Philippe Trovão
Philippe Trovão é um saxofonista que se tem dedicado abundantemente à música contemporânea. O seu campo principal é a música mista com electrónica em tempo real, mas também faz música improvisada, “exploração sonora” e projectos multidisciplinares com teatro e dança, como saxofonista e artista sonoro. O seu projecto RECAST, sobre a recuperação de obras para saxofone e dispositivos electroacústicos analógicos, deu origem ao seu álbum de estreia como solista. Actualmente, Philippe Trovão é professor de Saxofone e Música Contemporânea no Conservatório de Música de Santarém e professor de Saxofone no Conservatório Regional Silva Marques, em Alhandra. Estuda no Programa Doutoral em Música da Universidade de Aveiro (INET-MD).
Para além da sua destreza na interpretação de obras da actualidade, o que o tem distinguido sobretudo é o seu trabalho de investigação à volta do saxofone e das suas combinações com a “música de computador”. Os seus trabalhos no terreno da electroacústica levaram-no naturalmente ao contacto com a música de Jean-Claude Risset, um compositor que, também ele, foi um investigador incansável no campo da electrónica, da computer music, e na pesquisa de novas possibilidades expressivas com o uso de novas tecnologias de tratamento do som.
Neste concerto no O’culto da Ajuda, em Lisboa, Phillipe Trovão apresentou o seu novo CD Sur la Couleur (edição de autor com o apoio da Fundação GDA, 2024), dedicado inteiramente a obras de Jean-Claude Risset para saxofone e electrónica. Obras em grande medida experimentais, porque pesquisam, abrem e desenvolvem potencialidades expressivas musicais no trabalho da relação do saxofone com a electrónica. Mas não necessariamente radicais, no sentido em que nem sempre levam às últimas consequências as opções estéticas a que se propõem. Muitas vezes são até mais “pedagógicas” (algumas delas foram mesmo compostas a pensar na criação de repertório para sax e electrónica tocável nas escolas secundárias e superiores), do que peças de ruptura estética evidente.
O fio condutor de Risset foi sempre a relação entre a acústica e a música (como técnico, teórico e compositor), apercebendo-se a certa altura de que o computador seria uma ferramenta essencial nesse campo de investigação. Ele esteve na formação do IRCAM (Institut de recherche et coordination acoustique/ musique), nos anos 70 do século XX, que foi criado precisamente como um centro multidisciplinar capaz de combinar investigação científica, trabalho com novas tecnologias e criação musical.
O concerto de Philippe Trovão foi, também ele, de certa forma “pedagógico”, dando-nos a ouvir quatro peças de Risset (no disco Sur la Couleur, o saxofonista gravou todas as sete peças de Risset para sax e electrónica!). Um mesmo traço as une: a exploração das possibilidades musicais a partir da investigação do timbre do instrumento. Não é que o timbre não tenha sido questão central da música muito antes, mas é verdade que as revoluções da música concreta e da electrónica e, depois, as possibilidades abertas pelo uso do digital, mudaram a concepção e a forma de trabalhar o som e as suas qualidades “interiores”, que podiam agora não só ser alvo de combinações instrumentais, mas podiam ser fixadas, estudadas, analisadas, visualizadas, moldadas, sintetizadas, fragmentadas e recompostas artisticamente em variadíssimas formas, na junção do acústico com o electrónico e o digital.
O concerto foi, neste sentido, bastante instrutivo, revelando, especificamente para o saxofone, uma série de formas de articulação com a electrónica, fazendo uso de “técnicas estendidas” no instrumento, técnicas que em breve já não fará sentido chamar assim, quando essas forem parte natural e habitual de toda a paleta de sons que o saxofone pode produzir.
A primeira peça, Voilements (que se poderia traduzir por “véus”), é um exemplo paradigmático das formas de articulação entre sax e electrónica que Risset procurava nos anos 80, numa muito boa interpretação de Trovão, a que só faltou um pouco mais de verve do “ao vivo”. Paradoxalmente, no disco conseguimos escutar a obra com mais potência performativa. Claro que ao vivo é mais difícil, e outros factores se intrometem: público, sala, estados de alma do intérprete. Surpreendente foi a escuta de Distyle e Diptère, obras “pedagógicas” (das tais feitas para estudantes, a pedido de um colega seu do Conservatório de Marselha) para saxofone alto e electrónica, onde as cores ganham uma vivacidade inesperada, graças a uma electrónica que não usa apenas sons de saxofone modificados, mas sinos e outros sons “percussivos” modificados. Mas o mais curioso é a tentativa de Risset de fazer uma escrita verdadeiramente “idiomática” do instrumento, mas alargada ao diálogo com os sons pré-gravados. Ou seja, no fundo, a invenção de uma nova idiomática, sem prescindir do que já era “típico” do saxofone. Como o faz também Saxtractor (peça de 1995 que parte de outra obra do autor e que é dedicada ao saxofonista Daniel Kienzy), com imitações de gestos do performer para a electrónica e vice-versa, ou detendo-se em bordões onde emergem gestos rápidos do saxofone tenor.
O concerto terminou com uma obra muito recente de António de Sousa Dias para saxofone tenor e electrónica, fruto dum trabalho de colaboração próxima do compositor com o intérprete, que têm colaborado em diferentes projectos, partilhando um interesse comum pelas novas tecnologias e pela pesquisa das suas funcionalidades e potencialidades na arte musical. E, já agora, pelo saxofone tenor, cujas possibilidades sonoras Sousa Dias especialmente aprecia.
A peça Va(le)riation 3, apesar dos seus interessantes pontos de partida (um desvio na ideia tradicional de “variação”, aqui entendida não como derivação de um “tema”, mas sobretudo como séries de gestos instrumentais partilhados pelo instrumento e pela electrónica), deixou-nos, no entanto, uma sensação de incompletude, terminando com umas reticências que parecem mais uma afirmação de “trabalho em curso” do que uma suspensão poética. Uma obra onde se desencadeia uma certa melancolia e que nunca se afirma como “tecnicista”, apesar das pesquisas sonoras que enceta. Apetecia que a obra continuasse levando mais longe o seu desígnio, mesmo que o sax tivesse de abandonar a electrónica e acabarem afastados, com um final “infeliz”, de saxofone solitário. Foi essa a vontade de completar a peça que nos deixou. Talvez essa sensação de inacabada seja bom sinal, se significar também que aquela colaboração em curso pode vir a dar mais frutos electroacústicos.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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