2024.08.01
O Canto das Sementes II (Projecto DME) · Lisboa Incomum (2024.07.25)
Barcelona Modern: Xavi Castillo (clarinete), Nacho Gascón (saxofone)
Clara Saleiro (flauta) e Carolina Santiago Martínez (piano)
Xavier Pagès-Corella (diretor musical), Demian Luna (director artístico)
Beatriz Costa (violinista convidada do Ensemble DME)
Obras de Tiago Jesus, David Teixeira da Silva, Daniel D’Adamo,
Mafalda Silva, João Coimbra Hèctor Parra e Jaime Reis
Sementes que germinam para além das escolas
PEDRO BOLÉO
Barcelona Modern
Barcelona Modern

O Projecto DME apresentou nos dias 24 e 25 de Julho, em Lisboa (e no dia 27, em Seia) O Canto das Sementes II, segunda edição de um projecto com uma componente pedagógica destinado a estimular a composição contemporânea. O Canto das Sementes reúne quatro jovens compositores em formação ou recém-formados pelas quatro instituições de ensino superior com curso de composição em Portugal: a ESMAE (Porto), a ESML (Lisboa), a Universidade de Aveiro e a Universidade de Évora. Dali vieram Mafalda Silva (Évora), Tiago Jesus (ESML), João Coimbra (Aveiro) e David Teixeira da Silva (ESMAE). O projecto não se limita a orientar os jovens compositores e a estimular a sua criação (este ano quem orientou o projecto foi Jaime Reis, o compositor “da casa”), mas propõe também o contacto dos compositores com um agrupamento de música contemporânea, conduzindo à apresentação pública das peças que foram criadas. Este ano o grupo foi o Barcelona Modern, ensemble que também desenvolve projectos semelhantes na Catalunha (um festival ligado a um curso de composição). As obras foram ensaiadas, estreadas e gravadas ali, no espaço do Lisboa Incomum, no bairro do Rego.

Fomos ouvir o concerto de dia 25 de Julho, em que as novas obras foram apresentadas. A pequena (mas acolhedora) sala do Lisboa Incomum recebeu, pois, quatro músicos do Barcelona Modern, mais o seu director musical (Xavier Pagès-Corella) e o director artístico do ensemble (Demian Luna). Este último disse algumas palavras iniciais, ao lado de Jaime Reis, falando do ensemble e deste projecto específico.

Tiago Jesus
Tiago Jesus

E entrámos na música. O concerto começou com uma peça de Tiago Jesus, “Restless Drive” (que se poderia traduzir por «impulso irrequieto» ou «ímpeto inquieto»). Peça para flauta, clarinete baixo, sax alto e piano, uma obra realmente impetuosa, óptima para começar este concerto de novíssimas criações. A música revela um trabalho intenso sobre a harmonia (a estrutura deriva daí, sobretudo), com o piano com uma função principalmente percussiva, e só descansa com os multifónicos do saxofone, para se lançar de novo em loops ou em diálogos entre o clarinete e a flauta. Peça de oito minutos que sabe rapidamente criar o seu tempo próprio, na descoberta bem viva das suas impetuosidades.

David Teixeira da Silva
David Teixeira da Silva

Bem diferente foi a peça de David Teixeira da Silva, “neve sobre olhos de ferro”, para os mesmos quatro instrumentos, mas com uma linguagem toda outra. Em primeiro lugar, devido à relação com uma escultura de Rui Chafes (“Occhi che non dormono”, ou seja, «olhos que não dormem») que por sua vez homenageia outro escultor, Alberto Giacometti. A obra musical aponta para uma «correspondência» estética entre artes, mas é uma correspondência em que a paisagem se intromete: a queda da neve sobre a estátua, que se encontra na Fondazione Giacometti em Stampa, na Suíça. Uma peça quase oposta ao frenesim tímbrico e harmónico da anterior: aqui a música é plácida e quase sempre em pianíssimo (alguns crescendos dão densidade à paisagem), com uma discreta presença da electrónica e efeitos com e-bows no piano (que soam como sons electrónicos, na verdade). E é de facto uma paisagem sonora (fortemente construída, mas com a organicidade extensa de uma paisagem) que paira sobre uma estrutura sólida, mas em busca da máxima simplicidade. Neste aspecto a correspondência com a escultura de Chafes é «férrea». Foram oito minutos que passaram, também? Será possível? A música tem essa capacidade (que não é mágica, mas tecnicamente construída) de inventar outro tempo, que não vive apenas dos segundos que dura.

