2025.01.28
O’culto da Ajuda, Lisboa (2025.01.17)
concerto integrado no Aniversário da Arte 2025 (Art's Birthday 2025)
com transmissão em directo para a UER – União Europeia de Radiodifusão
Sonic Figures Project, Hugo Vasco Reis (composição e electrónica) e Trevor McTait (viola d’arco)
Horizontes sónicos para o Aniversário da Arte
PEDRO BOLÉO
João Almeida e Miguel Azguime · Art’s Birthday 2025 · O’culto da Ajuda
João Almeida e Miguel Azguime · Art’s Birthday 2025 · O’culto da Ajuda

O Art’s Birthday é uma celebração em homenagem a Robert Filliou (1926-1987), artista francês que esteve próximo do movimento artístico Fluxus nos anos 60. Um movimento que questionava o estatuto da obra de arte e dos artistas, na senda do que tinha feito o dadaísmo, mas noutro contexto. Pacifista convicto, Filliou escreveu poesia e teatro, fez performances de rua, realizou filmes e criou muitas peças a que chamava «poesia-acção», para além de inúmeros happenings em colaborações com artistas visuais, poetas e músicos. Nos anos sessenta descreve-se a si mesmo como «artista-poeta», centrando os seus trabalhos nos usos da linguagem. A sua declaração provocadora e irónica (em 1963) de que a arte teria nascido exactamente há um milhão de anos «quando alguém deixou cair uma esponja seca num balde de água» pode ser vista apenas como uma brincadeira, mas está intimamente ligada à sua ideia de arte como acção, como gesto performativo criador capaz de questionar o mundo e provocar uma reacção – que acontece a uma esponja seca que cai num balde de água?

Tudo isto vem a propósito do concerto realizado no O’culto da Ajuda e parcialmente transmitido em directo para a Antena 2, integrado no projecto da União Europeia de Radiodifusão de celebração do Aniversário da Arte 2025, propondo uma espécie de colagem de transmissões de projectos de «arte-rádio» a partir de várias cidades europeias. João Almeida, director e radialista da Antena 2, apresentou o concerto com o seu habitual entusiasmo e explicou as «regras do jogo» (a transmissão teria 20 minutos, o público podia bater palmas e depois o concerto prosseguiria o seu caminho). E assim foi.

Trevor McTait e Hugo Vasco Reis · Art’s Birthday 2025 · O’culto da Ajuda
Trevor McTait e Hugo Vasco Reis · Art’s Birthday 2025 · O’culto da Ajuda

Ciclos sonoros para mergulhar

Mas vejamos mais de perto o concerto Sonic Figures Project de Hugo Vasco Reis e Trevor McTait, uma proposta sonora singular, em que McTait tocava a viola d’arco usando o arco e a caixa do instrumento de múltiplas formas enquanto o compositor manipulava alguns dispositivos electrónicos (com destaque para os pedais) e uma taça com gelo em que, a certa altura, deita água, provocando o derretimento do gelo (ajudando também com a mão). Ali vimos e ouvimos um ponto de contacto com a frase da esponja e da água de Filliou, e um momento de «música-acção» bastante curioso. Microfones muito perto do gelo permitiam a amplificação do som do derretimento do gelo, criando um «horizonte sónico», como gosta de dizer o compositor, «onde uma gota pode ser mais audível do que uma cascata», como podíamos ler nas notas de programa do concerto.

O concerto era uma proposta de escuta concentrada de detalhes, em grande parte em pianíssimo, apesar de alguns impetuosos ataques de Trevor McTait à sua viola d’arco que nos mantinham alerta. Escuta do que se passa no som, em ciclos lançados pelo instrumento acústico que os pedais transformam em loops relativamente longos e que se sobrepõem depois à viola que volta a atacar o som. O arco e por vezes as mãos (directamente) tocam nas costas da viola, nas cravelhas, no cavalete, no estandarte, etc. Todo o instrumento é objecto de som e de «sonorização». Para além disso, gravações de campo (pouco transformadas) são também usadas para criar um ambiente sonoro particular, ao mesmo tempo sensível e reflexivo, sensual e meditativo.

Tratou-se, portanto, de um estimulante desafio à escuta proposto por Hugo Vasco Reis e Trevor McTait, este garantindo uma qualidade sonora acústica cativante (com micros na viola que lhe amplificam também o mais pequeno detalhe e permitem o uso dos seus gestos nos loops do compositor), e aquele mexendo com os sons ali produzidos, cruzando com o pré-gravado e pondo-nos a voar (ou será mergulhar?) puxados pelos ouvidos.

Faltou apenas a este concerto muito «sério» um pouco mais de irreverência, talvez, para fazer jus à irónica declaração de Filliou e à sua atitude de provocação deliberada, poética e artística. Mas estava lá, é certo, a tina de água-gelo, e uma espécie de «micro-poesia-gesto» lembrando-nos de que uma gota de água faz a diferença.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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