O Festival Música Viva, na sua 30.ª edição, começou em grande, no Picadeiro Real do Museu dos Coches, com um concerto da Orquestra Metropolitana de Lisboa. O programa incluía obras de três compositores portugueses, às quais se juntaram o Concerto para piano op. 42 de Schoenberg e Mysteries of the Macabre, de Ligeti, peça que reúne três árias da sua única ópera, Le Grand Macabre, num arranjo para ensemble de Elgar Howarth.
Schoenberg e Ligeti estavam lá, de certa forma quebrando a unidade do resto do programa (só com criações do século XXI de três compositores portugueses), para dar mãos e voz a dois excelentes jovens intérpretes. Para mostrar que há futuro(s). José Pedro Ribeiro fez uma interpretação segura daquele concerto difícil escrito por Schoenberg em 1942 e estreado em 1944 nos Estados Unidos (para onde o compositor foi, exilado, fugindo do nazismo). Difícil, sim, porque é muito exigente para quem toca, mas aquela forma de trabalhar o dodecafonismo parece bem “clássica” para os nossos ouvidos de hoje, de certa forma fazendo uma síntese entre expressionismo e neoclassicismo. Um pouco como se Brahms (que Schoenberg muito admirava) tivesse acordado durante o pesadelo da Segunda Guerra Mundial. Bela interpretação da Metropolitana, sob a direcção de Pedro Neves, captando as nuances de carácter do concerto, que vai do tom nostálgico à ironia, passando por uma reflexão musical sobre o “rebentar do ódio” do nazismo. Não de forma programática, mas está lá.
No final, foi a vez de brilhar a soprano Camila Mandillo, ao lado de um ensemble retirado da orquestra, para as árias quase nonsense (mas afinal bem claras na sua intenção) da chefe da “Polícia Secreta” (“Provocations, ha!”, “Call the guard, call the guard!”) em Mysteries of the Macabre, numa interpretação esplêndida e cativante que desembocou em ruidosos aplausos, com o público de pé. O brilho não foi só de Camila Mandillo, foi também da Metropolitana, concentrada em pintar ao vivo todas as cores desta música de atitude pós-surrealista de György Ligeti. Só que a peça de Ligeti/ Howarth parecia de outro concerto...
Pelo meio, o programa que sugerimos ser uno, pois reunia composições recentes – e uma estreia absoluta – de compositores portugueses bem afirmados, era afinal bem variado. A estreia foi Palimpsesto – Vestígios, de António de Sousa Dias, que começa com o piano lançando malhas que a orquestra vai tecendo, numa proposta de escuta tranquila, que possa entrar sucessivamente no som para ouvir os timbres emergentes. Primeiro as madeiras, só depois as cordas. E por aí adentro: o mais importante passa-se nos planos harmónicos, e o ritmo musical parece ao serviço da textura (a experiência de Sousa Dias na música electrónica é capaz de ter a ver com isto, embora aqui não haja computadores). Textura que se cose até ao desenlace: o compositor-tecelão não tem medo de lhe pôr um ponto final musical (plom!). Como se António de Sousa Dias dissesse: “Paramos aqui de trabalhar com o tear, continuaremos na próxima obra”.
Depois ouviu-se Greeting, obra de 2010 de João Madureira, que o próprio descreveu como “um breve momento musical, uma súbita luz”. De facto, na sua forma clara, com duas flautas, dois oboés e duas trompas a lançar gestos musicais “a dois” sobre uma orquestra de cordas, Greeting tem qualquer coisa de calmo e luminoso, como feixes de luz movendo-se atrás de uma persiana. A interpretação extremamente cuidada da Metropolitana ajudou a ver e a ouvir tudo. Como o título indica, Greeting (dedicada originalmente a Piñeiro Nagy, director do Festival do Estoril) é um agradecimento (à vida musical portuguesa e a toda a música, no fim de contas). Não tem de quê – o prazer foi todo nosso.
Seguiu-se ainda a peça mais provocadora da noite, a de Miguel Azguime, com o título La Transfiguration de L'impossible (peça recente, terminada em 2022). Provocadora no sentido de “chamar as nossas vozes” – e assim instigar uma participação activa do ouvinte. A peça de Azguime provoca “para fora” (a de João Madureira e a estreia de Sousa Dias provocavam-nos, e muito bem, mas para dentro). Porque esta “transfiguração” coloca problemas de percepção, na sua forma de exposição e no seu discurso (íamos escrevendo “retórica”). Para onde nos está a levar? E, ao mesmo tempo, na sua proposta de escuta de uma exploração microtonal em ondas sucessivas. Será que estamos a ouvir bem? Será mesmo assim? Sim, La Transfiguration de L'impossible é mesmo assim. Exige, explora, espanta, às vezes quase assusta. E depois finta o impossível, transfigurando-se.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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