2024.02.11 · Ópera Π de João Pedro Oliveira
Festival Criasons IV, O’culto da Ajuda, Lisboa
Patrícia Silveira (mezzo-soprano), Luís Rendas Pereira (barítono),
Carla Ribeiro (bailarina e coreógrafa), Duo Contracello:
Miguel Rocha (violoncelo) e Adriano Aguiar (contrabaixo)
Libreto: Miguel Mesquita da Cunha e João Pedro Oliveira
Direcção musical: Brian MacKay
Encenação: Élio Correia
Produção: Musicamera Produções
Uma ópera (desaproveitada) com a criação ao centro
PEDRO BOLÉO
Patrícia Silveira, Luís Rendas Pereira · © André Roma
Patrícia Silveira, Luís Rendas Pereira · © André Roma

O ponto de partida da Ópera Π de João Pedro Oliveira é um debate sobre a criação artística. Miguel e Ana (assim se chamam as personagens) representam duas ideias: de um lado, a racionalidade, a objectividade, o plano; do outro, a intuição e “a visceralidade do momento da criação”, como diz o próprio autor.

Ópera de ideias, portanto, embora “incarnadas” em dois seres humanos, que discutem o que é primordial no acto criativo. Eles debatem num cenário simples, onde vemos uma mesa, uma cama, duas cadeiras, dois bancos. Ao centro, um grande tapete circular branco, esse círculo que, sem dúvida, pretende pôr em cena o número Π (pi), esse número irracional, uma constante que representa uma proporção (é a razão entre o comprimento da circunferência e o seu diâmetro) que intriga os matemáticos há milhares de anos. Em cena, pouco mais elementos: um cabide para pendurar um casaco, e um tabuleiro de xadrez que subirá para cima da mesa. Ao lado, visíveis, mas “fora de cena”, os dois músicos do Duo Contracello tocam os dois instrumentos.

Duo Contracello e Patrícia Silveira · © André Roma
Duo Contracello e Patrícia Silveira · © André Roma

Contudo, dois elementos exteriores se acrescentam a estes: a música electrónica e o vídeo, projectado lá atrás, onde aparecerão dígitos que nos aproximam (infinitamente) de pi e um outro elemento importante na ópera: a dança filmada. Tudo isto permite um jogo complexo de entradas e saídas, de aproximações e afastamentos que poderiam dar uma dinâmica interessante a esta ópera.

A voz, por exemplo, é ouvida em off, e só depois será cantada em palco. O corpo dos cantores/ actores é visto em palco, mas depois também aparece nas danças em vídeo. A música está presente (interpretação acústica de violoncelista e contrabaixista), mas também tem uma fonte “ausente” para o espectador (na electrónica que se cruzará com os instrumentos). Alguns traços do “estilo” de João Pedro Oliveira são bem audíveis e reconhecíveis (nomeadamente na electrónica).
O problema é que essas potencialidades dinâmicas são pouco desenvolvidas e pareceram-nos em grande medida desperdiçadas. Para além disso, a escrita vocal permanece linear, um problema que parece assolar muitas das criações operáticas dos nossos dias, apesar das possibilidades enormes e muito diversas que tem a voz cantada.

Uma nova ópera de João Pedro Oliveira parecia ser uma experiência desafiante para o compositor, diferente de tudo o que fez antes (Patmos, de 1990, está bastante distante no tempo e a ópera mais recente, A 70.ª Semana de 2022 é, de facto, um outro género “audiovisual”, uma vídeo-ópera, que coloca outros desafios e problemas tanto para o compositor como o público). Ópera Π obrigaria o compositor a descobrir na sua música formas de ela se fazer teatro. Em dois momentos importantes o compositor tenta fazê-lo, através de uma “música de dança”: uma valsa e um tango que aparecem em cena (e são dançados no vídeo). Formas que estão longe do que é habitual na música erudita e abstracta de João Pedro Oliveira e que encontram aqui curiosas concretizações. Mas o caminho da invenção musical trava-se e a relação entre os elementos (vozes, instrumentos, electrónica, vídeo) podia ser mais trabalhada.

Um problema de base, que nos pareceu não resolvido nesta ópera, é como dar forma-libreto a um texto desta índole (estético e filosófico). O libreto tem momentos em que encontra fórmulas felizes, como na expressão “fingir a liberdade na mão” ou “tu queres construir um palácio numa prisão”. Ou ainda quando Miguel insiste na frase “eu consigo dividir a realidade”, como uma obsessão. Mas, noutros momentos (em demasiados), o libreto falha a sua potência cénica, deixando em bruto um debate que podia ser muito mais profundamente explorado e que era preciso “tornar teatro”.

Um outro problema desequilibra o confronto de ideias: a personagem que defende o primado da intuição parece ter sempre mais razão do que o defensor da ordem e do rigor, demasiado rígido nas suas posições. Para equilibrar a partida (também ali se joga um “xadrez filosófico”), talvez ele pudesse ter melhores argumentos perante os defensores da pura intuição. Ele poderia argumentar, com exemplos, contra a ideia sentimentalista de que a arte está principalmente do lado das emoções. O defensor da razão não poderia ser apenas um “cumpridor de ordens”. Ele seria mais forte se soubesse dizer (e encontrar a forma artística de o fazer!), que a invenção criativa passa pela composição e ordenação do concreto, com escolhas materiais que não são fruto apenas de estados de alma e de ideias. Não precisava de ser um homem rígido que “até na dança” é um pé de chumbo.

Dentro desta limitação teatral, o Duo Contracello e a direcção de Brian MacKay tentaram segurar a música e revelar as qualidades tímbricas da parte instrumental, mas com alguns solavancos. Patrícia Silveira (mezzo-soprano) e Luís Rendas Pereira (barítono) tiveram um bom desempenho e conseguiram fazer o que se pedia na encenação simples de Élio Correia: serem simultaneamente pessoas e ideias. Onde ele cumpre, ela brinca. Onde ele arruma, ela desarruma. Onde ele ordena, ela imagina. Claro que tudo teria de acabar na cama entre eles, previsível imagem de fusão amorosa, porque a arte, já se sabe, é tudo isso: um acto de invenção apaixonada e rigorosa. Mas Ópera Π, ousando pouco na sua invenção, ficou aquém do estimulante debate sobre a criação a que se propôs.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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