2025.01.29
Casa da Música Jorge Peixinho, Montijo (2025.01.19)
Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, Rui Pinheiro (maestro)
música de Ângela da Ponte, Joly Braga Santos e Jorge Peixinho
Um novíssimo ponto de fuga
PEDRO BOLÉO

Foi um dia chuvoso no Montijo, mas cerca de vinte pessoas deslocaram-se à Casa da Música Jorge Peixinho para ouvir um concerto de entrada gratuita com música contemporânea e uma obra em estreia absoluta. Foi uma proposta do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (GMCL), realizada no Auditório desta Casa da Música Jorge Peixinho, nascida em 2023, e que tem uma programação elaborada pela Companhia Mascarenhas-Martins que inclui sobretudo teatro e música, mas também outros projectos multidisciplinares e várias propostas artísticas para a infância e juventude. Vale a pena estar atento à programação, onde se pode ver também uma exposição sobre Jorge Peixinho e passear no jardim (coisa que não pudemos fazer naquele dia anuviado).

Dana Radu e Susana Teixeira abriram o concerto em duo, com uma peça para piano e soprano de Jorge Peixinho, Estrela, com texto do poeta galego Enrique Álvarez Blásquez. Uma obra de juventude do compositor português, de 1962 (Peixinho nasceu em 1940, faria em Janeiro apenas 85 anos!). Depois desta pequena peça, José de Sá Machado falou ao público presente, revelando o que iam tocar, na ausência de uma folha de sala com o programa. Ajudou a instalar um tom informal do concerto, que quase parecia um ensaio geral aberto. Esse tom pôs à vontade os ouvintes, e houve até perguntas e comentários do público.

Parêntesis: talvez a música contemporânea precise de redescobrir essa informalidade e proximidade com o público, dessacralizando o momento do concerto e reduzindo a distância que a música erudita tantas vezes impõe por preguiça (ou rotina) de repetir códigos instalados (silêncio venerador, posições rígidas do corpo do público e dos intérpretes, entradas e saídas codificadas, aplausos nos sítios certos e, enfim, uma certa reverência de música «séria»).

Voltemos à música propriamente dita: seguiu-se a peça Aquella tarde (1988) de Joly Braga Santos, uma curiosa criação atonal escrita perto do fim da vida do compositor e dedicada ao GMCL. Uma peça para ensemble e soprano, com texto (um poema dramático) do grande poeta espanhol Antonio Machado. Uma peça que Joly pensou em ampliar ainda mais, tornando-a uma peça orquestral, coisa que já não pôde fazer. Sobre a sua escrita vocal, escreveu o próprio Joly Braga Santos: «O tratamento da voz, servindo o texto como o senti, passo a passo, vai do canto ao recitativo, do canto-falado à declamação pura.»

Uma estreia de geometrias em movimento

Ângela da Ponte · © Alípio Padilha
Ângela da Ponte · © Alípio Padilha

Veio depois a peça que mais aguardávamos do concerto, uma estreia de Punto di Fuga de Ângela da Ponte. Uma obra para violino, viola, violoncelo, vibrafone (e outras percussões, incluindo pratos), harpa, flauta e clarinete (e flauta baixo e clarinete baixo nalguns momentos).

Punto di Fuga (o título é assim mesmo, em italiano) agarra-nos desde o início, com os seus glissandos e efeitos simples, mas eficazes e sobretudo com as pausas e suspensões que abrem espaço para uma escuta reflexiva ao mesmo tempo que mantêm viva a nossa atenção. A peça começa por criar zonas em que três grupos distintos se organizam e dialogam (vibrafone com harpa, cordas, sopros). A clareza da escrita de Ângela da Ponte não colide com a vivacidade tímbrica, e a peça vai parar a momentos em que as cordas lançam notas mais longas sobre as quais dialogam clarinete e flauta, com a harpa pontuando com notas graves. Entram pratos percutidos antes de uma terceira parte da obra em que a agitação é crescente, antes de voltarem pequenos apontamentos, «pontos» sonoros intercalados com silêncios expressivos e os glissandi novamente, como na parte inicial. Mais perto do final, as cordas revoltam-se em ataques mais ruidosos, mas a peça nunca perde uma sensibilidade admirável.

