2023.05.12 e 13 · Música Viva 2023 · O’culto da Ajuda em Lisboa
Humorictus Ensemble * e Sond’Ar-te Trio **
* música de: György Ligeti, Luís Tinoco, Christopher Bochmann, Bruno Gabirro e Miguel Azguime
** música de: Sofia Sousa Rocha, Miguel Azguime, Carlos Marecos
Daniel Schvetz, Diogo Alvim e Pedro Lima
O som sem medo
PEDRO BOLÉO

Dois concertos do Festival Música Viva suscitam-nos ainda uma reflexão crítica sobre a interpretação e a performance. Decorreram em dias seguidos, no 12 e 13 de Maio, no O’culto da Ajuda, em Lisboa.

O primeiro foi o concerto do recentemente formado Humorictus Ensemble, um agrupamento de sopros com Marina Camponês na flauta, Carla Pereira no oboé, Patrícia Silva no clarinete, Joana Maia no fagote e Kevin Cardoso na trompa. O Humorictus começou a sua actividade no ano passado e assume os seus objectivos claramente: “a divulgação e interpretação de música contemporânea portuguesa para quinteto de sopros” e também “a aproximação do grande público à música erudita”, com um repertório extenso e variado. Neste concerto era, sobretudo, a primeira missão que estava em causa, num concerto (quase) só com obras de compositores vivos activos em Portugal.

Digo “quase” porque o concerto abriu com as Dez peças para quinteto de sopros de György Ligeti, uma obra marcante do compositor escrita em 1968. Passou mais de meio século sobre esta obra, mas ela ainda nos interpela hoje. No final, Ligeti escreveu na partitura um excerto de Alice do outro lado do espelho, de Lewis Carrol: «“... mas” – Houve uma longa pausa. “Isso é tudo?”, perguntou Alice timidamente. “É tudo”, respondeu Humpty Dumpty. “Adeus”». Talvez essa citação extra-musical seja uma defesa das brevidades quase chocantes de uma peça que não é nada simples, porque é preciso dar tudo em pequenos gestos de equilíbrios muito subtis. O Humorictus Ensemble lançou-se corajosamente à procura dos micro-entrelaçamentos e do magnífico e exigente trabalho tímbrico do compositor. As notas estavam no sítio, mas é extremamente difícil pôr lá também o ímpeto, a energia, o humor. Estava feito o mais difícil? Talvez não, já lá vamos.

Veio depois uma peça de juventude de Luís Tinoco, Autumn Wind (1998), pensada como peça para ser interpretada tanto por grupos de estudantes como quintetos profissionais. E aqui não houve problemas, o Humorictus pegou-lhe com desinibição e até alguma desenvoltura. Mas depois do intervalo é que a porca torcia o rabo.

Profundidades para além das notas
Era preciso dar mais perspectiva e profundidade sonora à interessante peça Six or seven sketches – Wind Quintet no. 3 (1992), de Christopher Bochmann, e era preciso dar outra energia aos silêncios “clandestinos” de Entre murmúrios e silêncios, uma peça de Bruno Gabirro de 2007 que tem alguns dos elementos que a sua música continuou até hoje a explorar. Uma obra que o compositor considera “de si para si”, mas que tem uma surpreendente capacidade de nos tocar e interrogar. Faltou poesia à interpretação – e não falo de uma poesia exterior, acrescentada, mas de uma poética interior, capaz de, revelando a sua forma, dar intensidade existencial aos sons e aos silêncios “carregados de som” e de “si”.

Finalmente, o (ainda) mais difícil: a estreia absoluta de Une Folie Finie (que talvez se pudesse traduzir por “uma completa loucura”), peça microtonal de interpretação ultradifícil. O Humorictus fez um esforço notável para a pôr de pé, mas ela soou mais barroca do que nos parece ser a intenção do compositor. Não são só as notas que importam (e ali até importam!), mas ser capaz de uma coragem colectiva que revele, sem medo, o som interior da peça. Som interior – porque a obra mais recente de Miguel Azguime persiste na procura de novas maneiras de transmutar o som e o timbre e de pesquisar (no limite) quais as rupturas formais ainda possíveis na história (nesse sentido a sua criação é ainda uma busca “vanguardista”).

