2024.05.12
Festival Música Viva 2024, O’culto da Ajuda, Lisboa (2024.05.04 e 05)

Sond’Ar-te Electric Ensemble, Pedro Carneiro (maestro)
Obras de Hugo Vasco Reis, Christopher Bochmann, Rui Penha e Daniel Martinho

Powertrio, “50: Contagem Urgente”
Joana Sá (piano e eletrónica), Luís Martins (guitarra e eletrónica), Eduardo Raon (harpa e eletrónica)
Técnica, expressão, revolução
(em louvor dos intérpretes)

PEDRO BOLÉO

Conta-se que o pintor Degas disse um dia ao seu amigo e poeta Mallarmé que era muito difícil para ele escrever poesia, e acrescentou: «embora não me faltem ideias.» Mallarmé respondeu-lhe: «Mas, Degas, não é com ideias que se fazem sonetos. É com palavras.» Na música, o mesmo se passa. Não é com ideias que se faz música. É com sons. Um compositor pode esquecer-se disso (e o mais provável é o resultado ser decepcionante), mas um intérprete sabe isso muito bem, sempre.

A técnica, que na música erudita instrumental tem intermediários – os músicos – é sempre necessária. Não há música, nem forma (mesmo que se queira «informal»), se a relação com o instrumento não faz soar os sons assim ou assado. A técnica é a mediação com o material que junta o que se diz (a ideia) ao modo como se diz (a forma). Ainda por cima, a música é um acto performativo (diferente da escrita e talvez mais próximo de uma leitura em voz alta de um texto). Ou seja, o som – num concerto ao vivo – é feito ali, no conjunto de relações (técnicas e outras) que naquele momento se estabelecem.

Vem isto a propósito de dois concertos muito estimulantes do Festival Música Viva, nos dias 4 e 5 de Maio. Concertos muito diferentes, em certa medida distantes nos seus pressupostos e na sua atitude estética. No sábado, dia 4 de Maio, foi o Sond’Ar-te Electric Ensemble a tocar música de quatro compositores vivos, e em três dos casos composições em estreia absoluta. No dia 5, domingo, foi o Powertrio, num concerto com matéria nova a propósito dos 50 anos do 25 de Abril. Decidimos juntá-los neste texto propondo uma reflexão sobre ambos à volta da questão da técnica e da interpretação. E, já agora, da revolução.

O Sond’Ar-te Electric Ensemble tem revelado ser um agrupamento excepcional no panorama musical português. Habituado como está a um conjunto de linguagens musicais actuais, sabe que cada partitura tem o seu segredo a revelar. E que esse «enigma» tem soluções diferentes conforme os casos. O prazer está, em grande parte, aí. Mas é preciso saber pôr na sala – neste caso o O’culto da Ajuda, em Lisboa – todo o som que se pede e todo o som que se pode. A técnica não são só «dedos» ou «boca», posições, embocaduras e velocidades, mas algo de mais complexo – a forma prática de estabelecer um diálogo com a criação, seja de que tempo for. Se for do nosso tempo, então ela é acrescida do entusiasmo de revelar uma coisa absolutamente inédita. E que coisas foram essas, neste belíssimo concerto de fim de tarde de sábado?

A criação protagonista

Tudo começou com uma peça de Hugo Vasco Reis, “Labirinto da Metáfora”, para sete instrumentistas e electrónica. A electrónica baseia-se em gravações de campo realizadas numa estação de comboios de Zurique. Eis o ponto de partida para a viagem. Mas a descoberta dos sons, lá está, foi feita em primeiro lugar pelos músicos do Sond’Ar-te. E, a pouco e pouco, uma descoberta para nós. O compositor avisava, na sua sinopse da folha de sala, que os sons são aqui alvo de uma «mediação metafórica». Como coisas que lá estão em lugar de outras. Sons que não são o que são. Mas são! Porque, apesar do exercício filosófico de Hugo Vasco Reis, a literalidade do som é inescapável. Que o digam os músicos do Sond’Ar-te, que puseram a gravitar na sala (isso é certo!) uma série de pequenos sons e gestos sobre os sons que vinham de Zurique. Que som será este vindo a lume graças à espantosa técnica dos músicos? Talvez seja um nostálgico lenço caído no cais da estação.

Depois veio uma extraordinária peça de Christopher Bochmann, numa interpretação que nos pareceu primorosa (dá vontade de ouvir outra vez) de uma peça absolutamente nova, embora bem ancorada numa linguagem conhecida do compositor. A inspiração de “Canzona VII” é um poema de Henry Vaughan, poeta «metafísico» inglês do século XVII. Mas aqui, nada de palavras, só instrumentos e o virtuosismo técnico dos músicos (não confundir com exibições «tecnicistas»). A peça de Bochmann possui uma imensa clareza formal que não se confunde nunca com rigidez, bem pelo contrário. “Canzona VII” respirou poesia e liberdade, nos seus sete andamentos (com combinações diferentes de flauta, clarinete, percussão, piano, violino, viola e violoncelo), com um pequeno solo de violino a terminar. Um dos momentos altos da noite (a tarde fez-se noite, entretanto).

