2024.04.30
“Música e Revolução – 50 Anos do 25 de Abril”, Casa da Música, Porto (2024.04.19)
Peter Rundel e Brad Lubman (maestros)
Victor Pereira (clarinete baixo), Iestyn Davies (contratenor), Digitópia (eletrónica)
Remix Ensemble, Orquestra Sinfónica do Porto, Coro e Coro Infantil da Casa da Música
Obras de Jorge Peixinho, Pedro Lima, Vasco Mendonça e Daniel Moreira
25 de Abril e o apetite pelo novo
JAKUB SZCZYPA
Esta é a madrugada · Casa da Música
“Esta é a madrugada” · © Casa da Música

Vivo em Portugal há mais que 10 anos e é agora, em 2024, que pela primeira vez experiencio um Ano Portugal na Casa da Música, que culminou entre os dias 17 e 30 de abril no contexto do ciclo “Música e Revolução – 50 Anos do 25 de Abril”. Nesses dias, com conferências, encontros, “Grândolas, Vilas Morenas”, não faltou – felizmente (!) – a música erudita criada em Portugal nos séculos XX e XXI, atrás da qual andam incansavelmente os autores do Espaço Crítica para a Nova Música.

A escolha dos compositores e compositoras para este Ano e Ciclo de Abril é, talvez, um pouco segura – as pessoas responsáveis pela programação da Casa da Música optaram por escolhas que, provavelmente, conhecem bem. A maioria dos nomes no programa têm uma ligação forte com a Casa – são pessoas que realizaram lá residências ou com as quais a Casa da Música desenvolveu colaborações e relações mais duradouras. Não seria, no entanto, mais enriquecedor e desafiante sair um pouco desta zona de conforto e explorar o que se passa por aí fora? O universo da criação musical contemporânea em Portugal é hoje em dia particularmente rico e talvez tenha faltado na abordagem da Casa da Música mais ousadia de correr riscos, fazer apostas, ter coragem de errar, mas também de descobrir assim o que é novo e valioso. Porém, é naturalmente de louvar e aplaudir a iniciativa de organizar em 2024 o Ano Portugal na Casa da Música, esperando que não seja o primeiro e o único, mas sim o primeiro de muitos outros Anos Portugal nesta que é uma das mais importantes salas de concerto do país.

Do ciclo “Música e Revolução” assisti ao concerto de 19 de abril intitulado “Esta é a madrugada”, uma frase retirada do poema “25 de Abril” de Sophia de Mello Breyner (os outros dois concertos do ciclo, também intitulados com as frases de Sophia – “O dia inicial” e “Emergimos da noite” – decorreram nos dias 20 e 21). “Esta é a madrugada” teve duas partes preenchidas com música criada em Portugal por compositores de gerações diferentes: Jorge Peixinho (1940-1995), Vasco Mendonça (1977), Daniel Moreira (1983) e Pedro Lima (1994). Destes quatro compositores apenas Jorge Peixinho viveu o 25 de Abril na sua própria pele. Os outros três têm, possivelmente, uma visão de certo modo idealizada da Revolução, construída a partir das histórias contadas pelos seus próximos e, obviamente, pelos ubíquos meios de comunicação social. É um aspeto interessante deste programa.

Para marcar o carácter celebrativo do concerto, ao palco da Sala Suggia subiram em modo de crescendo, peça a peça, quase todos os grupos da Casa da Música – o Remix Ensemble, a Orquestra Sinfónica do Porto, o Coro Adulto e o Coro Infantil. A direção musical da primeira parte foi da responsabilidade de Peter Rundel e, depois do intervalo, este papel coube a Brad Lubman, dois maestros que certamente têm a nova criação musical nos seus códigos genéticos. A preparação meticulosa dos Coros foi realizada pelo maestro Pedro Teixeira e pela maestrina Raquel Couto.

O auditório da Sala Suggia estava bem composto, o que me deu alguma esperança de que ocasiões como o 25 de Abril também tinham a capacidade de despertar a curiosidade do público pelo novo e desconhecido na criação musical. Analisaremos então, obra a obra, este programa com um toque político e veremos se este apetite pelo novo (pelo menos meu) ficou satisfeito.

Peter Rundel e Victor Pereira · © Rui Oliveira · Casa da Música
Peter Rundel e Victor Pereira · © Rui Oliveira · Casa da Música

Começámos em 1985, o ano em que Jorge Peixinho escreveu o concerto para clarinete baixo e conjunto instrumental “Meta-Formoses”, aqui brilhantemente interpretado pelo Remix com Peter Rundel e o clarinetista Victor Pereira que tocou todos os desafios da parte solista de uma forma muitíssimo equilibrada. “Meta-Formoses” é uma obra desenvolvida num só andamento a partir de um «sistema complexo de relações entre os diversos tipos de materiais de base» que «estabelecem uma rede de transformações e sobreposições»1. Há aqui «mutações constantes, susceptíveis de diferentes leituras com distintos matizes»2, por outras palavras, são metamorfoses na procura do formoso. E é de facto assim – aqui Jorge Peixinho não choca, mas propõe uma tensão e dramaturgia estáticas, um pouco como no cinema de Manoel de Oliveira, dando espaço a todos os instrumentos para que possam dialogar não só com o clarinete baixo solista, mas também entre si.

