Óperas de bolso, ágeis, facilmente montáveis, com um pequeno ensemble de músicos e dois cantores. Parece uma óptima ideia – e é. Os resultados desta louvável iniciativa foram apresentados em dois dias no Palácio do Sobralinho, no Concelho de Vila Franca de Xira (entre Alhandra e Alverca, na verdade). Ali tem poiso a Inestética, uma estrutura artística multidisciplinar, que desenvolve actividades de criação, programação cultural e formação, no domínio das artes do espectáculo. Foi a Inestética que organizou, pela segunda vez, este Laboratório de Criação de Ópera Contemporânea. A direcção artística esteve a cargo de Carlos Marecos e do encenador Alexandre Lyra Leite. O próprio Carlos Marecos, compositor e professor, foi o maestro das seis composições.
A proposta deste ano era que seis compositores e compositoras partissem de poemas de amor de autores portugueses, do século XVII ao século XX. Seis mini-óperas de seis compositores jovens, com personalidades artísticas bem distintas.
Tudo arrancou com Inutilmente, do compositor João Pacheco, mini-ópera construída a partir de um poema da Marquesa de Alorna, aliás, Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, uma figura importante da cultura portuguesa de finais do século XVIII e inícios do XIX, mulher de grande erudição, escritora, tradutora, pedagoga. Do seu poema “Eu cantarei um dia a tristeza” João Pacheco fez um monodrama para soprano e ensemble. O compositor começa por destacar apenas um “Não” e um “Mas”, num gesto de boa intuição dramática. E só depois se vai desvelando o poema, através de uma música com cromatismos ascendentes e ricas combinações entre os instrumentos do ensemble. João Pacheco conseguiu dar a volta ao sentimentalismo do soneto, puxando-lhe a intenção provocatória: “Eu cantarei um dia da tristeza/ por uns termos tão ternos e saudosos, que deixem aos alegres invejosos/ de chorarem o mal que lhes não pesa.” Uma luz vermelha põe o amor em cena. Luz que depois fica “estroboscópica”, quando o compositor imprime à música um ritmo mais acelerado. Patrícia Modesto fez um excelente trabalho, criando uma verdadeira “personagem” até ao final, em que um efeito vocal entre o sopro e o canto surpreende os ouvintes.
Em Fragile, Tiago Jesus pegou no poema, “A débil”, de Cesário Verde. O barítono Rui Baeta entrou com uma pequena caixa na mão, que diz “Fragile”. Surpreendentemente, o compositor não colocou aquele homem e aquela mulher no mundo concreto, como fazia tantas vezes Cesário Verde (algo acontece no meio da multidão da cidade). Antes procurou dar ao poema uma dimensão de luto e de memória, distanciando-se dele e tomando-o como “objecto de um tempo que não existe mais”, como escreve o compositor nas suas notas ao programa. Musicalmente, usando processos que criam distância ou surpresa, como pôr palavras na boca dos músicos do ensemble e não só na voz do cantor, ou com palavras que se ouvem numa voz off, contribuíram para a criação desse “tempo abstracto”. Uma percussão feita lá atrás (pelo próprio compositor) contribuiu para abrir ainda mais o espaço da cena. Rui Baeta esteve bem vocalmente, mas um pouco preso à partitura, o que não ajuda a criar desembaraço em cena.
Bárbara Sanchez concebeu em Volúpia, a partir dum poema de Florbela Espanca, um dispositivo musical original, nesta mini-ópera para duas vozes (soprano e barítono). O seu início é claramente “trovadoresco”, levando o poema a dialogar com outro tempo (o século XII) e tentando colocar em cena a tensão (“operática”, segundo a compositora) entre o amor mundano e o amor sublime. Curiosa viagem musical no tempo, fazendo ver doutra forma a poesia de Florbela Espanca. O amor de Florbela Espanca (e em particular deste poema) tem muito corpo presente (“regaço”, “dedos”, “beijos”, “corpo”, “voluptuosas danças”). E a música foi capaz de invocar esse lado físico do amor, combinando-o com uma procura tímbrica curiosa, começando como uma canção de amor antiga e depois deslocando-se para um território contemporâneo, sem perder a coerência.