Um «ponto de fuga» depende da colocação dos planos e da sua intersecção. Mas depende também do observador e da sua posição. Às vezes essa posição pode criar efeitos de «trompe l’oeil». Mesmo que não o faça, o lugar da escuta muda sempre o que ouvimos. O título desta criação musical de Ângela da Ponte suscita-nos, por analogia, uma escuta onde podemos decifrar planos sonoros e pontos (mas não é de «pontilhismo» que se trata aqui) que criam um discurso musical com as suas geometrias. No entanto, a nossa escuta não fica presa a nenhuma rigidez, porque a música abre geometrias em movimento e uma arquitectura sonora onde há espaço para o ouvinte entrar e escutar em diferentes direcções. Talvez fosse interessante pensar numa disposição diferente dos músicos em relação ao público (ou vice-versa) para esta peça, que reforçasse a sua característica multi-direccional.

A interpretação do GMCL pareceu-nos que podia ter sido mais rigorosa, sobretudo numa secção em que as cordas e o vibrafone precisam de ir juntos para que o efeito tímbrico não se dilua. De qualquer forma, a interpretação pareceu-nos cuidada e viva, dando a conhecer pela primeira vez esta novíssima obra. Uma bela peça de precisão e liberdade de Ângela da Ponte que merece futuros encontros com mais ouvintes.

Vieram depois de novo ao palco Susana Teixeira e Dana Radu para interpretar (com uma segurança e confiança maiores do que no duo inicial) Ulivi Aspri e Forti de Jorge Peixinho, na sua versão de 1982 (existe também uma versão para ensemble de 1984), uma peça para soprano e piano preparado com um poema de Renzo Cresti, poeta e musicólogo italiano. A obra foi criada por sugestão do compositor Aldo Brizzi. Ulivi Aspri e Forti possui uma escrita que já não tem nada a ver com a linguagem da obra de juventude do início do concerto. O compositor quis recriar «um universo imaginário, cujas relações culturais com a tradição histórica do Lied não são escamoteadas, mas sim subtilmente afloradas». O resultado é uma esplêndida peça lírica, com uma escrita pianística extremamente bem conseguida na relação com a voz e com o texto, que vai das grandes às «pequenas coisas» do amor.

O concerto terminou com Situações 66, de novo de Jorge Peixinho, para ensemble de flauta, clarinete, trompete, harpa e viola. Uma obra cheia de jogos de notas alteradas (com uso da surdina do trompete, por exemplo) e de alturas indefinidas, com duetos que emergem do ensemble (a viola de Ricardo Mateus e a flauta de João Pereira Coutinho fizeram um dos «diálogos» mais bem conseguidos) e mais tarde trios (que belo momento lírico o de harpa, clarinete e viola!). Com espaço aberto para a escuta, feito de pausas, saídas e entradas. Como se os instrumentos «rodassem»: por exemplo viola e flauta, depois flauta e clarinete, depois clarinete e viola. Mas também partes de «todos e cada um». Aspectos que, numa linguagem muito diferente, estavam presentes na peça de Ângela da Ponte, o que não deixa de ser curioso.

Aproximar obras num programa permite que o público estabeleça relações, faça comparações, detecte analogias e distâncias. E aqui, nos glissandos de Peixinho, no trabalho rítmico e numa proposta de escuta não impositiva, mas «aberta», vimos traços comuns com a peça de Ângela da Ponte que ainda estava viva na memória. E ainda noutro aspecto, que ambos praticam nas suas obras conscientemente: é que o timbre é relativo. É na sua relação com os outros, no seu ritmo, na sua forma de aparecer, que o som de um instrumento se descobre. E que há um trabalho a fazer na descoberta dessas ligações. Não será assim, afinal, também com os seres humanos, que só na relação com os outros se descobrem, revelam, animam, plenamente existem?

P.S. O GMCL lançou, no mesmo local, a 20 de Janeiro, dia em que Peixinho faria 85 anos, o disco Jorge Peixinho Vol. IV, dedicado à obra do compositor montijense e fundador do agrupamento de música contemporânea mais antigo do país. Um disco gravado no Auditório da Casa da Música Jorge Peixinho entre Abril e Julho de 2024 e editado pela la mà de guido.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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