2024.07.08
Composing for Voices and Orchestra · Empowering Opera (enoa)
Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (2024.06.28)
Orquestra Gulbenkian, Luca Francesconi (maestro), Camila Mandillo (soprano),
Marco Alves dos Santos (tenor), André Henriques (barítono)
Música de Cong Wei, Fran Barajas, Hibiki Mukai, João Carlos Pinto,
Luca Francesconi, Mariana Vieira e Stylianos Dimou
Um espanto sempre necessário: novas obras para voz e orquestra
PEDRO BOLÉO
Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Marco Alves dos Santos, Luca Francesconi
© Jorge Carmona – Gulbenkian Música

Um acto de descoberta. Um espanto necessário. Quando se realizam concertos com novas obras em estreia, qualquer coisa se dá na relação com o público. Surpresa, estranheza, revelação. Os músicos e o maestro já fizeram as peças em ensaio, mas nunca sentiram o efeito que faz nos ouvidos da plateia. Há uma responsabilidade de revelá-la perante os outros, de abri-la à percepção enquanto se aprofunda a descoberta da música. Os compositores ouvem e vêem as suas obras viver realmente, supomos que cheios de dúvidas, interrogações, por mais seguros que estejam das qualidades da sua partitura. Como a cantarão os cantores? Como a tocará a orquestra? Com que energia a receberá o público? E os espectadores, por seu lado, põem os ouvidos atentos, à escuta: mas desta vez não é para confirmar o que sabem, comparar interpretações ou confirmar gostos: esta atenção é curiosidade pelo desconhecido, pressupõe um desafio, uma abertura, por mais timorata que seja.

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
André Henriques, Camila Mandillo, Luca Francesconi, Orquestra Gulbenkian
© Jorge Carmona – Gulbenkian Música

Mas e se a orquestra ou um cantor se enganar? E se o maestro não tiver compreendido a obra? Será que uma sala cheia muda o som da obra? Paciência: teremos de confiar que a obra é assim, ali mesmo, como está a ser. Não há termo de comparação, não há gravação, não há partitura disponível, não há outras interpretações. Ali chegou, assim, viva, a obra a fazer-se. É por ser um privilégio (momento de estreia!) que também é uma dificuldade.

A sala do Grande Auditório não encheu, mas ficou bem recheada (da plateia ao balcão) para este concerto de peças novíssimas, realizadas no âmbito do workshop de Composição para Voz e Orquestra para jovens compositores orientado pelo compositor Luca Francesconi no âmbito do programa Empowering Opera (enoa – european network of opera academies). Jovens quer dizer, neste caso, compositores e compositoras com menos de 35 anos. Que residissem em Portugal ou tivessem sido propostos por uma das 12 organizações que fazem parte da enoa (a Gulbenkian é uma delas), uma rede financiada pela Comissão Europeia, interessada pela “renovação da ópera”, e criada com o objectivo de estimular a criação de novos repertórios e dar oportunidade a novos artistas.

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi, Stylianos Dimou · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

E o que pudemos ouvir? Saltou à vista, antes de mais, a diversidade das propostas criativas. Stylianos Dimou compôs Tandem, obra que o próprio apresentou como trabalho “meta-vocal” (a voz reflectindo sobre o que ela própria pode fazer), numa mini-entrevista que Luca Francesconi fez a cada um dos compositores antes da sua peça. Tandem é uma peça de cena, claramente dramática, como se fosse realmente parte de uma ópera maior, num diálogo entre dois solistas (Camila Mandillo, soprano, e André Henriques, barítono) que cantam um “amor antes da primeira vista” (“it was love before first sight”). Um diálogo vocal a dois (excelente a presença dos cantores!), mas que é afinal um diálogo com o “ser interior” ou o subconsciente. Eles cantam, deslizam, sussurram, discutem. Paixão (e os reveses de uma “relação tóxica”, como explica o compositor) apresentada com uma certa “distância” irónica, que a orquestra acentua.

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi, Cong Wei · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

Bem distinta foi a peça de Cong Wei, compositora chinesa que propôs uma meditação introspectiva sobre o corpo e a alma. Tenor (Marco Alves dos Santos) e soprano (de novo Camila Mandillo) desenham imitações e sobreposições das suas vozes, mas aqui a dramaticidade é de outra índole. Omnia Vanitas, Caro Cardo Salutis (“tudo é vaidade, a carne é o eixo da salvação”) junta duas expressões religiosas que se prestam a interpretações diversas, e que aqui permanecem enigmáticas. A orquestra, para além de tocar a música centrada numa exploração tímbrica (peça de “interioridades” também neste sentido), é convidada a dizer palavras do título (Omnia Vanitas). Se fosse parte de uma ópera, seria certamente de uma ópera filosófica sobre o sofrimento e a modéstia como formas de tocar o transcendente.

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi, Fran Barajas · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

No extremo oposto está a peça cheia de humor do espanhol-colombiano Fran Barajas, com a percussão a ajudar em efeitos orquestrais rápidos, quase sempre em tutti. É um jogo musical a partir de um texto de Juan Manuel Marroquín, El olor de la guayaba, que põe “em cena” (no texto) um bêbado a cantar uma serenata de madrugada com as palavras trocadas (em vez de “debajo de tu ventana”, ele diz “ventano de tus debajas”, e por aí fora). A música usa ritmos e melodias (também elas “trocadas” ou viradas de trás para a frente) de música popular colombiana. Interessante e bem-humorado jogo orquestral, mas de curta duração – se for parte de uma ópera cómica, por exemplo, terá de ir buscar outros frutos para mais sumo. O barítono André Henriques aguentou bem os trocadilhos e o ritmo frenético (e divertido) até ao fim.

