2024.12.06
Palácio do Sobralinho (Inestética), Vila Franca de Xira (2024.11.22)
Carlos Marecos (música), Alexandre Lyra Leite (libreto e encenação)
Joana Manuel (soprano), Rui Baeta (barítono), Carolina Inácio (bailarina)
Paula Galiana (violino), Íris Almeida (viola d’arco)
João Carlos Barata (viola d’arco), Carolina Veneno (violoncelo)
Clepsydra de Carlos Marecos: uma ópera distópica
PEDRO BOLÉO
Joana Manuel e Rui Baeta · © Filipa Alfama
Joana Manuel e Rui Baeta · © Filipa Alfama

Uma ópera de câmara com um desafio difícil, o de pôr em música (e em cena) um poema não dramático e desesperado de Camilo Pessanha. Com algumas pistas interessantes que Carlos Marecos podia ter levado mais longe musicalmente. E uma encenação equívoca.

Começa até muito bem esta ópera de câmara, com um ruidoso ataque nas cordas (em pressão) seguido de um primeira zona de criação harmónica em torno de poucas notas, numa espécie de prólogo acompanhado (no vídeo projectado ao fundo) por fumo em tons de vermelho. Quase como um genérico de filme. Ouvimos depois uma voz em off («A dor, forte e imprevista/ ferindo-me imprevista») dizendo a primeira parte do poema que serviu de base a esta Clepsydra, ópera de câmara do compositor Carlos Marecos.

O poema é «Branco e vermelho», de Camilo Pessanha, integrado na colectânea Clepsidra (o compositor preferiu manter a grafia antiga de Clepsydra com «y» no título da sua ópera). As vozes (agora presentes) de Joana Manuel, soprano, e Rui Baeta, barítono, surgem logo depois, quase se sobrepondo na segunda estrofe do poema, o que voltará a acontecer mais à frente, partilhando ambos o texto de Pessanha. No vídeo, uma paisagem branca ficará sempre lá atrás, com passagens pela sua versão escurecida, sugerindo a passagem dos dias, que voltam uma e outra vez, (quase) sempre iguais. Os músicos e os cantores também estão vestidos de branco. Todo o cenário é branco.

Instala-se uma paisagem estática, que a música parece reforçar, em notas quase sempre longas, sem desenvolvimento temático de início, como se ajudasse simplesmente a desenhar a lisa e gelada paisagem. Um clima distópico de uma humanidade sem saída. Um mundo gelado. Dois únicos seres humanos (os últimos?) para um poema em que passa «Ao longe, a caravana/ Sem fim, a caravana/ Na linha do horizonte/ Da enorme dor humana». Os dados estão lançados.

O Palácio do Sobralinho acolheu esta Clepsydra (uma produção da (Inestética)), que teve uma carreira relativamente longa (de 31 de Outubro a 24 de Novembro), o que é salutar e pouco habitual na ópera em Portugal. Uma ópera de câmara com uma soprano, um barítono e um jovem quarteto de cordas. Uma óptima possibilidade (na sua escala reduzida) de explorar novos modos de fazer música com sons, palavras, vozes e cena.

Um poema «arriscado»

Um problema se terá colocado certamente aos criadores desta ópera de câmara: como dar forma a uma ópera de ideias, a partir de um material aparentemente não dramático? Carlos Marecos arriscou tomar como ponto de partida esse poema em que um drama interior (de uma dor «Que me endoidou a vista», como escreve o poeta) faz eco de uma realidade exterior, vista de longe: «escravos condenados, no poente recortados», e a referência a uma humanidade gemente, esvaindo-se em dor «quando o açoite vibra». Uma reflexão terrível sobre uma humanidade oprimida, moribunda e em queda: «Sob o açoite caem,/ A cada golpe caem,/ Erguem-se logo. Caem,/ Soergue-os o terror». Mas apesar deste terror sem saída, o texto não tem, à partida, qualidades teatrais (talvez o cinema o conseguisse mais facilmente agarrar?)

Este facto seria contornável se a encenação descobrisse uma forma de pôr em cena aquelas vozes que vão desvelando o poema de Pessanha. Ora a encenação de Alexandre Lyra Leite falha, quanto a nós, neste aspecto fundamental: pôr em cena a voz, encontrar o lugar cénico do canto. Ainda para mais com um poema (e não um texto teatral), em que dificilmente servem os convencionalismos teatrais. A encenação tenta construir imagens de medo colocando, por exemplo, uma caçadeira em palco, usada em excesso (nas mãos quase sempre de Joana Manuel) e que vai perdendo força dramática de cada vez que reaparece. Aposta-se tudo no dispositivo “branco” (cenário, figurinos, vídeo) e tenta-se resolver a presença em palco dos músicos colocando o quarteto dentro de uma espécie de iglu.

