2024.07.05
FonoVoz/ PhonoVoice – Encontros de Poesia Sonora/ Sound Poetry Meetings
O’culto da Ajuda, Lisboa (2024.06.21 e 22)
A poesia sonora a dar cartas
PEDRO BOLÉO
FonoVoz · mesa redonda 1
Mesa redonda 1: Rui Torres, Alfredo Costa Monteiro, Kinga Tóth e Manuel Portela

Nos dias 21 e 22 de Junho realizaram-se no O’culto da Ajuda, em Lisboa, os Encontros de Poesia Sonora FonoVoz (PhonoVoice – Sound Poetry Meetings). Uma iniciativa que partiu da Miso Music Portugal, que convidou Manuel Portela e Rui Torres para fazer a curadoria destes dois dias de apresentações, conversas e perfomances que tinham como objectivo apresentar “uma amostra da poesia sonora contemporânea na qual se reconhecem quer a diversidade formal e técnica, quer a força criativa desta prática artística e literária”.

Duas mesas redondas com os artistas convidados foram momentos bem interessantes de pensamento e debate em torno de um conjunto de práticas artísticas que dão pelo nome de “poesia sonora”. A poesia sonora, mais do que uma arte só, é um campo aberto de experimentação e criação que se situa hoje, claramente, na intersecção de várias artes, da poesia à música, do teatro às artes visuais, da perfomance ao vídeo, passando pelas artes digitais.

FonoVoz · mesa redonda 2
Mesa redonda 2: Manuel Portela, Cia Rinne, Jörg Piringer e Rui Torres

A poesia sonora continua a derrubar barreiras da linguagem “literária” e passando as fronteiras da(s) língua(s), na esteira das experiências dos dadaístas e futuristas do início do século XX. E hoje, com novos meios, retomando caminhos abertos pela poesie sonore de Henri Chopin (uma das importantes referências da poesia sonora dos anos 50 e 60 do século XX) ou pelas possibilidades de transformação da voz, hoje expandidos pelos meios digitais, mas já praticados pela música electrónica e pelo alargamento da gravação e transformação sonora da voz humana em meados do século passado.

Um campo de criação com história, que muitos performers actuais não ignoram. Como escreveram os curadores na apresentação dos encontros, “a expressão ‘poesia sonora’ designa um espectro muito amplo de práticas, que se estendem da poesia fonética futurista e dadaísta das primeiras décadas do século XX à poesia sonora electrónica das primeiras décadas do século XXI”, salientando também que foi uma “intersecção histórica entre escrita, tecnologias mediais e práticas vocais” que originou “uma profusão de géneros e formas de poesia sonora, algumas das quais mais próximas das artes da música do que das artes da linguagem”. Há que notar ainda, como escreveram os curadores dos encontros: “Se a poesia sonora pode ser descrita como um modo de usar e escutar a voz para lá da sua articulação diferencial em signos, esta percepção puramente acústica é intensificada pelo reconhecimento da presença fragmentária e decomposta da palavra. Trata-se de situar a nossa atenção nessa oscilação entre percepção fonográfica e percepção vocálica, que nos permite escutar os sons da língua e os sons da voz ao mesmo tempo.”

As performances de Alfredo Costa Monteiro (no dia 21) e de Cia Rinne (no dia seguinte) foram bons exemplos de como se pode trabalhar a poesia sonora a partir da máxima simplicidade e com um traço comum: o uso de diferentes línguas em simultâneo.

Por exemplo nos jorros multilinguísticos de Alfredo Costa Monteiro, com uso de fitas de papel que “desenrolam” longas listas de palavras em português, francês, espanhol ou catalão, que o artista articula rapidamente, em jogos de palavras (fonéticos, mas também semânticos) que atravessam as fronteiras das línguas. Na última peça (das três apresentadas) o artista usa leitores de cassete ligados a uma mesa, e pequenos papéis com pequenas frases sempre à volta da ideia de “Eco Oco”, o título da peça. Tecnologia, sim, mas pouca. A simplicidade e a delicadeza é que fazem a força da intervenção poética de Costa Monteiro.

Também Cia Rinne aposta na delicadeza: a da sua voz, raramente subindo de intensidade, mas também a dos seus jogos poéticos de humor, em pequenas sequências com jogos de som e sentido, lendo de um pequeno caderno, como se fosse um bloco de notas poéticas. Também aqui (pelo menos) quatro línguas surgem: inglês, alemão, francês, espanhol. Ela declara querer aprender outras línguas, para “alargar” o espectro poético de que faz uso. Mas não usou nada de sueco (ela nasceu na Suécia), nem da sua língua mãe (os pais são finlandeses), nem sequer de dinamarquês (viveu também na Dinamarca, para além da Alemanha). As leituras de sequências poéticas multilingues foram apenas uma vez entrecortadas por um vídeo em que o humor é evidente. Sempre em busca de novos sentidos para velhas palavras. Para “abrir a linguagem” ou, como também diz Rinne, “usar as palavras e pô-las em questão”. O humor é uma arma, sim, mas não tanto de sedução do público, antes uma chave para abrir novas portas à linguagem poética.