Nenhuma música se pode tocar com medo, e o programa (demasiado?) exigente daquela noite amedrontou os próprios proponentes. De qualquer forma, só podemos incentivar o Humorictus Ensemble a persistir no encontro, na descoberta e divulgação da nova música, que lhe fará bem (porque o grupo alargará o conhecimento das inúmeras linguagens musicais do nosso tempo) e nos fará bem a nós, espectadores e ouvintes ávidos de conhecer novos mundos e cansados do já sabido.

Falámos da falta de ímpeto, energia, perspectiva, poesia, coragem sem medo, som para além das notas. É difícil definir tudo isto com precisão, mas estamos certos de que o Humorictus Ensemble o saberá descobrir (com humor, é claro!), porque tem as pessoas que são capazes e as ferramentas afinadas.

Sond'Ar-te Trio
Sond'Ar-te Trio no O’culto da Ajuda em Lisboa

Tocar corajosamente
No concerto do dia seguinte o Sond’Ar-te Trio teve uma atitude de enorme confiança e pegou na música sem receios. E isso faz toda a diferença. Claro que não podemos comparar o recém-formado Humorictus Ensemble com estes três músicos que já se conhecem bem há anos e tocam variadíssima música contemporânea há muito tempo. Falamos de Elsa Silva (piano), Filipe Quaresma (violoncelo) e Vítor Vieira (violino). Um trio excepcional que tocou obras de compositoras e compositores portugueses.

A abrir, Jogos (2023), uma peça delicada e melancólica de Sofia Sousa Rocha, na esteira dos compositores simbolistas (será o nome uma homenagem discreta ao balidado Jeux, de Debussy?). Proponho, de qualquer forma, uma troca de nome da sua peça com a Melancholia (2019) de Miguel Azguime, que se lhe seguiu. Pois a peça de Sofia Sousa Rocha, simples e muito bem construída, tem muito mais expressão de melancolia do que a peça de Miguel Azguime, plena de paixão e de raiva, e com jogos tímbricos que bastariam para ir buscar o título da peça de Sofia Sousa Rocha. A peça de Azguime foi tocada com aquela coragem necessária para tocar certo Beethoven (também ele compôs belos trios para esta formação, aliás). Uma interpretação potente e luminosa.

Seguiu-se a peça de Carlos Marecos, com uma frescura e risco que nos surpreenderam. Não porque o compositor não o faça noutras peças, mas porque parece fazê-lo aqui em Fragmentos de movimento e melancolia (2023) com uma liberdade formal invulgar. Na verdade, também ouvimos aqui humor e soltura, e não tanta melancolia – mas isso são subjectividades dos nossos ouvidos. Certo é que o Sond’Ar-te Trio tocou a peça com brilho, dando-nos a entender muito bem os gestos musicais propostos por Marecos. Aos três instrumentos juntou-se a electrónica, numa articulação interessante que apenas se perde um pouco perto do final. Desnorte ou expressão de liberdade?

Luzes da fotografia
Seguiram-se três peças que foram concebidas para acompanhar a exposição A Guerra Guardada – Fotografias de Soldados Portugueses em Angola, Guiné e Moçambique (1961-1974), com curadoria de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte (a partir de uma investigação etnográfica no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa). Peças em estreia absoluta ao vivo, de Daniel Schvetz, Diogo Alvim e Pedro Lima para um interessantíssimo projecto de ligações entre artes e entre histórias (as da guerra colonial, que urge continuar a contar, fazer e pensar). Da atonalidade viva, colorida e cativante de Flash & Flesh (2023), de Daniel Schvetz, como se Alban Berg tivesse acordado no século XXI, com um horror à guerra já bem firmado, à peça melancólica (outra vez!?) de Pedro Lima, Como se fosse um filho (2023), que utiliza partes do depoimento de um soldado que se fez quase pai adoptivo de uma criança durante um período na guerra em Moçambique, passando ainda pela original obra de Diogo Alvim, em que a descrição formal da fotografia (numa voz off) se transforma numa descrição dos gestos dos intérpretes e dos movimentos da música. Esta última, Jogo Duplo (2023), foi talvez a peça mais conseguida no sentido da sua ligação com a imagem e com o projecto de exposição que integrou.

Antes do início do concerto, um senhor entrara de candeeiro na mão. “Quer deixar o seu candeeiro aqui?”, pergunta alguém da casa, do O’culto da Ajuda. O senhor pousou o candeeiro. Não era mesmo preciso nenhuma luz extra – foi um concerto luminoso do Sond’Ar-te Trio. Sem medo, com ímpeto, coragem e poesia, no interior da música.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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