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi, Mariana Vieira · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

A peça de Mariana Vieira, Contra o tempo e a carne, foi talvez a menos evidentemente operática de todas. O que é mais curioso neste caso é como a compositora trabalha um poema de Herberto Helder com a sua voz (a dela), sem ilustrar nem se pôr a “sublinhar” o poema. É, de certa forma, apenas uma “leitura”, com partes cantadas e outras faladas (o tenor foi Marco Alves dos Santos), acompanhada por uma orquestra. Acompanhada? Talvez fosse melhor dizer “iluminada” pela orquestra, onde abundam gestos pequenos muito significativos, e onde nos pareceu residir, afinal de contas, o cerne da obra, mais do que no canto do poema de Herberto Helder. O poema escolhido complica tudo, pois é sobre a poesia e como ela “toma em seu regaço” o mundo, o que está fora dela. E como o poema se constrói “contra o tempo e a carne”. A peça de Mariana Vieira parece ela própria fazer uma reflexão sobre como pode a música trazer para dentro de si o que está fora dela (o mundo, sim, mas um texto, também) e, mais do que isso, coisas aparentemente opostas: decisão resoluta e fragilidade, paz e violência... Imaginamos Contra o tempo e a carne não numa ópera, mas num ciclo poético-musical cogitante sobre a palavra e a criação artística. Porque a música pensa e pode ser um lugar de ensaio, em vários sentidos da palavra.

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi, João Carlos Pinto · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

Percorremos a diversidade de obras da primeira parte do concerto e chegamos a uma obra que é, ela mesma, diversa dentro de si. Porque os processos de colagem de João Carlos Pinto neste seu Responsório são a forma de integrar o fragmentado, o despedaçado, e a expressão do “magoado”. O texto usado é ele próprio uma colagem livre de vários textos de responsórios em latim. Responsórios são textos litúrgicos em que a congregação ou um coro “responde” ao que é cantado ou dito. É uma forma comum em várias religiões (com nomes distintos), e em muita música popular também. João Carlos Pinto diz (nas notas ao programa) que a sua peça é sobre “o choque entre sujidade e pureza, seja lá o que isso for”. Peça cativante de “dor e mágoa”, que André Henriques soube trazer até nós com destreza e impura limpeza, do calmo cantus firmus inicial (com a boca fechada) que se vai alargando em saltos cada vez maiores, e em vocalidades velozes, até ao expansivo final na sua surpresa “barroca”. Poliestilístico e “pós-moderno”, portanto. Mas será que ainda faz sentido este termo para classificar música actual em que abunda a colagem, a citação e a liberdade estilística? Talvez precisemos de outras palavras para pensar esta dor de juventude de Responsório. Descaramento? Irreverência? Atrevimento?

Composing for Voices · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi, Hibiki Mukai · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

Depois do intervalo, houve ainda a peça surpreendente de Hibiki Mukai, compositor japonês que fez seu o mar da Ode Marítima de Álvaro de Campos, de que musicou um excerto (“eu quem sou...”). Surpreendente porque Mukai, fascinado pela língua portuguesa que assumiu conhecer mal e considerar muito difícil, consegue manipular bem o português e tornar pessoal uma obra que, à primeira vista, lhe seria estranha e distante. “A minha vida!”, cantou Marco Alves dos Santos. Seria a vida do cantor? De Fernando Pessoa? De Hibiki Mukai? Talvez de todos eles. E o oceano Atlântico de Álvaro de Campos tem qualidades que o Pacífico de Mukai também tem. Como ele disse na mini-entrevista: “Eu sou de uma terra de pescadores, Matosinhos no Japão”.

Luca Francesconi· © Jorge Carmona – Gulbenkian Música
Luca Francesconi · © Jorge Carmona – Gulbenkian Música

A terminar o concerto, Luca Francesconi apresentou uma obra sua, Canti, feita de excertos revistos de óperas suas: dois momentos de Ballata (1999), a partir de um poema do poeta inglês Samuel Coleridge e duas de Trompe-la-mort, a partir de Balzac. Com timbres da orquestra fundindo-se (ou jogando coloridamente) com a voz, como Francesconi gosta de fazer, e com uma grande habilidade na articulação entre a escrita vocal e a orquestra, mesmo quando as cenas operáticas (aqui isoladas e tiradas do seu contexto) são “típicas”. O número final (para tenor e orquestra) pode parecer estranho, mas talvez Francesconi o tenha incluído porque ele contém uma reflexão sobre a vida e os caminhos percorridos. Uma espécie de confissão-súmula. A que coisas se foi fiel, afinal? Nas árias anteriores é mesmo o Amor a personagem principal. E sobretudo no terceiro número, um belo dueto em que André Henriques esteve muito bem e em que Camila Mandillo foi excepcional – “Como é grande o mundo nos teus olhos”, diz o texto de Coleridge e o poema abre-se ao mundo, por via da música e do canto.

Um concerto que lança pistas para as múltiplas formas de relação entre a voz e a orquestra, mostrando que muitas técnicas estão disponíveis, muitas formas podem ser tentadas, e mil expressividades distintas são possíveis. Às vezes a apontar para a ópera. Outras vezes para formas que ainda não têm nome, formas novas de relação da palavra e da música, irmãs de há muito, muito tempo.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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