2024.11.05
CROMA – Ciclo de Música Contemporânea de Oeiras
Escola de Música de Nossa Senhora do Cabo, Linda-a-velha (2024.10.23)
Auditório Municipal Ruy de Carvalho, Carnaxide (2024.10.23)
Duo Nada Contra | Grupo de Música Contemporânea de Lisboa
Oddities e outras estranhezas
(notas de um dia de CROMA)
PEDRO BOLÉO

O CROMA – Ciclo de Música Contemporânea de Oeiras realizou a sua terceira edição entre os dias 22 e 26 de Outubro. Trata-se de uma iniciativa de promoção e divulgação da música contemporânea apoiada, entre outros, pela Câmara Municipal de Oeiras. Este ciclo afirma como missão “alargar os horizontes e fronteiras da relação entre os compositores de hoje e o público de hoje”. E isso passa não só pela realização de vários concertos (de entrada livre), mas também de workshops (este ano com os compositores António de Sousa Dias e Carlos Caires), seminários e mesas redondas com intérpretes.

O ciclo, iniciativa da Associação Portuguesa de Compositores, incluiu no primeiro dia concertos de classes de conjunto do ensino especializado da música (de Ourém e Santarém) e, nos dias seguintes, do Duo Nada Contra, do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, do saxofonista Henrique Portovedo, do Lisbon Ensemble 20/21, do Ensemble DME (em trio), do projecto Electroville Jukebox e ainda do Drumming – Grupo de Percussão. Uma iniciativa louvável num meio musical português que, apesar das limitações de toda a ordem, parece (de novo) mais virado para a criação e interpretação da música contemporânea. Para alargar os lugares de contacto entre criadores, músicos e ouvintes, fazendo jus a uma atitude que a APC parece querer assumir: “oferecer resistência a qualquer forma de inércia cultural através da expansão do universo de acesso à experimentação sonora a um leque alargado de compositores, intérpretes e públicos”.

Fomos ouvir dois concertos do dia 23 de que vale bem a pena dar conta.

Duo Nada Contra
Duo Nada Contra · Francisco Cipriano e Mrika Sefa

As “expansões da performance” do Duo Nada Contra

O primeiro foi o surpreendente concerto do recentíssimo Duo Nada Contra, da pianista Mrika Sefa e do percussionista Francisco Cipriano. Um duo que procura “expandir a performance contemporânea” e estimular a criação de novas obras. Uma formação “portátil”, acessível e móvel, que não quer apenas (e já seria muito) fazer concertos em muitos lugares diferentes e trabalhar em proximidade com os compositores, mas pretende também abrir horizontes através de acções complementares (workshops, masterclasses, diálogos com o público, etc.)

Como ficou claro neste concerto, o Duo Nada Contra traz consigo uma saudável atitude irreverente e comunicativa, que se faz por duas vias essenciais: por um lado, através de um trabalho de investigação sonora que passa pela rigorosa apresentação das peças musicais e das suas ideias subjacentes; por outro, uma procura de renovação da performance, em busca de formas de subverter o concerto tradicional ou, pelo menos, de encontrar uma correspondência performativa para o tipo de música que decidem apresentar.

No auditório da Escola de Nossa Senhora do Cabo, em Linda-a-velha, o Duo Nada Contra tocou para umas 50 pessoas, um público maioritariamente composto por estudantes (felizmente há professores empenhados que os “puxam” para concertos destes). Mrika Sefa apresentou brevemente o concerto esperando que a música que iria ser tocada provocasse “alguma comichão na cabeça”, expressão que fazia todo o sentido num concerto assim, como percebemos depois. Sefa e Cipriano decidiram fazer o concerto de seguida, sem interrupções (mas houve algumas palmas entre as peças, porque o ambiente descontraído o permitia), num crescendo de intensidade. Começaram com a peça delicada de Valerio Sannicandro (Esercizi di morte, de 2023), para piano e percussão, uma peça “introspectiva” de “palavras não ditas”, e “quase opressiva”, como se lia nas notas de programa, que quer ser uma reflexão/ resposta sobre uma certa angústia sentida perante experiências sociais, políticas e culturais dos últimos anos. Uma expressão musical quase estática, sem desenvolvimentos, que parece responder a sensações de isolamento, ansiedade e vazio, mas que não excluem um certo protesto (bem audível!). Uma peça com repetidos agudíssimos no piano e importantes simultaneidades de percussão e piano (cumpridas com óptimo entendimento entre os intérpretes), fazendo “saltar” os timbres de Sannicandro.

Seguiu-se, sem pausas, um vir à frente para tocar a peça Sowing snow in cone pots de Marta Domingues, escrita para (e com) o duo Nada Contra em 2024 (quer dizer, hoje!), com a particularidade de usar cone speakers onde vibram pratos, bolinhas, escovas e outros objectos. Uma peça bem desafiante, com sintetizador e transformações suaves, procurando “fazer crescer algo daquilo que o corpo semeia”, como escreve a compositora. Peça poética posta em marcha por gestos certeiros do duo, onde a neve parece saltar realmente dos cone speakers (taças que vibram activadas por um teclado, produzindo improváveis sons, rugosos ou delicados).

