Um acto de descoberta. Um espanto necessário. Quando se realizam concertos com novas obras em estreia, qualquer coisa se dá na relação com o público. Surpresa, estranheza, revelação. Os músicos e o maestro já fizeram as peças em ensaio, mas nunca sentiram o efeito que faz nos ouvidos da plateia. Há uma responsabilidade de revelá-la perante os outros, de abri-la à percepção enquanto se aprofunda a descoberta da música. Os compositores ouvem e vêem as suas obras viver realmente, supomos que cheios de dúvidas, interrogações, por mais seguros que estejam das qualidades da sua partitura. Como a cantarão os cantores? Como a tocará a orquestra? Com que energia a receberá o público? E os espectadores, por seu lado, põem os ouvidos atentos, à escuta: mas desta vez não é para confirmar o que sabem, comparar interpretações ou confirmar gostos: esta atenção é curiosidade pelo desconhecido, pressupõe um desafio, uma abertura, por mais timorata que seja.
Mas e se a orquestra ou um cantor se enganar? E se o maestro não tiver compreendido a obra? Será que uma sala cheia muda o som da obra? Paciência: teremos de confiar que a obra é assim, ali mesmo, como está a ser. Não há termo de comparação, não há gravação, não há partitura disponível, não há outras interpretações. Ali chegou, assim, viva, a obra a fazer-se. É por ser um privilégio (momento de estreia!) que também é uma dificuldade.
A sala do Grande Auditório não encheu, mas ficou bem recheada (da plateia ao balcão) para este concerto de peças novíssimas, realizadas no âmbito do workshop de Composição para Voz e Orquestra para jovens compositores orientado pelo compositor Luca Francesconi no âmbito do programa Empowering Opera (enoa – european network of opera academies). Jovens quer dizer, neste caso, compositores e compositoras com menos de 35 anos. Que residissem em Portugal ou tivessem sido propostos por uma das 12 organizações que fazem parte da enoa (a Gulbenkian é uma delas), uma rede financiada pela Comissão Europeia, interessada pela “renovação da ópera”, e criada com o objectivo de estimular a criação de novos repertórios e dar oportunidade a novos artistas.
E o que pudemos ouvir? Saltou à vista, antes de mais, a diversidade das propostas criativas. Stylianos Dimou compôs Tandem, obra que o próprio apresentou como trabalho “meta-vocal” (a voz reflectindo sobre o que ela própria pode fazer), numa mini-entrevista que Luca Francesconi fez a cada um dos compositores antes da sua peça. Tandem é uma peça de cena, claramente dramática, como se fosse realmente parte de uma ópera maior, num diálogo entre dois solistas (Camila Mandillo, soprano, e André Henriques, barítono) que cantam um “amor antes da primeira vista” (“it was love before first sight”). Um diálogo vocal a dois (excelente a presença dos cantores!), mas que é afinal um diálogo com o “ser interior” ou o subconsciente. Eles cantam, deslizam, sussurram, discutem. Paixão (e os reveses de uma “relação tóxica”, como explica o compositor) apresentada com uma certa “distância” irónica, que a orquestra acentua.
Bem distinta foi a peça de Cong Wei, compositora chinesa que propôs uma meditação introspectiva sobre o corpo e a alma. Tenor (Marco Alves dos Santos) e soprano (de novo Camila Mandillo) desenham imitações e sobreposições das suas vozes, mas aqui a dramaticidade é de outra índole. Omnia Vanitas, Caro Cardo Salutis (“tudo é vaidade, a carne é o eixo da salvação”) junta duas expressões religiosas que se prestam a interpretações diversas, e que aqui permanecem enigmáticas. A orquestra, para além de tocar a música centrada numa exploração tímbrica (peça de “interioridades” também neste sentido), é convidada a dizer palavras do título (Omnia Vanitas). Se fosse parte de uma ópera, seria certamente de uma ópera filosófica sobre o sofrimento e a modéstia como formas de tocar o transcendente.
No extremo oposto está a peça cheia de humor do espanhol-colombiano Fran Barajas, com a percussão a ajudar em efeitos orquestrais rápidos, quase sempre em tutti. É um jogo musical a partir de um texto de Juan Manuel Marroquín, El olor de la guayaba, que põe “em cena” (no texto) um bêbado a cantar uma serenata de madrugada com as palavras trocadas (em vez de “debajo de tu ventana”, ele diz “ventano de tus debajas”, e por aí fora). A música usa ritmos e melodias (também elas “trocadas” ou viradas de trás para a frente) de música popular colombiana. Interessante e bem-humorado jogo orquestral, mas de curta duração – se for parte de uma ópera cómica, por exemplo, terá de ir buscar outros frutos para mais sumo. O barítono André Henriques aguentou bem os trocadilhos e o ritmo frenético (e divertido) até ao fim.
