústicos.
O CD fecha com a peça de Pedro Amaral, “Pagina Postica” escrita em 2008 para comemorar o 15º aniversário da erupção do Vulcão dos Capelinhos na Ilha do Faial. “Pagina Postica”, significando “a página seguinte”, é um dialogo do compositor com a sua própria criação. A música é baseada no seu primeiro quarteto de cordas, todavia, “o material da peça inicial é agora apresentado do fim até ao início. Portanto os primeiros compassos da «Pagina Postica» são, de facto, os que terminam o quarteto original”, sublinha Pedro Amaral. Nesta obra o compositor explora e transforma a sonoridade tradicional do quarteto de cordas através da componente electrónica o que na sua essência muda e “desconstrói a percepção histórica deste tipo de formação”. Dentro do corpo acústico a electrónica expande os limites do som das cordas com micro cataclismos e “explosões vulcânicas”.
As peças do CD, “Music for String Quartet & Electronics“, representam diferentes possibilidades de união entre o quarteto de cordas e a electrónica sendo esta um meio polifónico (mais uma voz) ou um meio de “brincar” com o som, um companheiro ou uma força que desconstrói. Mesmo que a interpretação seja levada a cabo por um grupo tão destacado como o Smith Quartet não é fácil de avaliá-la, visto que não existem muitos pontos de comparação. Contudo, sem dúvida ela constitui mais um passo para internacionalizar a criação musical contemporânea proveniente de Portugal, um país pequeno no fim (ou no início) da Europa.
Sem dúvida o CD da Miso Records, “Music for String Quartet & Electronics“, é um caso singular no mercado fonográfico português pois, de uma maneira condensada, como num laboratório, apresenta-nos os circuitos mais actuais da música portuguesa de câmara. É preciso “abrir os ouvidos” e “experimentá-lo” várias vezes para tentar descobrir as nuances da mistura do quarteto de cordas com a electrónica e as ideias que ficam no fundo das estruturas musicais – e isso nem sempre é uma tarefa “fácil e agradável”. Não obstante, esta edição é certamente uma prova que quarteto de cordas é uma forma viva, sempre aberta a absorver novas técnicas e estratégias composicionais acompanhando o espírito inquieto dos nossos tempos – o Zeitgeist hegeliano, que se reflecte, seja metaforicamente seja de uma maneira mais directa, na arte contemporânea.
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