E veio a peça de João Quinteiro, primeira experiência no campo da electrónica de um compositor mais habituado a outro tipo de ferramentas instrumentais. Trata-se de Canção III, que faz parte de um conjunto de quatro peças escritas desde 2019 a que o compositor chamou “canções”. Peça bem cativante, onde ruídos se vêm sobrepor a ruídos, num jogo quase paradoxal que parece sabotar a própria dinâmica que cria. E, contudo, é desse paradoxo que sai o mais interessante da peça, no sentido da percepção: é que o ouvinte tem de se esforçar por descortinar os sons, e “peneirar” os ruídos (e os ouvidos) para encontrar o fio condutor. Um ouvinte atento tem de trabalhar para encontrar a “sua” canção.

Nova transição, sempre sem pausas, a não ser a deslocação do duo para novos sets pré-preparados num palco cheio de instrumentos. Nova transição para tocarem a mais punk de todas as peças, White Eyes Erased, de Sarah Nemtsov, que toma por lema uma frase de John Cage: “Get yourself out of whatever cage you fid yourself in”. Uma provocante colagem de palavras (na electrónica) e sons de diversas proveniências, com uma bateria artilhada com um megafone, amplificações sujas, sirenes, vozes, gestos de libertação desesperados, ruídos sintetizados de toda a espécie e até momentos em que se citam gestos musicais rápidos, súbitos, violentamente interrompidos, que costumamos ouvir nos concertos de punk hard core. Como se a compositora tentasse pôr cá fora certas oddities interiores – estranhezas peculiares e outras coisas que se sentem neste estranho mundo. Apesar dos sarcasmos e dos (fragmentários) gestos libertadores, ali pairam a angústia e o medo. Sinal dos tempos?

O Duo Nada Contra levava bonés azuis na cabeça. Num lia-se “NADA CONTRA”, no outro “TUDO A FAVOR”. Mais um detalhe de atitude onde pairam o humor e a irreverência. E ainda bem.

Música de quatro gerações pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa

No final da tarde de dia 23 de Outubro, no Auditório Ruy de Carvalho, teve lugar um concerto bem diferente. O Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (GMCL) sob a direcção de Joan Pagés Valls interpretou quatro obras de compositores portugueses de diferentes gerações. Calhou que naquele dia João Quinteiro, o mais jovem dos quatro (nascido nos anos 80), tivesse direito à interpretação de outra obra sua, Dynamis, a peça mais recente de um ciclo em que as composições têm títulos repescados de Freud: Energeia, Thanatos, Eros e Dynamis. O ponto de partida, segundo o compositor, é “a vida pulsional e os processos inconscientes e pré-linguísticos que decorrem na psique humana”. Dynamis é uma obra encomendada pelo GMCL, em que o destaque vai todo para as múltiplas combinações instrumentais possíveis (a peça afirma uma atitude no seu subtítulo “for eight unyielding players”, sendo que “unyielding” pode ser traduzido por “implacáveis”). Uma peça que nos pareceu carecer, na interpretação, de mais clareza e “implacabilidade”, para dar conta das relações dinâmicas entre os materiais sonoros. Mas foi a primeira vez que a ouvimos, e há que dar o benefício da dúvida.

Seguiu-se uma peça “histórica” de Jorge Peixinho, Llanto por Mariana, de 1986, peça que o GMCL conhece bem e fez com à-vontade, com Susana Teixeira, mezzo soprano, dando força às palavras em grande medida metafóricas e simbólicas provindas da peça de teatro de Lorca (Mariana Pineda, peça sobre a figura anti-absolutista do século XIX espanhol), nesta obra em que Peixinho integra, na sua linguagem, o carácter simultaneamente vanguardista e “popular” de Lorca.

Mais estranha às linguagens habitualmente praticadas pelo GMCL é a peça de Rafael Toral Score for two points in space, de 1992, adaptada para ensemble a partir da versão original para pequena orquestra. Meios electrónicos foram usados para realizar as vozes que o grupo não poderia fazer. Nesse sentido, é uma electrónica “supletiva”, colmatando as faltas harmónicas e tímbricas que resultam da redução para ensemble. Uma obra que contém uma dupla homenagem (a John Cage e a Alvin Lucier), e que se mantém num registo meditativo, sendo que a microtonalidade está ao serviço de uma desconstrução (mais do que de uma construção) do som, com uma margem de aleatoriedade que está na sua concepção desde o início, e propondo uma escuta contemplativa (não vale adormecer!...). Uma peça “aberta”, usando métodos de composição caros a John Cage e, originalmente, uma notação gráfica bastante peculiar.

O concerto concluiu-se com O Abismo e o Silêncio, do compositor João Pedro Oliveira, uma série de quatro canções sobre poemas de vários heterónimos de Fernando Pessoa. Trata-se de uma peça de 2001, encomenda do GMCL. É uma peça de interessante invenção harmónica e com uma sugestiva electrónica. O seu problema maior é, sem dúvida, uma escrita vocal decepcionante, linear (por vezes ilustrativa, como, por exemplo, uma ondulação vocal para a palavra “ondulante”), tentando preservar a integridade dos poemas, mas nada lhes acrescentando. Uma questão de fundo se coloca: será interessante de todo “musicar” assim os poemas de Pessoa? Temos sérias dúvidas. Os ecos interiores do poeta na “pobre ceifeira” de Pessoa, a angústia de Bernardo Soares, a “existência real” da natureza em Caeiro, a anti-metafísica individualista de Campos (“que mal fiz eu aos deuses todos?”) não ganham nova potência poética em O Abismo e o Silêncio. Apesar de tudo, a riqueza da invenção instrumental “salva” em parte a opção de uma escrita vocal que, preservando os poemas, contraditoriamente lhes retira força.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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