A peça de Mariana Vieira, Contra o tempo e a carne, foi talvez a menos evidentemente operática de todas. O que é mais curioso neste caso é como a compositora trabalha um poema de Herberto Helder com a sua voz (a dela), sem ilustrar nem se pôr a “sublinhar” o poema. É, de certa forma, apenas uma “leitura”, com partes cantadas e outras faladas (o tenor foi Marco Alves dos Santos), acompanhada por uma orquestra. Acompanhada? Talvez fosse melhor dizer “iluminada” pela orquestra, onde abundam gestos pequenos muito significativos, e onde nos pareceu residir, afinal de contas, o cerne da obra, mais do que no canto do poema de Herberto Helder. O poema escolhido complica tudo, pois é sobre a poesia e como ela “toma em seu regaço” o mundo, o que está fora dela. E como o poema se constrói “contra o tempo e a carne”. A peça de Mariana Vieira parece ela própria fazer uma reflexão sobre como pode a música trazer para dentro de si o que está fora dela (o mundo, sim, mas um texto, também) e, mais do que isso, coisas aparentemente opostas: decisão resoluta e fragilidade, paz e violência... Imaginamos Contra o tempo e a carne não numa ópera, mas num ciclo poético-musical cogitante sobre a palavra e a criação artística. Porque a música pensa e pode ser um lugar de ensaio, em vários sentidos da palavra.
Percorremos a diversidade de obras da primeira parte do concerto e chegamos a uma obra que é, ela mesma, diversa dentro de si. Porque os processos de colagem de João Carlos Pinto neste seu Responsório são a forma de integrar o fragmentado, o despedaçado, e a expressão do “magoado”. O texto usado é ele próprio uma colagem livre de vários textos de responsórios em latim. Responsórios são textos litúrgicos em que a congregação ou um coro “responde” ao que é cantado ou dito. É uma forma comum em várias religiões (com nomes distintos), e em muita música popular também. João Carlos Pinto diz (nas notas ao programa) que a sua peça é sobre “o choque entre sujidade e pureza, seja lá o que isso for”. Peça cativante de “dor e mágoa”, que André Henriques soube trazer até nós com destreza e impura limpeza, do calmo cantus firmus inicial (com a boca fechada) que se vai alargando em saltos cada vez maiores, e em vocalidades velozes, até ao expansivo final na sua surpresa “barroca”. Poliestilístico e “pós-moderno”, portanto. Mas será que ainda faz sentido este termo para classificar música actual em que abunda a colagem, a citação e a liberdade estilística? Talvez precisemos de outras palavras para pensar esta dor de juventude de Responsório. Descaramento? Irreverência? Atrevimento?
Depois do intervalo, houve ainda a peça surpreendente de Hibiki Mukai, compositor japonês que fez seu o mar da Ode Marítima de Álvaro de Campos, de que musicou um excerto (“eu quem sou...”). Surpreendente porque Mukai, fascinado pela língua portuguesa que assumiu conhecer mal e considerar muito difícil, consegue manipular bem o português e tornar pessoal uma obra que, à primeira vista, lhe seria estranha e distante. “A minha vida!”, cantou Marco Alves dos Santos. Seria a vida do cantor? De Fernando Pessoa? De Hibiki Mukai? Talvez de todos eles. E o oceano Atlântico de Álvaro de Campos tem qualidades que o Pacífico de Mukai também tem. Como ele disse na mini-entrevista: “Eu sou de uma terra de pescadores, Matosinhos no Japão”.
A terminar o concerto, Luca Francesconi apresentou uma obra sua, Canti, feita de excertos revistos de óperas suas: dois momentos de Ballata (1999), a partir de um poema do poeta inglês Samuel Coleridge e duas de Trompe-la-mort, a partir de Balzac. Com timbres da orquestra fundindo-se (ou jogando coloridamente) com a voz, como Francesconi gosta de fazer, e com uma grande habilidade na articulação entre a escrita vocal e a orquestra, mesmo quando as cenas operáticas (aqui isoladas e tiradas do seu contexto) são “típicas”. O número final (para tenor e orquestra) pode parecer estranho, mas talvez Francesconi o tenha incluído porque ele contém uma reflexão sobre a vida e os caminhos percorridos. Uma espécie de confissão-súmula. A que coisas se foi fiel, afinal? Nas árias anteriores é mesmo o Amor a personagem principal. E sobretudo no terceiro número, um belo dueto em que André Henriques esteve muito bem e em que Camila Mandillo foi excepcional – “Como é grande o mundo nos teus olhos”, diz o texto de Coleridge e o poema abre-se ao mundo, por via da música e do canto.
Um concerto que lança pistas para as múltiplas formas de relação entre a voz e a orquestra, mostrando que muitas técnicas estão disponíveis, muitas formas podem ser tentadas, e mil expressividades distintas são possíveis. Às vezes a apontar para a ópera. Outras vezes para formas que ainda não têm nome, formas novas de relação da palavra e da música, irmãs de há muito, muito tempo.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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