Peter Rundel e Pedro Lima · © Rui Oliveira · Casa da Música
Peter Rundel e Pedro Lima · © Rui Oliveira · Casa da Música

O choque veio a seguir, quando fomos levados para 2019, ano em que Pedro Lima compôs “Talkin(g) (A)bout My Generation” para grupo instrumental e eletrónica, obra-manifesto cuja velocidade e intensidade de informação por segundo contrasta com o ritmo lento e desenvolvimento gradual da obra de Peixinho. Percebemos logo que estávamos numa época diferente – do rápido, do imediato, da gratificação instantânea. «Estamos sem volante há algum tempo, não sei se o recuperaremos outra vez; mas, afinal de contas, que importa?»3, pergunta Pedro Lima. Esta peça, cujo título faz uma alusão direta à canção “My Generation” (1965) da banda inglesa The Who, é um retrato e uma crítica à geração de millennials, à qual o próprio compositor pertence. Ao nível musical temos aqui o Remix consideravelmente aumentado em relação à obra de Peixinho e também uma presença forte da eletrónica em que a voz de Rose Stachniewska interpreta (fala, grita, corta, repete) o texto de Gareth Mattey. É através da interação entre os instrumentos e a eletrónica que Pedro Lima desdobra o espaço sonoro cada vez mais veloz desta obra. Neste ora diálogo ora conflito entre o acústico e o eletrónico o compositor certamente não se contém na ostentação, não obstante senti aqui falta de uma interligação ou até penetração mais marcada entre estes dois universos. Sempre em modo de aceleração, em mais ou menos dois terços da sua duração, a obra chega ao clímax depois do qual tudo abranda – a velocidade e a ascensão invertem-se numa espécie de coda (provavelmente um dos momentos mais interessantes deste concerto). «Everyone. Everything. Exhausted. Simply Exhausted. Please.», ouvimos na eletrónica. Mas de repente, mesmo antes do fim, a voz da eletrónica recomeça, «But then – No Pause. Just go. And. Go fast!».

E saímos para o intervalo.

O que se seguiu, foi um aumento ainda mais considerável do dispositivo instrumental – agora foi a vez da Orquestra Sinfónica do Porto e do maestro Brad Lubman para ocupar o palco da Sala Suggia. Para a primeira obra, estreia da versão orquestral de “American Settings” (2021) de Vasco Mendonça (originalmente escrita para o Drumming – Grupo de Percussão), a estes músicos juntou-se o contratenor Iestyn Davies, sem dúvida uma das vozes mais interessantes e versáteis no que a interpretação da música antiga e contemporânea diz respeito. “American Settings” é um ciclo de Lieder com poemas de dois autores afroamericanos, Terrance Hayes e Tracy K. Smith, cuja descoberta foi para o compositor «uma revelação». «Quando procurava uma forma de lidar com a inquietação no meu trabalho, aqui estavam dois artistas que, no olho do furacão, de alguma forma tinham criado um equilíbrio admirável entre o corrente e o eterno, misturando linguagens e escalas num universo dinâmico em que nada parecia ficar de fora»4, sublinha Vasco Mendonça. Esta sua inquietação e preocupação com o futuro foi provocada pela vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas em 2016. Numa curta introdução em tempo real, mesmo antes da interpretação da sua obra, Vasco Mendonça confessou que o processo de composição de “American Settings” tinha sido de certa maneira terapêutico, no sentido de transmitir neste ciclo de canções folclóricas imaginárias algo «cristalino e transparente», qualidades que infalivelmente foram audíveis na interpretação excelente e perfecionista de Iestyn Davies e da Orquestra Sinfónica do Porto.
É estimulante comparar duas versões diferentes da mesma obra – neste caso, uma para contratenor e percussão (gravada pelo Drumming) e outra para contratenor e orquestra. E nesta comparação, para mim, ganha a primeira versão de “American Settings” em que a rugosidade e a ambivalência da pigmentação sonora da percussão equilibram melhor o conservadorismo da escrita vocal de Vasco Mendonça.

