O Lisboa Incomum, ali no bairro do Rego, é hoje uma casa de muita música nova, lugar de experimentação e de escuta de criações de compositores da actualidade. Foi fundado em 2017 pelo compositor Jaime Reis e concebido como uma “plataforma transdisciplinar para experimentalismo e criações musicais, investigação e educação”, para além de local de acolhimento do Projecto DME (Dias de Música Electroacústica).
Entre 16 e 18 de Março o Lisboa Incomum propôs três recitais de piano com música dos séculos XX e XXI, com Diana Botelho Vieira propondo um programa muito eclético, Sérgio Azevedo tocando obras suas recentes e ainda André Roque Cardoso, este último com uma interessante proposta de escuta de peças para piano portuguesas do século XXI para a mão esquerda.
Fomos escutar o primeiro recital, de Diana Botelho Vieira, onde a pianista açoriana interpretou um conjunto de obras muito diversificado. Sérgio Azevedo disse algumas palavras sobre o programa no início, para um público pequeno, mas atento. O recital propunha mostrar obras de “nove compositores de várias gerações e geografias, nove maneiras de encarar a música e as reviravoltas estéticas dos séculos XX e XXI”, como se pode ler na apresentação do recital. Uma aparente salada de peças muito diferentes, mas onde se podiam encontrar ligações através de diferentes aspectos. Daí o título do recital, “Crossing Paths”, “caminhos cruzados”.
O concerto começou com um passo em falso, com um problema na electrónica que não permitiu compreender inteiramente a proposta da peça Vai e Vem (2018) de Carlos Caires. Mas já lá voltaremos. Logo de seguida veio uma das propostas mais estimulantes do concerto, Seis aparições de Lenine sobre um piano (2005), peça da compositora Ângela da Ponte que vai buscar o seu título a um quadro de Salvador Dalí. Peça em seis andamentos, com muita personalidade e com um trabalho harmónico particularmente interessante, que Diana Botelho Vieira interpretou muito bem, mostrando a riqueza da peça, mas também o “seu” som enquanto pianista, sempre claro e bem articulado, mas nunca excessivamente duro. Vieram depois quatro peças da série Brinquedos musicais, compostas por Sofia Gubaidulina em 1969 com a ideia de escrever as peças que gostaria de ter tocado em criança... Um toque de nostalgia perpassa estes Musical Toys, onde a simplicidade esconde (ou será que revela?) a mestria artesanal da compositora. Começamos a estabelecer ligações entre obras, como se umas ressoassem nas outras, e a sentir que este programa eclético tinha afinal uma interessante coerência. Vieram depois Quatro canções tradicionais portuguesas, arranjos de João Carlos Pinto para canções populares, onde ecoou a nostalgia das peças anteriores mas também o conhecimento das características do piano e das suas possibilidades expressivas (Carlos Pinto é também pianista). A simplicidade persistiu na Mazurki opus 41 (1980), uma homenagem de Górecki a Chopin e, na verdade, uma obra um pouco virada para trás, como se olhasse chorosamente o passado duma colina. Seria a nostalgia ainda a ressoar na sala?
Seguiu-se uma das peças de 6 Encores, Wasserklavier (1965), de Luciano Berio, curiosa peça aquática e sonhadora – não andará a melancolia também por ali? – com um final suspenso, uma brincadeira (com o título da beethoveniana Hammerklavier, certamente) de um compositor de vanguarda que possui um carácter quase romântico – “à distância, ternamente”. Diana Botelho Vieira tentou fazer do piano “martelos de água”... Seria possível?
Viria depois uma das peças mais bem interpretadas por Diana Botelho Vieira, In a landscape, peça de John Cage de 1948, obra lírica e suspensa, jogando com ressonâncias, cúmplice de Erik Satie (que Cage grandemente admirava).
Houve tempo ainda para duas peças dos dois Adams: John Luther Adams e John Adams. Do primeiro ouvimos Nunataks, de 2007 palavra inuíte para as “montanhas solitárias” que emergem nos glaciares, imagem, para o compositor, da solidão humana. E finalmente China Gates, do outro John Adams, peça de 1977, minimalista e modal, mas não empolgante para os nossos ouvidos.
Felizmente refez-se a peça de Carlos Caires, agora com a electrónica. E aí se percebeu que tudo ali se joga na electrónica, pois aquelas poucas notas do piano de Vai e Vem são apenas as âncoras vivas do som fixado que guarda toda a imaginação da peça. Uma bela e pequena peça didática, para a infância, mas não infantil, que ficou muito bem no final.
E tudo se conjugava e rimava afinal nesta salada de compositores – saudade, infância, modernidade, ressonância.
O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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