Seguiu-se “Uma peça apropriada”, de Rui Penha, peça de 2022 em que o lado «conceptual» não significa aqui “pôr a ideia acima dos sons”, mas sim que a peça cumpre rigorosamente (radicalmente, poderíamos dizer) aquilo a que se propôs: dar uma resposta artística à questão de como se pode trabalhar sobre materiais, objectos e ideias oriundas de uma prática cultural que não é (originalmente) a sua. O compositor brinca com a ideia de fazer uma «apropriação apropriada» da música de Gamelão do Centro de Java. O resultado é uma peça muito curiosa, aparentemente simples e tonal, mas que nos troca as voltas. De repente, porque entrámos no interior do som, vamos parar aos antípodas. Será que a intenção do compositor era mesmo pôr-nos a «dar a volta ao mundo»?

Finalmente, a estreia da peça de Daniel Martinho, onde uma espécie de drone (uma nota grave persistente) vindo da electrónica (e depois viajando para os instrumentos) perturba a escuta. O momento-chave é quando essa nota grave desaparece. Algo se liberta aí, pondo a nu os fragmentos musicais que já lá estavam (loops que se se expandem e contraem), mas que eram como que prisioneiros da electrónica. É aí que o jogo cíclico de timbres deste “Cyclus” se solta.

Um belo concerto, onde a criação actual foi a protagonista, graças à extraordinária mediação do Sond’Ar-te, com a direcção precisa de Pedro Carneiro. Um grupo que sabe que cada nova obra tem uma técnica a ser descoberta, do pequeno detalhe à sua totalidade.

Powertrio
Powertrio

O poder da música em questão

No dia seguinte, o Powertrio fez um concerto surpreendente, com piano, guitarra, harpa e vários outros sons (sons electrónicos, vozes, etc.). Há muito que eles não se juntavam em concerto, porque têm andado ocupados com muitos outros projectos. Desta vez, a inspiração de Joana Sá, Luís Martins e Eduardo Raon foi o 25 de Abril. Por isso chamaram à performance “50: Contagem Urgente”, em referência aos 50 anos do 25 de Abril, mas também à sua atitude artística, uma procura de novas formas entre a “poética contemporânea” e a improvisação, entre a reflexão demorada e a urgência da expressão. Expressão que passa por uma delicadeza técnica, mesmo quando é preciso fazer barulho e exprimir revolta. Em busca de uma voz própria, sem imitar ninguém nem decretar nenhum «estilo» a priori.

Forcemos o paralelo com o 25 de Abril: no processo revolucionário, os poderes estavam em questão e era incerto quem os detinha – não se sabia bem onde estava o poder. O Powertrio também põe em questão, de formas muito criativas, os poderes da música. A força da música não emana, para eles, das certezas do costume em relação aos lugares que cabem à criação e à interpretação musical. Não conduzem às formas habituais, seja na improvisação, seja na criação “com partitura”, seja no rock a que o nome do grupo pisca o olho.

A composição e a interpretação são para os Powertrio duas irmãs inseparáveis. E às vezes são uma e a mesma coisa. O questionamento que fazem (eles assumem que o Powertrio serve para isso), fazem-no através das técnicas específicas que lhes permitem, a partir da sabedoria e agilidade que têm com os seus instrumentos, sair do lugar que lhes compete. É aí que eles descobrem novos timbres e formas, que podem ir da urgência de sirenes e alarmes (que os desastres do mundo exigem!) a uma quase canção de embalar vinda de um lugar distante (ou será mesmo aqui ao lado?), propondo outra sensibilidade possível. Ou, como eles dizem, «uma revolução feita e/ outras por revolver,/ tantas por rodopiar e/ mais ainda por excentrar/ tic tac tik toque». Grande Power, descentrando o Poder.

Ao contrário do que se aprende em algumas escolas, a técnica não é uma «chatice» necessária à execução «perfeita» que se carregará de «expressividade» à posteriori. A técnica deve ser entendida não só como aquisição de agilidade na manipulação de um instrumento, mas como forma de relação com os materiais dos músicos – instrumentos, sons e seus movimentos, espaços, partituras quando as há. Essa relação é construída, na música ao vivo, com o corpo todo – mãos, boca, pulmões, braços, pés. Com cérebro e nervos também, claro está. Para os músicos não há ideia nem sentimento nem desejo de revolução (sentido ou imaginado) que façam o trabalho da técnica.

Não é com ideias que se faz música. É com músicos assim.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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