Brad Lubman · © Rui Oliveira · Casa da Música
Brad Lubman · © Rui Oliveira · Casa da Música

No final do concerto, à Orquestra juntaram-se os Coros, Adulto e Infantil, da Casa da Música para executar a estreia da obra “A Madrugada” de Daniel Moreira, esta sim, com referência direta aos 50 anos do 25 de Abril (uma encomenda da Casa da Música para esta ocasião). Baseada em cinco poemas de Sophia de Mello Breyner – “Data”, “Guerra ou Lisboa 72”, “25 de Abril”, “Revolução” e “Revolução – Descobrimento” – esta cantata para dois coros, orquestra e eletrónica, desenvolve-se sem interrupção durante 15 minutos. Como diz Daniel Moreira: «Selecionei cinco poemas — dois sobre o “tempo de silêncio e mordaça” da Ditadura, em que jovens voltavam de África “com morte no passaporte”; e três sobre o “tempo novo” e o “puro início” em que emerge a Democracia. De modo paralelo, também a minha peça tem essencialmente duas partes – uma para o antes do 25 de Abril, outra para o durante. Ou talvez tenha três partes – talvez o final seja já o depois, num olhar interrogativo de 2024.»5 Em termos musicais o papel principal cabe aqui às vozes dos coros e da eletrónica não sendo «indiferente se ouvimos o texto cantado pelo coro adulto ou pelo coro infantil, e não sendo «indiferente se o texto aparece na eletrónica com um ou outro timbre»6, o que dá a esta obra um certo toque cinematográfico, tão caro a Daniel Moreira. Por seu lado, o papel da orquestra e dos outros sons eletrónicos (ou seja, não vocais), é o de sublinhar, complementar ou até contradizer o som das vozes.
Ao fazer uma introdução à sua obra Daniel Moreira revelou que não gostava de falar da sua própria música para não condicionar o público e para este poder, na escuta, exercer a sua liberdade. E aqui começam as minhas dúvidas. Será que o próprio material sonoro aqui escolhido e trabalhado pelo compositor acabou por ser demasiado condicionante no que à escuta e à consequente reação emocional e intelectual diz respeito? Será que o mesmo aconteceu no caso das duas outras obras, de Vasco Mendonça e de Pedro Lima? Será possível que a música contemporânea apresentada e criada para celebrar ocasiões como o 25 de Abril tenha a capacidade de ser mais desafiante, mais ambígua e inovadora?

O concerto acabou e com estas dúvidas, sem respostas óbvias e imediatas, saí da Casa da Música com o meu apetite apenas meio-satisfeito. Estas perplexidades «gástricas» refletem, de certo modo, as falhas que, na minha opinião, o concerto “Esta é a madrugada” teve. Explicando melhor – para mim, enquanto ouvinte, apreciar a música composta no século XXI constitui um desafio que cria uma expetativa de experienciar algo novo e para além dos lugares-comuns. E, apesar de haver tentativas tanto da minha parte como da parte das obras musicais, não foi o que aqui aconteceu. Não estou, obviamente, a falar nem do talento, nem da qualidade do ofício dos compositores, nem da qualidade da interpretação, cujo valor, na minha opinião, não levanta dúvidas. O que questiono é a capacidade deste programa de dar ao 25 de Abril novos sentidos, sem pomposidade, sem clichés na escrita vocal, sem obviedades na escrita instrumental e eletróncia e com alguns twists na dramaturgia e na forma musical. Nos tempos que correm, com a crescente instabilidade política e com a ascensão dos extremismos que distorcem e manipulam o sentido de termos como «liberdade», é importante criarmos espaços para desafiar os «25 de Abris» olhando para eles de uma nova perspetiva – não nos refugiando apenas no formoso, cristalino, direto, óbvio, espetacular e emocional, mas juntando a estes a indagação intelectual, o verdadeiramente áspero, visceral, colorido, garrido, ruidoso, silencioso e, naturalmente, menos óbvio e mais desafiante. Daí a minha desilusão. Estava à espera de um impacto com «I» grande, mas o que ouvi deixou-me apenas meio-satisfeito.

P.S.: Os concertos do ciclo “Música e Revolução – 50 Anos do 25 de Abril”, com música de compositores portugueses (incluindo Constança Capdeville, Emmanuel Nunes e Fernando Lopes-Graça) continuaram na Casa da Música nos dias 20 e 21 de abril e espero que tenham tido a mesma boa adesão do público que o espetáculo no dia 19. Talvez este pequeno ciclo possa ser o germe de uma maior atenção dada à música criada em Portugal... (é um «piscar de olhos» que deixo aqui aos programadores da Casa da Música).

1 Ana Telles, Notas de Programa sobre a obra “Meta-Formoses” de Jorge Peixinho. Casa da Música, abril de 2024.
2 Ibidem.
3 Pedro Lima, Notas de Programa sobre a obra “Talkin(g) (A)bout My Generation”. Casa da Música, abril de 2024.
4 Vasco Mendonça, Notas de Programa sobre a obra “American Settings”. Casa da Música, abril de 2024.
5 Daniel Moreira, Notas de Programa sobre a obra “A Madrugada”. Casa da Música, abril de 2024.
6 Ibidem.

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