João Pedro Lourenço
Vítor Rua gosta de brincar com os sons. Gosta de brincar também com as palavras. Por exemplo a palavra “ópera”, que parece criar, ainda hoje, uma expectativa de qualquer coisa múltipla, cénica e musical. Já não esperamos necessariamente uma voz, nem um teatro. Ópera é hoje, para alguns, nome de uma coisa que não se sabe bem o que é, uma “cena” em aberto. Neste caso, Sonic Rumble with Green Mustard parece ser simplesmente um encontro. O encontro do compositor Vítor Rua, sempre a fintar-nos com gestos artísticos de classificação instável, com o percussionista João Pedro Lourenço. No palco vemos quatro sets de percussão, dispostos numa linha. Atrás dessa panóplia de percussões (dezenas de sinos, tambores, pratos, gongos, vibrafones, metalofones, triângulos, etc, e um conjunto final que é uma espécie de set de bateria aumentado), vemos um vídeo onde um pêndulo visto de baixo balança sem parar, como se marcasse o tempo global da performance. Sobre esse pêndulo (que acabará no fim por ficar quase quieto), sobrepor-se-ão outras imagens abstractas no vídeo. À direita, uma santa, pintada no tecto da sala onde o pêndulo foi filmado.
João Pedro Lourenço
Em vez de “ópera”, poderíamos simplesmente chamar a este Sonic Rumble (“rimbombar sónico”) uma “proposta” de Vítor Rua para um percussionista. A abrir, João Pedro Lourenço atira ao chão bolas de pingue-pongue duma caixa de cartão. Gesto “autoral” de Vítor Rua? Abertura de um espaço de acaso controlado? Piada? Efeito sonoro e performativo de abertura? Preguiça do autor? Tudo isso, talvez. O que é certo é que o espectáculo já começou.
Em suporte digital ouvimos também percussões, pré-gravadas pelo mesmo percussionista (supomos). Um dos efeitos que é criado é o de uma “duplicação” de gestos. O performer faz gestos idênticos (nunca exactamente iguais) àquilo que ouvimos na parte gravada. Outra hipótese é o de estarmos perante uma partitura audível em suporte digital que indica ao performer o que é tempo de fazer. O suporte digital como uma escrita indicativa, mas audível. Outra possibilidade ainda é a de pensar esta duplicação como uma sobreposição sonora, um diálogo consigo mesmo. Como se o som viesse duas vezes e estivesse, ao mesmo tempo, a ser duplicado, lembrado e, nessa rememoração, a estabelecer uma conversa.
Na filha de sola, perdão, na falha de solo, perdão, na folha de sala, lemos um texto em duas partes, que deve ser lido seriamente, com sentido de humor. A primeira parte fala do encontro entre o compositor e o performer como “viagem idiomática”, onde há uma “multiplicidade idoletal” que impossibilita a “classificação estilística”. Parece-nos que, apesar de tudo, é possível caraterizar este encontro musical proposto por Rua, mesmo que seja difícil dar-lhe um nome de “estilo”. É simplesmente uma proposta performativa que surge de um encontro com um percussionista. É também um compositor que passa a “curador”, como nas exposições. Ele organiza a forma da exposição, não faz o quadro, mas dá-lhe o sentido num lugar específico. Na segunda parte da solha de fala, perdão, da folha de sala, o texto viaja como se fosse um texto programático de um poema sinfónico alucinado: “A nave Sonic Rumble beijou languidamente a superfície do planeta O'culto da Ajuda”. O que é interessante é que talvez esta proposta “com mostarda verde” seja mesmo muito mais um poema sinfónico do que uma ópera. Mais do que um trabalho “de cena”, Sonic Rumble é a apresentação directa e dúplice de um percussionista em acto numa viagem de alucinação sónica programática. João Pedro Lourenço fez um trabalho espectacular, diga-se. Ou, para sermos mais justos às visões de Rua, o percussionista foi o condutor da nave espacial, seguindo as suas próprias instruções e filosofando musicalmente sobre o universo, consigo mesmo. Um músico de Rua.
Inicialmente, na primeira “mesa”, abrimos com sinos, sinos de todos os tamanhos a que se juntará o vibrafone. Instala-se, calmamente, a vida num planeta sonoro tilintante. As notas de programa sugerem uma viagem interestelar em que podemos “roçar as pétalas de Andrómeda” ou sentir a “poeira sideral”, na agitação de uma multiplicidade de sons do macro-set de percussão dividido em quatro momentos. No final, a bateria, numa improvisação que já não sabemos se o é (porque ela cumpre irregularmente o que o destino pré-gravado traçou), agita-se rápida e energicamente, como nunca antes, explosão energética e meteórica final. Sim, é um poema sinfónico para percussões, mais do que uma ópera. Ou, se quisermos brincar com as palavras ainda mais, fazendo jus à atitude desconstrutiva do compositor, Sonic Rumble with Green Mustard é um fado. Fado duma cidade de outra galáxia, para uma voz de mãos, braços e pés, cujo destino é simplesmente a viagem (desafiante da gravidade). O fado interestelar de Vítor só termina quando o pêndulo (no vídeo) se aquieta – e, aqui sim, faz-se drama. É como uma longa “cantiga de Rua” esticada na curva da Via Láctea e que, sob o pêndulo silencioso do tempo, resgata, numa ironia “a sério”, o último poema sinfónico intergaláctico conhecido. Ceci n'est pas un opéra.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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