Seguiu-se uma peça de Daniel D’Adamo (fora do baralho das novas peças), onde brilhou a pianista Carolina Santiago Martínez a tocar a estimulante criação “For P” (de 1999) deste compositor argentino que vive em França. For P combina uma pesquisa tímbrica usando notas suspensas (através de teclas do piano que ficam a ser pressionadas) com um trabalho rítmico instigante e desconcertante.

Mafalda Silva
Mafalda Silva

E logo depois voltou o ensemble (Xavi Castillo no clarinete baixo, Nacho Gascón no saxofone alto, Clara Saleiro na flauta e Carolina Santiago Martínez no piano) para interpretar a peça de Mafalda Silva, “acoasm”, (ou “acouasm”) que em inglês tem um sentido de «alucinação auditiva». No início a peça parece desligada, com elementos separados onde não se topa logo a congruência. Mas ela evolui, através de diálogos entre instrumentos e timbres para uma peça curiosa, onde nos pareceu escutar um «comentário» a alguma coisa exterior (um conto? Um pequeno filme?). Pusemo-nos então a descobrir-lhe ironia e (quase) falas de personagens nos quatro instrumentos. Seria só imaginação nossa? Uma «alucinação auditiva», como o título “acoasm” sugere?

João Coimbra
João Coimbra

Seguiu-se “Cara Sui”, de João Coimbra, para flauta alto, clarinete baixo, saxofone alto, piano e electrónica. O título significa (em latim) «cuidado de si», expressão que se encontra em filósofos de todos os tempos (por exemplo Michel Foucault), e que também tem uma acepção médica. Mas, segundo o autor, é de algo mais pessoal que se trata, em cruzamento com uma questão político-filosófica actual: que as máquinas se tornem cada vez mais «humanas» e os seres humanos sejam «como máquinas». A escrita instrumental parecia-nos suficientemente rica e expressiva, dispensando a electrónica, que nos pareceu menos bem conseguida. Mas talvez ela seja, para o seu criador, um aspecto fundamental da sua reflexão musical, pois perturba, precisamente, a unidade orgânica, como uma máquina que fosse necessária para completar o cuidado humano. Será?

Jaime Reis · © Sofia Nunes
Jaime Reis · © Sofia Nunes

Clara Saleiro e Carolina Santiago Martínez tocaram depois uma pequena peça do compositor catalão Hèctor Parra, “Andante Sospeso” (de 2003), na sua versão para flauta e piano. Apesar da interpretação empenhada e clara das excelentes Clara Saleiro e Carolina Santiago Martínez, a peça parece pouco livre, prisioneira de uma linguagem a que o compositor se agarrara na sua juventude. Hèctor Parra vive em França, foi professor no IRCAM e é hoje um compositor amadurecido e reconhecido no seu trabalho (será preciso ainda ir para França ou para a Alemanha para isto acontecer?). O Barcelona Modern terminou com “Sangue Inverso; Quartzo”, de Jaime Reis, o «tutor» de O Canto das Sementes deste ano (e também director do DME e do espaço Lisboa Incomum). Peça que teve o «acrescento» ao Barcelona Modern da violinista Beatriz Costa, convidada do Ensemble DME. Foi uma interpretação viva desta versão de 2020 para quarteto de uma das partes de “Sangue Inverso”. É, portanto, um excerto (que vale autonomamente) de uma peça maior (“Sangue Inverso-Inverso Sangue”) que se tem desdobrado em diferentes combinações instrumentais e que no fundo se tornou um ciclo de composições com títulos de minerais e rochas (Âmbar, Quartzo, Obsidiana, Ametista, etc). Cruzando ciência e arte, como Jaime Reis gosta de fazer.

O Canto das Sementes é um salutar projecto de estímulo à criação e de promoção do contacto entre compositores e intérpretes. É de pequenas dimensões e tem alcance limitado, é certo. Mas é (também) nesses caminhos que se encontram «impulsos irrequietos» para a criação actual: ela é mais rica e profunda se for feita em colaboração, ela tem de ser tocada, e ela tem de ser ouvida, é claro! E ouvimos quatro boas surpresas de estéticas muito diversas, com vozes próprias que não estão presas a novos «academismos» – isso parece ser um óptimo sinal.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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