No primeiro dia pudemos ouvir também a voz de Kinga Tóth, artista húngara actualmente a viver na Áustria (a situação política na Hungria não é neste momento favorável à livre expressão artística) a propor uma performance de um tipo completamente diferente. Ao lado de um pequeno estendal para pendurar roupa, ela propôs uma viagem sonora íntima e intensa, a partir das suas investigações sobre a vida das freiras em conventos austríacos. Chamou-lhe “The Maria Machina – a human-machinery prayer”. E usa loops da sua própria voz sobre os quais lança “rezas” com poucas palavras perceptíveis. Também ela costuma conjugar diferentes línguas (alemão, inglês, húngaro), mas aqui o fundamental é a criação de um universo sonoro íntimo e espiritual, onde a voz é toda corpo e o corpo se faz voz. Não deixa de ser interessante esta curiosidade pelo quotidiano de mulheres religiosas por parte de quem andou já alguns anos pela cena artística alternativa, do trash e do punk à poesia sonora e à criação intermedia. Também aqui o vídeo tinha importância, projectando em fundo imagens abstractas com uso de simetrias, onde se pode descortinar alguns símbolos religiosos (uma imagem de Maria, por exemplo).

Uma referência ainda para a intervenção poética de Jörg Piringer, no segundo dia. “Things can go wrong but that's part of the process”, diz ele logo no início. De facto, Piringer aparece quase como um “apresentador”, mais do que um artista, mostrando diferentes possibilidades de programas de computador que são “geradores de poesia” (obviamente, com as instruções que lhes damos), pondo as ferramentas a trabalhar e pondo todo o jogo “à mostra”. Jörg Piringer está interessado numa poesia que trabalhe com sons electrónicos, mas também com meios digitais e seus “erros”. Por exemplo erros de tradução, tornados som através de vozes “digitais”, ou, se quiserem, “artificiais”. Interessa-lhe também o uso de tecnologia para fins que não foram aqueles para a qual foi desenhada originalmente. É aí que entra a arte. No meio de trabalhos digitais a “fazer erros” ou a “funcionar mal” por causa da nuance de um sotaque (o que não deixa de ser curioso), pudemos assistir ao nascimento de um belo e improvável Haiku a partir de “Hiragana” (um dos silabários da língua japonesa): “sleeping/ listen to the words/ burning”. Também destas surpresas (uma criação em directo com ajuda de meios digitais e com a colaboração do público) se faz a poesia sonora.

Manuel Portela é professor e investigador na área das línguas e literaturas, e tem colaborado no projecto PO-EX, um arquivo digital da poesia experimental portuguesa. Rui Torres, investigador principal da PO-EX, é também professor e investigador na área da comunicação, semiótica, literatura e hipermédia. Ao mesmo tempo, é um artista com interesse especial pela poesia experimental e pela ciberliteratura. Ambos estão interessados na criação poética contemporânea, na performance e na relação com os novos meios tecnológicos. Não admira que as mesas-redondas tenham levado as conversas para questões relacionadas com cruzamentos linguísticos, multilinguismo, tradução, poesia digital e relação com as novas tecnologias. Mas falou-se também, mais especificamente, dos trabalhos de cada um dos performers presentes, abrindo o apetite para as performances das duas noites.

Os organizadores propuseram também a escuta e a visão de dezenas de performances de poesia sonora das mais variadas épocas e geografias, antes das mesas-redondas. Para alargar a nossa imagem (escuta, sobretudo) do que possa ser a poesia sonora nos tempos que correm. Com a voz ao centro, mesmo quando ela se deslocou e reconfigurou (graças à criatividade artística e às possibilidades tecnológicas) e pode emergir de outros lugares que não o nosso corpo. Mas a ele – ao corpo – e a ela – à presença da voz – se regressa sempre, como mostraram as estimulantes performances deste FonoVoz.

A poesia sonora e as suas inúmeras bifurcações continuam a dar cartas. Do lado da música, compositores e intérpretes que lidam com a voz e que desejam explorar as suas infinitas possibilidades técnicas, poéticas e formais, a caminho de novos sons, textos e linguagens, podem aproveitar muito desse jogo. Porque não? Ou melhor: porquê tão pouco ainda?

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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