A quarta ópera foi Deligere, de David Miguel, uma ópera a partir de um poema de Almeida Garrett em que se escreve que “O excesso de gozo é dor”. A ópera faz um desvio filosófico e coloca uma questão “sua” (mais do que do poema) – em que medida pode a paixão condicionar o livre-arbítrio? Sugerindo que há sempre uma escolha a fazer, apesar de todas as condicionantes. Uma mini-ópera “sobre a teoria da decisão”, como diz o seu autor, que assume esteticamente a influência de Adam's Passion de Arvo Pärt e Robert Wilson. David Miguel usa sons de ferros arrastando-se (pré-gravados e amplificados na sala) e leva a música para uma linguagem próxima de Pärt, procurando um máximo efeito retórico numa mini-ópera, com as vozes de Patrícia Modesto e Rui Baeta.
A penúltima ópera foi és a madrugada pura e sem ruína, peça de Diogo da Costa Ferreira, numa linguagem bem diferente da anterior. Tudo aqui é sussurrado, não só as vozes, mas também os instrumentos, usando efeitos com harmónicos e sopros sem alturas definidas. O poema de Soror Madalena da Glória, do século XVII, é fragmentado. As palavras “amor”, “vida”, “fogo”, “incêndio” vão surgindo na voz dos dois cantores, sugerindo um tom e um ambiente para este amor e não tão preocupado em “cantar o poema”. Um mini-drama sussurrado em que se sublinham as fragilidades, as delicadezas e as vulnerabilidades do amor.
Finalmente, a mini-ópera de Iris Bramberger, Vislumbres da cidade, que faz pequenas modificações nas palavras do poema de Ângelo de Lima (um poeta querido dos modernistas portugueses) para lhe dar uma possibilidade teatral. “Pedi-te que não me olhasses” passa, por exemplo, a discurso directo. Com óculos escuros, numa simples e eficaz solução cénica, Patrícia Modesto diz: “Não me olhes”. Alguma linearidade vocal da composição não impediu um interessante trabalho musical instrumental, com múltiplos jogos rítmicos. Do ponto de vista musical e cénico Vislumbres da cidade conseguiu encontrar formas possíveis para a criação duma situação e dum espaço de acção, que parece ser necessário num projecto que arrisque chamar-se “ópera”.
Poemas de amor? Pode ser. Mas talvez os “temas” devessem ser outros. Não seria de propor a jovens compositores temas mais actuais e não “eternos”? Não quer dizer que o amor não seja um assunto rico e que não se possa falar das mil e uma formas de amar no presente. Curiosamente, para vários destes seis compositores, o tema parece ter gerado distância – o amor dos poemas não é parte da sua linguagem, da sua forma de sentir e pensar. Os poemas serviram apenas de pretexto. Mas os criadores trouxeram as suas preocupações – existenciais, filosóficas ou simplesmente musicais, o que não deixa de ser interessante.
Compreendemos que pode facilitar a tarefa haver uma pré-selecção de textos pequenos, como são estes poemas, mas será a poesia o melhor ponto de partida para a ópera? Não empurrará os criadores para o lírico, e para pensar em “poemas cantados”, esquecendo o dramático que a ópera sugere em primeiro lugar?
O trabalho musical, muito diverso, destas compositoras e compositores, tem de ser acompanhado, na criação operática, de um trabalho de cena que, julgamos, deveria ser central e poderia ser aprofundado nas próximas edições deste laboratório. É a acção cénica (através da música, pois claro) que deve estar no centro da criação operática. Os momentos mais estimulantes desta série de seis mini-óperas foram, precisamente, aqueles em que um trabalho dramatúrgico se cruzou com o musical, na criação de uma figura cénica, numa pequena acção, num adereço com sentido, na descoberta de um gesto instrumental ou vocal que contêm em si mesmos “um teatro”, ou no esboçar de um “espaço musical” capaz de abrir a música para uma acção teatral. Ou melhor, de criar um teatro pelo caminho da música. Não é disso que se trata?
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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