Música a meio caminho e um equívoco «oriental»

Mas, e os cantores? A sua inacção neste «mundo congelado» poderia ser um traço potente, mas sentimos que ele é desperdiçado numa gestualidade pouco contida, e pouco trabalhada. Ele fica quase sempre no mesmo lugar, ao lado do seu rádio onde nenhuma comunicação parece chegar. Ela traz mochila, saco, uma cabeça de um esqueleto de animal em sucessivas reentradas. Joana Manuel, soprano que tem boas qualidades de actriz, revelou algumas limitações vocais em certas passagens, e viu-se presa numa encenação que tenta criar drama sugerindo-lhe uma personagem capaz de compaixão (à beira do overacting). A música também tenta injectar drama artificialmente a partir da quinta estrofe do poema (culminando num crescendo na sétima estrofe das dez que o poema tem). Rui Baeta, barítono, criou, em contraste, uma personagem menos exaltada e aparentemente mais “conformada” (para não dizer cínica) com a situação desesperada, repetindo gestos quotidianos e fazendo uso de uma espécie de transistor que vai fazendo pequenos ruídos electrónicos a seu lado, elemento interessante sonoramente. Alguns daqueles gestos banais têm som (limpeza de uma caneca gelada ou de um objecto metálico), aspecto que foi, aqui e ali, utilizado sonora e musicalmente. Uma ideia interessante que podia ter sido mais bem aproveitada.

O problema é que a música, a certa altura, apesar do bom início (até uma zona mais tensa e «à corda» na terceira estrofe, com cromatismos até ao agudo), começa a acrescentar pouco ao poema de Pessanha (e a si mesma). Fica a pairar num clima modal com elementos cromáticos, com passagens quase a lembrar a ópera barroca, no sentido em que procura expor um «afecto» determinado e propor-nos que fiquemos suspensos no desespero do poeta («Pairo na luz, suspenso», diz um verso de Pessanha, aliás).

Alguns motivos viajam das vozes para o quarteto de cordas, onde se passa o mais cativante da música de Marecos e da sua construção tímbrica e harmónica (apesar de tudo, com elementos interessantes até ao fim), num quarteto com a particularidade de ser composto por duas violas, um violino e um violoncelo. Mas faltou um pouco mais de inventividade para levar a música a outro lugar, mesmo que fosse o do congelamento anunciado do mundo e o do fim da humanidade. Que música pode sugerir tal coisa? (Sibelius tentou ilustrar a quebra do gelo num rio finlandês...)

Carolina Inácio · © Filipa Alfama
Carolina Inácio · © Filipa Alfama

A partir do clima estático que foi bem-criado no início, a surpresa (musical ou cénica) poderia ser fortíssima. Mas a encenação de Lyra Leite traz uma surpresa que não é boa: uma figura da morte surge através duma bailarina (Carolina Inácio) que aparece como uma samurai japonesa, com o seu sabre. Não está em causa a qualidade da bailarina, rigorosa na sua aparição. Mas a ideia é, quanto a nós, equívoca (imagem da morte como uma guerreira), falhada (a sua relação com as personagens não tem força cénica) e kitsch (criação de uma imagem que parece importada de uma série televisiva). É verdade que Pessanha morreu em Macau, mas Macau não tem nada a ver com o Japão, nem serve a vaguíssima e superficial ideia de “Oriente” que por ali passa. Que a própria figura da morte morra (perdoem estar a ser spoiler ou desmancha-dores) e que os cantores lhe vão arrancar as entranhas, já é um detalhe gore que não nos chocou e que até rima bem com a violência e o desejo de morte (como libertação) do poema de Camilo Pessanha.

O espectro do fim do mundo

Um espectro paira sobre a arte actual: o espectro do fim do mundo. A ópera não tem escapado a este fantasma, que tem algumas razões bem materiais: clima de guerra, destruição ambiental, tecno-autoritarismo, concentração dos poderes e da riqueza em poucas mãos. A isto somam-se sentimentos de impotência política, desesperança, desconfiança, medo. Muitos se interrogam sobre as condições de possibilidade da própria continuidade da vida humana no planeta num futuro relativamente próximo (fala-se de poucas décadas). Sinal dos tempos aflitivos que vivemos, sem dúvida.

A ópera de câmara Clepsydra pode ser incluída, num sentido geral, nesta tendência da arte actual de reflectir sobre os becos sem saída da humanidade. Mas a arte – e o teatro musical também – tem a responsabilidade de encontrar, com os seus meios, formas novas de configurar mundos. Mesmo que uma ópera não possa travar a trágica queda da humanidade.

Duvido da potência teatral deste poema negro (mas com uma luz branca que encandeia) de Camilo Pessanha, mas acredito que se poderia experimentar mais profundamente a partir dele. Não falta coerência a Clepsydra, ópera branca, estática, fria, lamentosa, distópica. Falta-lhe é, talvez, a capacidade de criação de um mundo maior.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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